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A canção “Tapera” de Lorenzo Fernandez,

ou a ambiguidade das imagens brasileiras

 

Mônica Pedrosa1

monicapedrosa@terra.com.br

 

Resumo: Neste trabalho, realizo um estudo sobre a canção “Tapera”, de Lorenzo Fernandez, a fim de observar como o compositor traduz o poema em música e como poema e música interagem na canção. Como suportes teóricos utilizo conceitos de intermidialidade, a semiologia da música, teorias literárias de tradução e a imagem como operação de leitura. O trabalho me permite concluir que obras artísticas, em particular esta canção, podem apresentar-se como resposta e proposta ao momento histórico em que se inserem.

Palavras-chave: Tradução; Interpretação Musical; Semiótica; Canção de Câmara; Lorenzo Fernandez; Imagens.

 

Abstract: In this paper, I carry out a study about the song “Tapera”, by Lorenzo Fernandez, aiming at observing how the composer translates the poem into music and how poem and music interact within the song. As a theoretical basis I use concepts from intermediality, musical semiology, translation literary theories and image as a reading operation. This investigation allows me to conclude that artistic works, in particular this song, can be read as a response and as a proposition to the historical moment where it is inserted.

Keywords: Translation; Musical Interpretation; Semiotics; Chamber Music; Lorenzo Fernandez; Images.

 

1. Introdução

Este artigo volta-se para as canções de Lorenzo Fernandez, em particular para a canção Tapera, escrita em 1929, a partir de poema de Cassiano Ricardo2.

As canções de Lorenzo Fernandez, por sua elaboração e pela época em que se inserem, constituem um corpus importante para pensarmos as canções de câmara de uma forma geral, e, em particular, as canções brasileiras. Essas canções pintam quadros sonoros de paisagens brasileiras dos sertões, das praias, das cidades, de antigas fazendas de escravos, sugerem dedilhados de viola, serestas, batuques. Sua música se apropria de muitas vozes brasileiras, pois são vários os personagens que povoam sua obra, como o tropeiro, o caboclo, o seresteiro da cidade, o violeiro do sertão, a mãe d’água, a senhora da casa grande e a escrava.

O período histórico constituído pelo modernismo nacionalista é conturbado e apresenta contradições. A atitude paternalista com relação à população rural contrasta com a atitude de afastamento das manifestações populares urbanas; a modernização nas artes convive com o retorno às formas arcaicas do folclore e com a retomada das tradições clássicas musicais. Por sua vez, as camadas mais altas da sociedade se aproximam das classes populares por meio das manifestações artísticas. Conflito, discrepância e desordem, resultados da convivência pouco amistosa entre segmentos díspares da sociedade, contrastam com a união em torno de objetivos comuns, verificada não apenas nos meios da arte culta, como também nos democráticos ambientes do teatro de revistas e, posteriormente, das rádios, nos quais as finalidades artísticas, aliadas aos objetivos capitalistas visando ao lucro, seriam mais fortes que os preconceitos. União, ordenação e síntese também não podem deixar de existir nos momentos em que os intertextos musicais, formados a partir das encruzilhadas diversas, se constituem como amalgamento de tradições perdidas, modificadas, transformadas.

Nesse panorama, é interessante verificarmos como as canções de Lorenzo Fernandez dialogam com o período histórico, ao responder e ao mesmo tempo propor questionamentos. Alfredo Bosi (2004, p.12), ao mencionar as relações do poema com os tempos da sociedade, nos diz que “importa trazer à luz da consciência as respostas muitas vezes tensas que a obra poética dá às ideologias dominantes, venham estas do mercado, do poder do Estado ou das várias instituições senhoras da palavra”. Uma das questões que pretendo abordar neste artigo refere-se a como a elaboração artística do compositor esteve ligada às ideologias dominantes das correntes nacionalistas que imaginavam uma realidade brasileira integrada e homogênea.

Antes de voltar a minha atenção para a canção Tapera, julgo necessário desenvolver alguns tópicos que nos darão sustentação teórica para o aprofundamento neste trabalho. O primeiro diz respeito à própria canção de câmara, como se constitui esse objeto e como pode ser percebido. O segundo aborda, ainda que em linhas gerais, a ideia de tradução, retirada das teorias literárias e usada para pensarmos a interpretação das canções.

Neste artigo, proponho ir além da análise descritiva e estabelecer conexões não apenas entre as linguagens musical e literária que compõem a canção, como entre a obra e o seu tempo, ciente de que meu olhar para a produção realizada no passado apoia-se em minha contemporaneidade, minhas vivências, meus conhecimentos, minhas percepções.

Desta forma, utilizo a semiologia da música como suporte para estabelecer conexões entre a obra e elementos externos a ela, o que podemos denominar referências extrínsecas3. A partir da semiologia, utilizo também a proposta, que desenvolvi em minha tese de doutorado e artigos (2009, 2010), de que uma canção, por meio de seus elementos musicais e poéticos, cria imagens de modalidades sensoriais diversas. Segundo o neurocientista Antônio Damásio (2002, p.123), o conhecimento factual chega à mente sob a forma de imagens. Portanto, neste trabalho, emprego os princípios de uma metodologia transdisciplinar para o estudo da canção de câmara, que consiste no estudo integrado de música e literatura, tendo a imagem como conceito transversal que perpassa as duas disciplinas. Verifico como é possível perceber nas canções a visualidade, a plasticidade, o movimento, a espacialidade, a temporalidade, e, por fim, os diferentes sentimentos responsáveis pela criação de imagens ligadas aos nossos vários sentidos.

