As modas alentejanas: o legado dos filhos da terra
Teresa Sofia Nobre dos Santos Coelho1
Resumo: Este breve estudo pretende refletir sobre o modo de cantar e de “contar” de um povo originário do sul de Portugal, o Alentejo, e parte das suas transformações, desde os primeiros textos orais recolhidos, início do século XX, à atualidade, num contexto histórico-social. Através do silêncio das suas vozes, o único instrumento utilizado nas “modas”, estes cantadores purgam os seus sofrimentos, retratam parte das suas rotinas, contribuindo para a construção da sua identidade cultural e de sua memória coletiva.
Palavras-chave: Cante; Moda; Alentejo; Trabalho; Dor.
Abstract: The purpose of this short study is to reflect upon how the people of Alentejo (South of Portugal) share their culture through song and story, from a social and historical perspective, and how these oral texts have suffered changes from when they were first collected in the beginning of the 20th century up to our days. Through the silence of their voices, the only instrument that is used in the folklore singing (“modas”), these “work singers” release their suffering, share part of their routines, thus contributing to the construction of their cultural identity and of their collective memory.
Keywords: Folklore Singing; “Moda”; “Alentejo”; Work; Grief.
Introdução
José Gomes Ferreira, escritor e poeta português (1900-1985), nascido no Porto, epitoma a ideia global deste texto num verso seu “ Nunca vi um alentejano cantar sozinho com egoísmo de fonte”. De facto, estes homens, mulheres2 e mesmo crianças, cantam, em todas as ocasiões, reunidos em grupo, até pela “exigência” da estrutura musical das modas: o Ponto (1ª voz), o Alto (uma ou duas vozes numa oitava acima) e o Coro (conjunto de baixos). Contudo, quem conhece intrinsecamente essa forma de “cantar”, sabe que apesar de se estar incluído num grupo, cada um dos indivíduos eleva a sua (própria) palavra. As modas não promovem o diálogo físico entre os cantadores, assumem uma linguagem corporal rígida enquanto cantam: lado a lado, não se olham, encostados uns aos outros embalam os corpos em movimentos que lembram as espigas das searas ao vento e ecoam uma espécie de monólogo coletivo, originando um conceito de “solidão uníssona”, uma solidão que se sente partilhada, num grupo que apresenta as mesmas “dores”. Esta afirmação reforça-se na expressão “A solidão é um comportamento verbal”(TODOROV, 2003, p.141), na medida em que se manifesta e que se torna fisicamente visível: esse canto é sério, dolente e, solenemente, vai curando a alma, compenetrado, espelha os traços do homem alentejano: prudente e contemplativo, que trabalha de “sol a sol”, quase sempre escaldante, sob um céu de azul infinito entre vastas planícies e que, por e através dessas características, respiram outros conceitos de “tempo” e de “espaço”. O escritor alentejano José Luís Peixoto constata que “cismar” e “vagar” são palavras de cariz existencial muito frequentes no léxico alentejano, e que transformam os conceitos de “tempo” e de “espaço”, alargando-os, prolongando-os e que contribuem para o conceito de “ser alentejano”3.
A grande maioria das modas alentejanas inscreve-se no modo lírico, pelas suas características formais: constituídas por versos que rimam, apresentam léxico local, daí a mesma moda apresentar variantes de região para região alentejana. São redigidas por poetas populares, muitos deles anónimos e analfabetos. Não obstante o seu carácter lírico, a narratividade desses textos equivale às suas vidas severas e intermináveis assumindo a designação de narrativas poéticas. De facto, as modas são curtas estórias, e as mais antigas, muitas vezes, pequenas peças sobre outras histórias: “fazer uma moda a...qualquer coisa”.
Um dos possíveis “diálogos” construídos nestes textos populares estabelece-se com os animais que, com ele, trabalham a terra na partilha do trabalho árduo, e surge como estímulo à sua resistência, de forma a não afrouxarem, à semelhança do que acontecia no antigo Egito. A “moda da Lavoura” exemplifica essa situação, cantada sazonalmente nessas épocas:
Lembra-me o tempo passado
Tudo se vai acabando
Os bois puxando o arado
O almocreve cantando
[…]
Pensando em ti minha amada
Lembra-me o tempo passado
Tudo se vai acabando
Os bois puxando o arado
Esses cantadores são lídimos “so(u)listas” e, numa aliteração, define-se e circunscreve-se o jogo fonético: a sul, solistas, solitários, sofrem – cantando.