Em resumo, pretendo, neste artigo, observar como Lorenzo Fernandez realiza a tradução do poema, como poema e música interagem na canção e como a canção reflete questões socioculturais e afetivas do Brasil nacionalista.

 

2. Canção, obra multimídia

Para pensar a canção, trabalho com conceitos de intermidialidade, que podem, a princípio, acarretar certa confusão. Segundo Irina Rajewsky (2005, p.43), o termo intermidialidade surgiu nos anos 90 e sua popularidade deu origem a um grande número de terminologias utilizadas em textos sobre o assunto, como, por exemplo, multimidialidade, plurimidialidade, cross-midialidade, inframidialidade, convergência midiática ou hibridização. Para Claus Clüver, em seu texto Inter textus / Inter artes /Inter media (2006, p. 11-41), intermidialidade diz respeito não só àquilo que designamos como “artes” (Música, Literatura, Dança, Pintura e demais Artes Plásticas, Arquitetura, bem como formas mistas, como Ópera, Teatro e Cinema), mas também às “mídias” e seus textos, já costumeiramente assim designadas na maioria das línguas e culturas ocidentais, como as mídias impressas, como a Imprensa, e também o Cinema, a Televisão, o Rádio, o Vídeo, bem como as várias mídias eletrônicas e digitais surgidas mais recentemente. Embora interessante e extremamente atual, esta não é uma discussão que pretendo desenvolver na brevidade deste artigo. Considerarei como mídia qualquer sistema de signos, e, consequentemente, a canção, como a união de dois sistemas semióticos distintos ou de duas mídias, a literária e a musical.

A canção de câmara ou canção erudita é normalmente escrita a partir de um texto literário, geralmente um poema, de autor determinado ou anônimo. Poderia pensar, num primeiro momento que, do ponto de vista da sua produção, a canção de câmara seria a transposição de uma obra concebida na linguagem literária para uma obra concebida na linguagem musical. Neste caso, estaríamos diante de uma transposição intersemiótica, ou melhor dizendo, de uma tradução intersemiótica. A canção, entretanto, pode ser vista como mais do que uma transposição do texto literário para o texto musical, ou seja, a transposição de uma mídia a outra. A canção é ela própria uma obra musical original que recria e ambienta o texto poético com os elementos musicais elaborados pelo compositor, quais sejam, a melodia, a harmonia, o ritmo ou a instrumentação empregada.

Considero ainda, valendo-me das classificações formuladas por Cluver (2006) para obras formadas por várias mídias, a canção como um texto multimídia, composto por textos separáveis e separadamente coerentes, o texto verbal e o texto musical.

Em resumo, na canção, temos que o poema e a música pertencem a sistemas semióticos diferentes, cada qual com suas distintas maneiras de permitir a expressão. Em segundo lugar, a produção da canção envolve a tradução de um sistema semiótico a outro, ou seja, a tradução de elementos da poesia em elementos musicais, que podemos chamar de tradução intersemiótica. Mas implica na criação de um novo original, a canção propriamente, na qual se encontra o poema traduzido como letra de canção. O poema e a música resultam no objeto canção que é, em suma, uma mútua fecundação. Dentro de uma canção, a música e o poema se fecundam, dialogam, opõem-se, interferem um no outro. Interferência não é necessariamente correspondência ou analogia. Entre eles há um incessante refluxo. Interpretar implica em perceber como se dá esse refluxo na conformação da canção e como se inter-relacionam seus diversos elementos.

 

3. Tradução, interpretação, semiótica

A construção de uma canção de câmara resulta de múltiplos processos interpretativos que ocorrem em etapas distintas. Valho-me então de algumas ideias sobre tradução encontradas nas teorias literárias para pensar sobre essas etapas. Assim sendo, considero tanto a produção quanto a recepção de uma canção como instâncias tradutórias: o poeta se coloca como tradutor de imagens, ideias, sentimentos; o compositor, como o primeiro tradutor do texto poético; o intérprete musical, por sua vez, tradutor dos signos escritos em sons ou tradutor desses sons em linguagem verbalizada, assumindo, ao mesmo tempo, os papeis de performer, fruidor e crítico, e, por fim, a percepção do ouvinte, o ouvinte como tradutor.

A tradução pode ser vista, de uma forma geral, como uma tarefa que possibilita interações e trocas do sujeito com o mundo que o cerca. A todo o momento necessitamos da atividade tradutória. Entretanto, no simples gesto de responder a uma criança sobre o significado de uma palavra, já nos damos conta da dimensão oscilante, frágil, instável, imprecisa e muitas vezes frustrante da tarefa tradutória. É Otávio Paz (1981, p.9) quem afirma que a tradução opera por um “movimento contraditório e complementar”. Para o autor, “a tradução suprime as diferenças entre uma língua e outra; por outro lado as revela mais plenamente: graças à tradução nos inteiramos de que nossos vizinhos falam e pensam de um modo diferente do nosso”.

A própria linguagem, como tradução de nossos pensamentos, lida com a impossibilidade, mas oferece a contrapartida da criatividade. O pensamento em si já opera por tradução. É interessante observarmos como semioticistas como Charles Sanders Pierce se valem da ideia de tradução. Para o filósofo americano (2005, p.270), “todo signo-pensamento é transladado para ou interpretado num signo-pensamento subsequente” ou, no jogo caleidoscópico de palavras de Júlio Plaza (1987, p. 18), “todo pensamento é tradução de outro pensamento, pois qualquer pensamento requer ter havido outro pensamento para o qual ele funciona como interpretante”. Assim concluo que, quando pensamos, traduzimos para nós mesmos aquilo que se apresenta à consciência.

A primeira instância de tradução da canção consiste, então, no próprio poema como tradução de uma ideia, de um pensamento que reflete o mundo das coisas, a relação do homem com o real. O poeta francês Paul Valéry4 (apud Campos, 1985) nos fala, com propriedade, do poeta como um tradutor e da inexatidão inerente a essa tarefa da tradução. É bastante curiosa a maneira como esse poeta se expressa, ao relatar que o que temos em mente não constitui exatamente o resultado final de nossa elaboração. Para Valéry, o trabalho do poeta consiste menos em buscar palavras para suas ideias do que em buscar ideias para suas palavras e seus ritmos preponderantes.

A leitura de um poema evocará, na mente daquele que o lê, imagens, sentimentos, circunstâncias diversas, lembranças do passado, expectativas, nomes, pessoas, estados corporais, ou, nos dizeres de Peirce (2005, p. 169), elementos que servem como signos presentes na consciência. Um compositor, em seus pensamentos, traduz para si mesmo esses signos, e os veicula para o exterior através de uma sequência de som e silêncio, que chamamos música. Mas a linguagem do compositor, como podemos deduzir pelas afirmações de Valéry, é muito mais do que um veículo de comunicação dos seus pensamentos para o mundo exterior. Como tradução que é, ela não mimetiza o pensamento, no sentido de restituir o seu duplo, um seu igual. Além do mais, ela está sujeita às normas e convenções da linguagem musical. A linguagem possibilita ao mesmo tempo em que limita o fazer do compositor.

Podemos observar que a tradução é uma prática criativa, pois jamais produzirá uma cópia perfeitamente igual, seja dos pensamentos, de um poema ou de uma partitura de uma canção. Paz (1981, p. 16) afirma que “tradução e criação são operações gêmeas”. Chegamos aos limites da criação a que se pode chegar numa tradução. A este respeito, o pensamento nuançado e cambiante de Haroldo de Campos (1984, p. 7) assume um de seus mais veementes momentos em seu texto Para além do princípio da saudade. O autor se permite reverter “a função angélica do tradutor numa empresa luciferina”. Campos passa a “ameaçar o original com a ruína da origem”, transformando o original na “tradução de sua tradução”.

Segundo Plaza (2005, p.1) “a operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade”. Ao compositor abrem-se possibilidades. Sua tradução intersemiótica poderá ser concordante com o poema, contraditória, poderá buscar efeitos análogos, ser transgressora, apenas tangenciar o sentido do original. Isso porque diferentes necessidades, desejos, aspirações movem a passagem da poesia à música, da palavra escrita e falada ao canto. Um jogo de forças vital e imperativo se encontra presente nessa transmutação. É isto, exatamente, o que pretendo observar no estudo da canção Tapera, ao verificar a tradução que Lorenzo Fernandez realiza do poema, e, enfim, como interagem os elementos poéticos e musicais na canção, que é uma obra original.

Nesse processo, também me coloco como tradutora ao realizar escolhas entre as várias maneiras criativas de tradução da canção Tapera, elegendo, priorizando ou valorizando determinados elementos. Interpretações críticas, escritas ou faladas, constituem uma outra face da interpretação. Um intérprete pode verbalizar ocorrências literais e descrever estruturas sonoras, mas pode também adentrar um vasto campo simbólico que, em última análise, conforma e dirige suas interpretações. A interpretação de uma canção passa pela percepção de suas estruturas e também pela articulação de uma cadeia de interpretantes ligando essas estruturas a elementos diversos pertencentes à nossa experiência de mundo. No tecido significante da canção, a música está ligada à palavra, o que, de certa forma, orientará a formação de uma cadeia de interpretantes e permitirá uma entrada mais objetiva em sua trama de signos-significantes. A música, ao ser compartilhada com o texto poético, amplia as possibilidades de significação em ambos os domínios. Não se trata mais de opor som ao sentido, mas de integrá-los em nossa percepção, isto é, de perceber o som como sentido.

Concluindo, a canção é um todo intrincado de palavras e sons; um texto multimídia atravessado pelos textos e contextos dos autores e dos intérpretes. A interpretação de uma canção dependerá, em síntese, de selecionarmos e acionarmos em conjunto uma série de variáveis. O intérprete inserido em sua contemporaneidade constrói suas redes pessoais de significação num trabalho de tradução, que implica criatividade e método. Dessa forma, a atribuição de significações aos elementos da canção se baseia em parâmetros que podem ser discutidos e até contestados.

Em meu entender, lidamos com três questões fundamentais que pudemos perceber nas teorias tradutórias: a impossibilidade da expressão exata por meio da linguagem, a não restituição do original; a atitude criativa que supre a impossibilidade; o método para estabelecer prioridades. Esta interpretação da canção Tapera, longe de propor uma imagem realista da canção, revelando-lhe a “essência”, torna-se construção que seleciona, no seu objeto, um certo número de aspectos considerados como adequados, não tanto para “explicar” a obra, mas para “traduzir” a obra em palavras, o que posteriormente certamente guiará uma performance musical, ou a tradução da partitura em sons.