O termo “Cante” surge como uma derivação popular da palavra “canto”, sendo o Cancioneiro Alentejano constituído por “modas”. O Cante inscreve-se entre a zona do Baixo Alentejo até à zona de Portel, na fronteira com o Alto Alentejo, onde a forma de cantar, para norte, assume a designação de “Saias”.
Poderá estar, de alguma forma, relacionado o étimo “moda” com a “modinha” brasileira? Veja-se, por exemplo, como o cantor alentejano da atualidade, António Zambujo, combina o Cante tradicional com o “chorinho” brasileiro, estabelecendo uma perfeita sintonia entre ambos, identificando pontos comuns.
De acordo com o sítio Wikipédia, o vocábulo “moda” tem origem portuguesa e surge como sinónimo de canto, melodia ou música. No Brasil assumiu o significado de um tipo de canção rural (à semelhança da moda alentejana). Ainda, a temática dominante nas modas espelha três aspetos básicos: a saga dos boiadeiros e lavradores, o anedotário caipira e as histórias trágicas de amor e morte.
A “ moda”, segundo a Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, define-se como sendo um tipo antigo de canção portuguesa, de fundo amoroso, cujo diminutivo designaria aquela que nos séculos XVIII e XIX se iria nacionalizar como “modinha”, por aceitação popular, no Brasil, apesar do seu nascimento português.
Todavia, “moda” aproximar-se-á do significado de “música” na linguagem popular portuguesa (pelo menos do sul) e não se julga ter derivado de “ modinha”. Contrariamente, será “modinha”, que na sua substância provém de “moda”, mas “moda” no sentido de música em geral, não de música alentejana. Ainda de acordo com aquela enciclopédia, é no século XVIII que “moda” e “modinha” se começam a diferenciar, ganhando esta última autonomia como canção, dissociando-se do folclore português ou de qualquer tipo de canção rústica ou telúrica. É aqui levantada a teoria da modinha ter recebido influências da canção palaciana dos séculos XVI-XVII, uma vez que foi sempre considerada uma canção de sala.“Era moda cantar a moda” durante o reinado de D. Maria I (1734-1816).
Observe-se que nesse período, na segunda metade do século XVIII, começou o interesse pela cultura popular tradicional. Os nobres e os burgueses, modelados pela cultura greco-romana e influenciados por ideias iluministas, como as de Jean-Jacques Rosseau, procuravam nas formas de estar do povo a sua revitalização interior, pois, segundo as teorias dos iluministas, e por défice de alfabetização, o povo mantinha uma “pureza” cultural ligada às suas próprias origens: aqui residia o segredo dessa reforma.
Hannah Arendt, uma das principais pensadoras alemãs do século XX, defende que foi no seio de um povo agrícola que nasceu o conceito de “cultura”. Atente-se nas metáforas recorrentes que são tecidas entre a prática rural e o desenvolvimento espírito humano por criadores de várias áreas do saber e do conhecimento, desde Cícero na expressão “Cultivar o espírito” a Charles Dickens, em Hard Times, ao intitular as três partes dessa obra “Sowing” (Semear); “Reaping” (Colher); “Garnering” (Armazenar).
A região do Alentejo constitui-se no imaginário social quase como um sinónimo de agricultura. No sul latifundiário, as relações homem-terra e grupo-terra traduzem-se num vínculo muito forte: um grupo de pessoas canta “canções de trabalho”, de forma a aliviar o seu sofrimento e segregação relativamente à opressão dos proprietários, ao contrário do que acontece a norte, onde as pessoas trabalham para si. Momentos na História como a Guerra de Secessão nos Estados Unidos da América ou a chegada dos escravos ao Brasil ilustram bem esta afirmação. Torna-se paradoxal como a abertura das planícies do sul se transformam num fechamento, num ensimesmamento.
A estrutura socioeconómica do Alentejo, os temas das modas e o ritmo do Cante indiciam que este era cantado exclusivamente por trabalhadores rurais, no início do século XX. A sociedade alentejana apresentava uma nítida estratificação firmada na produção agrícola e no latifúndio: o lavrador, proprietário, “senhor das terras” e o empregado contratado. O trabalho assalariado era uma realidade, a mão-de-obra fixa era escassa para uma larga maioria de trabalhadores temporários, recrutados sazonalmente. Nesses afazeres rurais, desde a sementeira à ceifa, nasceram os cantares de trabalho, com uma cadência própria: o tipo de atividades agrícolas em grandes grupos promoveu o hábito de cantar em conjunto, quer durante a execução do trabalho quer nas idas e vindas dos campos. As extensas planícies alentejanas e as grandes distâncias entre as localidades também proporcionaram este género de canto e a prova da influência do espaço geográfico na origem das formas culturais.