Um dos principais legados das teorias tradutórias é certamente a prática criativa. Ao meu ver, esta prática criativa aliada ao estudo histórico e analítico permite ao intérprete se responsabilizar por suas escolhas, tanto no momento de verbalizá-las como em sua prática de performance. Se a tradução envolve criação, o intérprete, como criador, é coautor. Tomando para si a responsabilidade de permitir a metamorfose e renovação do original que, como bem nos demonstra Walter Benjamin, “se modifica em sua pervivência” (1992, p.x), intérpretes das canções realizam a tradução da tradução. Mais do que interpretar busca-se traduzir, com todas as consequências que advêm do ato tradutório.

 

4. Paisagens e personagens: a canção Tapera

Na canção Tapera veremos o interior agreste e desolado do Brasil na imagem de uma casa em ruínas e os personagens humanos ou não: o vento, a noite, o caboclo. Nessa canção, procurarei demonstrar, por meio de imagens que sugerem paisagens e personagens, a maneira pela qual Lorenzo Fernandez traduziu o poema em música, e as interlocuções que se estabelecem entre as diferentes mídias da canção. Vejamos o poema:

 

Aquela casa de sapê

com a tinta nova do luar

tem qualquer cousa que parece recordar

o tempo em que possuía o seu terreiro de café

e o seu pomar.

 

Agora, junto às janelas

viçam flores de abóbora

muito amarelas.

E, em moutas verdes cruas

nascem protuberantes gravatás,

e trepam pela cerca as flores roxas

de misteriosos maracujás...

 

E quando a noite vem, com o seu vestido de noivado,

derramar pelo vão do teto esburacado

um punhado de fitas brancas lá por dentro,

o vento canta pelas frinchas do telhado,

o último choro do caboclo apaixonado...

 

 

4.1 O poema

O poema de Cassiano Ricardo, Tapera, musicado por Lorenzo Fernandez em 1929, retrata uma paisagem brasileira, uma paisagem colorida em dois momentos distintos, o noturno e o diurno, derramando profusões de imagens, visuais, sonoras, cinéticas, que pouco a pouco vão formando uma imagem particular, um quadro em movimento, uma cena de uma casa e de seu entorno, no interior do Brasil.

O título do poema nos conduz a uma primeira imagem: a tapera é uma casa em ruínas, abandonada. Pensar em uma tapera é pensar em uma fazenda solitária, no meio do nada.

Os versos livres da primeira estrofe possuem, a princípio, uma acentuação regular, quaternária, com início em anacruse. O impulso anacrústico inicial nos leva diretamente à palavra casa. Os acentos se sucedem nas palavras sapê, nova e luar. Seguindo os acentos regulares nosso olhar mental visualiza a casa, dirige então a atenção ao detalhe do sapê, percebe a transformação em nova e cai sobre o agente da transformação: o luar. O poema nos dá a construir esta primeira imagem da casa iluminada pela luz do luar. Estranho quadro de degradação e beleza. A tapera veste-se de nova e apresenta-se ao olhar com uma nova tinta: a tinta pintada pela luz.

 

Aquela casa de sapê

com a tinta nova do luar

tem qualquer cousa que parece recordar

 

A métrica regular que dirigia a atenção do leitor é quebrada na palavra tempo. Em tempo em que possuía a acentuação ternária e posteriormente binária destas palavras diminuem o andamento da frase num ralentando. A mudança no tempo do compasso prepara a mudança para o tempo da memória e lança o leitor numa outra época A tapera com sua nova roupagem remete ao tempo de fartura, de terreiro de café e pomar.

 

o tempo em que possuía o seu terreiro de café

e o seu pomar.

 

Em o seu terreiro de café e seu pomar, a frase retoma seu andamento inicial. A sonoridade das rimas aproxima as palavras luar, recordar e pomar. A longa frase e a reiteração da sonoridade aberta e sustentada pela consoante r ao final dos versos desenham lentamente o arco da reminiscência fixada no tempo.

Na segunda estrofe, o corte busco do agora nos traz de volta a realidade diurna. Ruínas...enfeitadas de cores!... O mato invade a paisagem, invade a casa e o entorno de flores amarelas das abóboras, do verde das moitas, dos gravatás coloridos e do roxo das flores de maracujá. O Verde-amarelismo de Cassiano Ricardo recupera a beleza perdida, em ruínas, com o colorido agreste da natureza.

 

Agora, junto às janelas

viçam flores de abóbora

muito amarelas.

E, em moutas verdes cruas

nascem protuberantes gravatás,

e trepam pela cerca as flores roxas

de misteriosos maracujás...

 

Toda a rítmica desta estrofe é diferente da anterior. Alternando ritmos binários, ternários e quaternários, sempre com acentuação anacrústica, as frases constroem imagens de movimento. A acentuação irregular torna o movimento, entretanto, instável, remetendo-nos à irregularidade com que as plantas tomam conta da paisagem, cada uma a seu modo. O olhar em movimento salta das janelas para as moitas, das moitas para as cercas e acompanha o desorganizado crescimento das plantas.

A paisagem sonora é iluminada pela presença de assonâncias de variadas vogais abertas como e e a. Pronunciadas aliterações em s ao longo dos versos e em suas terminações criam unidade dentro de um movimento sibilante constante.

Verbos de ação remetem à luz e à vida: viçam, nascem, trepam. A conjunção “e” liga as frases do longo período num grande contínuo de terminações suspensas.

Entretanto, a estranheza da situação, momentaneamente esquecida, é retomada sutilmente: a cor roxa das flores e o mistério encerrado nos maracujás. Reticências ralentam o final da frase e abrem espaço para que esse mistério encontre ressonância na duração do silêncio que se segue entre as estrofes.

A próxima estrofe se instala brandamente, iniciando-se com a conjunção “e”, numa sequência da estrofe anterior, seguida do advérbio de tempo “quando”, que não afirma a temporalidade. A sonoridade branda e sustentada das nasais e a sustentação vocálica do ditongo na palavra noite encontram como primeiro ponto de repouso o verbo vem, a partir do qual as frases retomam a métrica regular quaternária. Essa regularidade rítmica é quebrada em derramar pelo vão, em um punhado de fitas e em o último. Nesses momentos, devido à acentuação ternária, as palavras apresentam-se mais espaçadas no tempo, conferindo a esta estrofe um interessante jogo rítmico de dilatação e contração: movimentos espasmódicos da noite e seu amante, do canto do vento, do choro do caboclo.

 

E quando a noite vem, com o seu vestido de noivado,

derramar pelo vão do teto esburacado

um punhado de fitas brancas lá por dentro,

o vento canta pelas frinchas do telhado,

o último choro do caboclo apaixonado...

 

 

A acentuação em vem, vestido e noivado, aliada à recorrência da sonoridade da consoante v, une essas palavras num contínuo sonoro que desenha a lenta chegada da noite, como uma noiva. Esta metáfora nos conduz, da paisagem externa, através do teto esburacado, para o interior da tapera, por meio da bela imagem das fitas brancas que agora preenchem o interior da casa. As aliterações em v introduzem sonoramente a figura do vento. Personificação do poeta, o vento canta. As fendas no telhado, como os furos de um instrumento, permitem seu canto. Permitem seu encontro amoroso com a noite. Esse jogo de personificações e personagens, resquícios do neossimbolismo de Cassiano Ricardo, nos permite associar o vento com o canto, o canto com o poeta, o poeta com o caboclo, o caboclo apaixonado com a noiva, a noiva com a noite.

O ufanismo verde-amarelo de Cassiano Ricardo encontra na desolação a beleza, de noite, a claridade do luar mascarando as ruínas, de dia, a explosão agreste das cores, numa criação pautada pelo sensorial: imagens dirigidas ao olhar, à audição, à percepção de movimento (cinestesia), e até ao olfato (plantas, flores) e ao tato (vento, calor do dia, sol, natureza exuberante). O poema nos sugere movimentos iniciais e finais lentos e escuros, entremeados por um movimento rápido e claro. A primeira e a terceira estrofes do poema, com suas imagens da noite, com seus longos versos e sua sonoridade sustentada, pedem pelo desenrolar lento e contínuo do tempo para se sustentar. A segunda estrofe, vívida de cores, desorganizadamente articulada, cria imagens claras e rápidas.

 

4.2 A canção Tapera

Por meio da leitura que realizei do poema de Cassiano Ricardo, seria de se esperar que Lorenzo Fernandez escrevesse uma canção em movimentos lento, rápido e lento, em tonalidades alternadas, escura, clara, escura. E é exatamente isso o que ele não faz.

Lorenzo Fernandez inicia a canção com um ritmo vivo de embolada5, que logo nos remete às divertidas cantorias dos repentistas nordestinos. Os textos cômicos, satíricos, por vezes carregados de insultos dos cantadores, entretanto, nada têm a ver com a bucólica paisagem noturna descrita no poema, antes, justapõe a ela um novo quadro, uma memória alegre e brincalhona de uma época em que a fazenda respirava prosperidade e fartura. Essa voz que Lorenzo Fernandez acrescenta à canção cria tamanho contraste com o poema, que o resultado final da justaposição de imagens praticamente anula a voz melancólica deste último. Destroi o belo do agora, que não é nada mais que uma ilusão. A tinta nova do luar se dilui na rapidez da enunciação, ressoando apenas debilmente na prosódia absolutamente correta empregada pelo compositor. Como no poema, a palavra tempo é enfatizada ritmicamente e, consequentemente, as palavras seguintes, terreiro de café e pomar ganham força, presentificando o passado, que soa como um agora (Exemplo 15).

 

 

Exemplo 15: Tapera, compassos 4 a 11.

 

Para a primeira seção desta canção, podemos pensar a princípio na tonalidade de Lá bemol maior, mas a sonoridade da escala pentatônica faz-se notar na melodia do canto e é sintetizada na própria harmonia da tônica com sons acrescentados que são originados da pentatônica de Lá bemol maior. A canção constitui-se assim como um misto de tonalidade, pentatonismo e modalidade, criando uma mescla peculiar de colorido harmônico. Essa primeira seção, toda ela com função de tônica, é escrita sobre um pedal de Lá bemol. Lorenzo Fernandez utiliza uma base funcional harmônica extremamente simples, bem ao estilo da cantoria popular. O ostinato rítmico-harmônico remete ao acompanhamento invariável dos desafios. A harmonia é, entretanto, extremamente colorida, pois o compositor empregará predominantemente acordes com sons acrescentados 6 que se equilibram com a simplicidade da base funcional harmônica. Lorenzo Fernandez traduz, de maneira paradoxal, com cores e movimento, o panorama noturno da primeira estrofe do poema. E ainda finaliza essa primeira parte da canção com uma seção de transição nos compassos de 14 a 20, indicada como clarineta, que tem um ar brincalhão, divertido, jocoso, com seus saltos e escalas descendentes à maneira de uma gargalhada (Exemplo 16).

 

Exemplo 16: Tapera, compassos 14 a 21.

 

Então, estranhamente, essa gargalhada desemboca no Fá menor da próxima seção, escrita numa região mais grave na parte do piano, com o baixo agora em quintas paralelas. O compositor, nos compassos introdutórios da nova seção, cria uma expectativa peculiar com a sequência harmônica e o crescendo molto dos compassos até a dinâmica forte, que se confirma na nova tonalidade de Fá menor na mão esquerda, mas que, ao mesmo tempo, é desestabilizada pela dinâmica piano súbita, pelo início da linha vocal na dominante da nova tonalidade e pelo acorde de Dó menor com sétima (acorde de sobretônica) da mão direita do piano, apesar da presença do pedal de tônica em quintas. Imprime assim, subitamente, à canção, exatamente na palavra agora, uma instabilidade inesperada, num tom mais grave e melancólico.

No agora do poema, o ritmo alegre e movimentado da embolada cede lugar a um ritmo calmo com um leve impulso devido à ligadura do tempo fraco ao tempo forte do compasso. Existe um embalo suave nas tercinas da linha do canto, em linha modinheira. Se no poema a imagem era viva e rápida, movimentada pela descrição das plantas que cresciam muito coloridas tomando conta da tapera, a imagem musical é mais lenta e escura, apesar de a cor do Lá bemol maior ainda predominar na linha da voz. O colorido dado pelas quintas dos acordes do piano novamente remete a um tempo antigo, imemorial. A narrativa do agora salta para um passado sem data e mergulha profundamente em algum lugar recôndito da memória. Dois contracantos melancólicos em desenho descendente soam em meio ao ostinato rítmico, agora com movimentação harmônica, no registro médio do piano: melodias na pentatônica menor de Fá. Novamente, aqui, a escala pentatônica, escala dos tempos remotos, dos tempos idos. Onde estarão as cores das flores? As cores das plantas quase não importam. Na parte da mão esquerda, no compasso 27, a presença do Sol b na linha descendente do baixo em quintas paralelas (Sib, Lab, Solb, Fá) sugere o modo frígio, com seu acentuado caráter de descida. Os contracantos e o baixo descendente, sempre tão ligado às imagens tristes, se contrapõem à explosão de vida, sublinhando de forma paradoxal o nascimento dos coloridos gravatás nas moitas verdes (Exemplo 17).

 

Exemplo 17: Tapera, compassos 25 a 29.

 

Assim, também, ao roxo das flores dos maracujás se justapõe uma nova imagem, um novo contracanto, agora na região mais grave do piano. E os maracujás se perdem na distância da linha melódica suspensiva, na qual a nota Fá é sustentada pela harmonia de subdominante, ligando-se ao novo contracanto, memória do contracanto inicial (Exemplo 18).

 

Exemplo 18: Tapera, compassos 30 a 38.

 

Uma breve seção de extensão da seção anterior, com função de transição, prepara o retorno ao Lá bemol, sublinhando musicalmente a gradual transição entre as estrofes do poema, como se o ir e vir dos tempos da memória, do passado e do presente, ocorresse gentilmente. O verso e quando a noite vem inicia-se livremente, quase como se numa continuação da seção anterior, para depois, subitamente, retomar a embolada junto com o ostinato rítmico-harmônico, numa recapitulação variada da seção inicial. As belas imagens poéticas da noite, como uma noiva, aparecem de forma fugaz na entonação rápida e viva. Mas aqui, ao vento, o tratamento harmônico dado já é diferenciado, na tonalidade do homônimo menor de Lá bemol (Exemplo 19).

Exemplo 19: Tapera, compassos 54 a 56.

 

Ouvimos novamente o contracanto em tercinas da seção anterior. Agora sim, podemos relacioná-lo ao canto do vento, já tornado presente por Lorenzo Fernandez na seção anterior. O choro nostálgico do caboclo é acompanhado pelas quintas paralelas que reaparecem, sempre tão vazias pela ausência das terças do acorde, tão distantes no tempo. Um cantarolar de leve vai sumindo aos poucos (Exemplo 20).

 

Exemplo 20: Tapera, compassos 62 a 69.

 

 

 

4.3 A tradução de Lorenzo Fernandez

Se Cassiano Ricardo, em suas convicções ligadas ao movimento Verde-Amarelo, imprime beleza incondicional ao panorama degradado da realidade rural brasileira, a leitura de Lorenzo Fernandez causará tal estranhamento que as relações harmoniosas de calma, beleza e alegria do poema se transformam, adquirindo novas significações. A paisagem brasileira nos é mostrada por Lorenzo Fernandez em toda a sua beleza contraditória, carregada de imagens contrárias e complementares – alegres e tristes, rápidas e lentas, claras e escuras, vívidas e sombrias – que se justapõem compartilhando os mesmos lugares. Ainda, extraordinária é a maneira como o compositor altera, transforma os momentos temporais do poema e lida com as imagens da memória, embaralhando-as, rompendo com o “agora” ao levar-nos às lembranças do passado e a um tempo imemorial, com as escalas pentatônicas e o modo frígio, destruindo o “recordar” ao nos arrastar para a cantoria alegre e satírica do presente.

Essa canção nos captura por sua beleza estranha. Impossível a tristeza da noite ou a alegria do dia, os sentimentos se misturam. A justaposição das imagens dos versos com as imagens musicais cria um choque, um atrito, uma contradição, e, ao mesmo tempo, uma completude, pois sua resultante é a ambiguidade. Existe assim um estado de denúncia realizada por um compositor que não se contenta com a beleza que mascara a degradação, não se satisfaz com a explosão de cores, com o mundo das riquezas naturais, primitivas, tomadas como um trunfo do País. Lorenzo Fernandez põe a descoberto essas relações, valendo-se do estranhamento em sua tradução “luciferina”, criando novos sentidos, criando sua própria verdade, sensivelmente sintonizada com as contradições do país.

E o que dizer dos personagens brasileiros que povoam essa canção? O vento canta o canto do caboclo apaixonado, num resquício de um romantismo no qual a falta se manifesta pela ausência da amada. Lorenzo Fernandez, com sua voz e sua interpretação, dá ao caboclo uma voz singular. Poderíamos aqui pensar com Bakhtin (1981, 1992) que a voz do compositor dialoga com a voz de seu personagem. Neste diálogo procurar-se-ia distinguir os “fios” de cada voz no tecido da canção. Em nosso percurso, porém, não é essa distinção que importa. Existe mais do que diálogo. Existe um embate de forças e uma resultante, uma nova cor formada pela justaposição das imagens. Um novo personagem numa nova paisagem, humano, conflituoso, complexo, multifacetado. Como queríamos averiguar neste trabalho, por meio das imagens criadas pela canção verificamos que paisagem e personagens dialogam com o Brasil de Lorenzo Fernandez, também complexo, também conflituoso, também multifacetado. Personagem emblemático, o caboclo personifica uma memória que entrelaça o interior do País com suas alusões a um tempo de prosperidade, às mudanças sociais ocorridas, à degradação do espaço rural e à falta de recursos, mas também reflete a busca da identidade, a beleza na desolação, o potencial luminoso. Nas associações do poeta com o caboclo, o canto e a noite assumem a função de suplência diante da terra abandonada e da ambiguidade das paisagens que se lhe apresentam. No jogo de imagens dessa canção, muitos encontros: o dentro e o fora, a paisagem e o personagem, o passado e o presente, as ruínas e a beleza.

 

5. Conclusões

São diversas as formas de tradução de Lorenzo Fernandez, por vezes concordantes com o texto poético, como em canções como A saudade ou Vesperal, por vezes contraditórias, como em Tapera, mas sempre suplementares, sempre conferindo às suas canções novos e surpreendentes resultados ou significações. Pode-se dizer que a voz musical de Lorenzo Fernandez, na elaboração de uma canção, mais do que buscar correspondências com a linguagem literária do poema, é trabalho de criação musical que traduz de forma pessoal e extremamente criativa o texto poético, ao mesmo tempo em que com ele dialoga no interior da canção.

A leitura que Lorenzo Fernandez realiza do poema Tapera é intrigante e nada tem de óbvia. Longe de se constituir como um jogo especular, sua tradução se opera por um movimento ao mesmo tempo paradoxal e complementar, que sistematicamente opõe imagens de naturezas contrárias ao poema de Cassiano Ricardo. E aqui podemos nos lembrar das traduções de Haroldo de Campos e seus momentos luciferinos mencionados nos primeiros tópicos deste artigo. Sua tradução é “fazer humano resgatado da subserviência hierática a um original”, apenas tangenciando o sentido do poema. Um “canto paralelo” em sua atitude transgressora, exatamente porque sensível ao ambiente brasileiro, revelando com isso suas contradições. Sua tradução adquire status de trânsito criativo entre linguagens, criando sua própria verdade, sua própria denúncia, sua própria expressão.

As canções de Lorenzo Fernandez assumem um estado de denúncia de uma realidade, de um contexto, de situações e sentimentos, percebidos tanto nos temas como nas formas de expressão do seu estilo, e a sua tradução, por vezes concordante, por vezes contrária ao texto dos poemas musicados, assim ocorre por uma postura inconformada em traduzir ambientes brasileiros de forma simplesmente bela, estável ou sem conflitos.

Essas canções são povoadas de paisagens, personagens e sentimentos que refletem o universo heterogêneo do Brasil da época em que foram escritas. São muitas as vozes que se levantam nas canções de Lorenzo e com elas o compositor dialoga. Ao traduzir o texto poético em música, o compositor se posiciona, revela sua face, recria a paisagem e o personagem. As imagens criadas pelo texto poético no interior da canção interagem com as imagens musicais, criando novas e surpreendentes resultantes, novos tipos de efeito e sentido.

Entretanto, não obstante ser um nacionalista convicto, perfeitamente imbuído do espírito que guiava a inauguração de uma nova condição da literatura musical no país, Lorenzo Fernandez captou, de alguma forma, a ambiguidade, a tensão e a instabilidade que se estabelecem nas linguagens literárias e musicais quando da proposta de unificação, em uma mídia homogênea, das diferentes manifestações culturais dos diversos segmentos da sociedade, díspares e em estado de segregação. Por outro lado, as canções de Lorenzo Fernandez podem, em alguns momentos, nos desvelar momentos líricos e ternos. Choques instáveis e sínteses harmoniosas coloridas com a marca da ambiguidade. Isto as relações intertextuais em suas canções nos revelaram.

O sentido de brasilidade nas canções de Lorenzo Fernandez encontra-se, portanto, além da simples distinção de células rítmicas e melodias populares. O sentido de brasilidade, para citarmos o próprio compositor (apud AQUARONE, 1944, p. 49) “ (...) é o sentido íntimo que toda obra nossa deve ter, essa qualidade de nascer da nossa terra”. O sentido de brasilidade é um universo de espaços, cores, luzes, movimentos e sentimentos em sintonia com aspectos de um Brasil de um momento, percebidos e transmitidos por um compositor extremamente sensível aos ambientes de sua época.

 

 

Referências

 

AQUARONE, Francisco. História da Música Brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1944.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, Universitária, 1981.

­­­­­­_______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Trad. Karlheinz Barck. Cadernos do Mestrado-UERJ, Rio de Janeiro, n.1. 1992. p. i-xxii

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

_______. História concisa da literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1979.

CAMPOS, Haroldo de. Para além do princípio da saudade: a teoria benjaminiana da tradução. In: Folhetim. São Paulo, p. 6-8, 9 fev. 1984.

_______. Paul Valéry e a poética da tradução. Folha de S. Paulo, 27 jan. 1985.

CLÜVER, Claus. Inter textus / Inter artes / Inter media. In: Aletria, jul – dez. Belo Horizonte: UFMG/Poslit, 2006.

FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Tapera. São Paulo: Irmãos Vitale, 1953. 1 partitura. Canto e piano.

NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and Discourse: Toward a semiology of music. Princeton: Princeton University Press, 1990.

­­­­_______. O modelo tripartite de semiologia musical: o exemplo de La Cathédrale Engloutie de Debussy. Tradução de Luiz Paulo Sampaio. In: Debates, V.6. Rio de Janeiro: Centro de Letras e Artes da UNIRIO, 2002.

PAZ, Octavio. Traducción: literatura e literalidad. Barcelona: Tusquets, 1981.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1977.

PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

RAJEWSKY, Irina O. Intermediality, Intertextuality, and Remediation: A Literary Perspective on Intermediality. (Texto em Inglês) Disponível em:

<http://cri.histart.umontreal.ca/cri/fr/intermedialites/p6/pdfs/p6_rajewsky_text.pdf> Acesso em: 24 nov 2011

RICARDO, Cassiano. A flauta que me roubaram: Coletânea poética temática de Cassiano Ricardo. 2ª. Edição, Org. Júlio Ottoboni, São José dos Campos: Patrocínio cultural Petrobrás, 2001, p.139.

 

 

 

 

 

 

 

1 Professora adjunta na Escola de Música da UFMG. Graduada em Canto por essa instituição, possui Mestrado pela Manhattan School of Music e Doutorado em Literatura Comparada pela UFMG. Atua como solista e concertista, e dedica-se especialmente à pesquisa, divulgação e registro da canção de câmara brasileira. Gravou, em 2010, o CD Canções da Terra, Canções do Mar, com o violonista Fernando Araújo.

2 Cassiano Ricardo foi poeta neossimbolista e neoparnasiano. Com o modernismo nas artes ligou-se à corrente nacionalista denominada Verde-amarelismo, juntamente com Menotti. Com seu livro Vamos caçar papagaios, de 1926, entra na temática do Brasil indígena e do Brasil colonial, sentidos, nos dizeres de Alfredo Bosi (1979, p.366), como “estados de alma primitivos e cósmicos”. Com Deixa estar, jacaré (1931) e Martim Cererê (1928) suas preferências nacionalistas centram-se cada vez mais na temática paulista, seja indígena, bandeirante ou ligada à penetração cafeeira, explorando um Brasil primitivo e colorido (cf. BOSI, 1979, p.366).

3 Referências intrínsecas são aquelas que relacionam elementos musicais entre si, e referências extrínsecas são responsáveis pela criação de uma infinidade de interpretantes que relacionam a música a aspectos da vida humana e da realidade que nos cerca. A esse respeito, remeto o leitor a NATTIEZ (1990, 2002).

 

4 As ideias do poeta francês Paul Valéry sobre tradução encontram-se em seu texto introdutório para suas traduções das Bucólicas de Virgílio, de 1944. Suas ideias são comentadas por Haroldo de Campos em seu texto Paul Valéry e a poética da tradução.

 

5Gênero musical originário do nordeste brasileiro, onde é especialmente popular. Consiste em uma melodia declamatória, em valores rápidos e intervalos curtos, entoada por uma dupla de cantadores que respondem um ao outro de forma improvisada, ao som de um pandeiro. Neste desafio, o cantador tenta denegrir a imagem do outro que lhe faz dupla com versos ofensivos, famosos pelos palavrões e insultos utilizados. O metro é normalmente em redondilha maior ou em versos de seis sílabas. As letras são geralmente cômicas, satíricas ou descritivas. Ver Dicionário Câmara Cascudo ou o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (2002).

6 Acordes com adição de segundas. Os sons acrescentados desempenham principalmente uma função colorística, variando sobretudo a textura em lugar da função de uma estrutura harmônica básica. Mais do que simples ornamentos, os sons acrescentados são verdadeiros membros de cor que rivalizam com a terça do acorde em potência de colorido, aumentando o interesse e a densidade harmônica (Cf. PERSICCHETTI, 1961, p. 109-120).