No Cancioneiro Alentejano – recolha de Victor Santos, Fernando Lopes Graça (1968) defende: “O alentejano canta com verdadeira paixão e todas as ocasiões lhe são boas para dar largas ao seu lirismo ingénito. Não há trabalho, folga, festa ou reunião de qualquer espécie, sem um rosário infindo de cantigas”4(GRAÇA, 1968).
O mesmo autor defende ainda: “(…) o povo alentejano é o mais musical da gente portuguesa, entendendo-se por aí a sua disposição ou a sua capacidade natural para se traduzir e consciencializar em canto, a sua rara espontaneidade mélica (…)”.
A figura do “canta (dor)” foi originalmente criada no Alentejo, consequência de um canto popular único. Citamos Manuel Ribeiro em Lembrança dos Cantadores da Aldeia Nova de São Bento, Mértola, Vidigueira e Vila Verde de Ficalho, consultado no Blogue “Do Tempo da Outra Senhora” de Hêrnani Matos, com data de 1 de março de 2010:
Só no Alentejo há o culto popular do canto. Ali se criou o tipo original do “cantador”. Pelas esquinas, altas horas, embuçados nas fartas mantas, agrupam-se os homens[…]e donde se eleva um canto entoado, solene e soturno, com o quer que seja da salmodia dum côro de monges?” (MATOS, acesso em 22 maio de 2013).
Manuel Dias Nunes diz-nos, ainda, numa publicação da revista Tradição, em Serpa, berço do Cante, num excerto de 1902:
Os grupos de cantadores atingem às vezes enormes proporções. Assim, ocorre, geralmente, por ocasião das festas religiosas […] e também pelo apanho da azeitona, quando se realiza alguma diafa. E chega a ser deveras imponente a perspectiva de tão lindas procissões seculares, compostas de homens e mulheres, em pêle-mêle, todos vestidos com os seus garridos trajos campesinos, e a cantarem em coro, alegremente, numa prodigiosa afinação e harmonia, como se porventura obedecessem aos mais rigorosos preceitos da arte musical!
Hernâni Matos, ainda, no mesmo blogue defende: “O cante toca a alma, porque ele próprio é a alma alentejana no melhor da sua expressão”. Para enfatizar as suas palavras, cita Eduardo Teófilo em Alentejo não tem sombra:
Há, no entanto, a ligá-los a todos, algo de próprio, de indefinidamente próprio e que os torna reconhecíveis em qualquer lugar em que se encontrem (...) Todos eles estão marcados a fogo, pelo fogo daquele Sol ardente que, mesmo quando mal brilha, entra nas almas e molda os caracteres, todos eles apresentam o seu rosto cortado por navalhadas de vida e tostados pelas ardências do Sol de Verão, como se vivessem todos, realmente, sem uma sombra a que se abrigar.
No mesmo sítio eletrónico, é mencionado Antunes da Silva em "Terra do nosso pão": “As cotovias cantam para o céu, tresnoitadas. Os Alentejanos cantam para os horizontes, sonhando. Dessas duas castas melodias nasce a força de um povo!”
Na construção identitária que é o Cante alentejano, as contribuições das afirmações de Manuel Dias Nunes ou de Hernâni Matos, não obstante revestidas de efeito oratório e puramente literárias, são importantes, na medida em que revelam o peso identitário que estes autores atribuem ao Cante e como o consideram algo único e ligado ao Alentejo. Declarações desse tipo são, afinal, românticas, sem fundo científico e que descendem, em última análise, de teorias criadas na Alemanha do século XVIII, das quais o filósofo J.G. Herder é ilustrativo: “Todos os povos rudes cantam e agem; [...] As suas canções são o arquivo do povo, [...] são o decalque do seu coração”5. Esse teórico romântico defende a premissa que existe uma essência imutável a cada país e a cada região, veiculada pela cultura rural que se torna perene e única, independentemente da cultura dos outros povos. Como se explica, então, o facto de existirem diferentes versões da mesma história ou da mesma canção noutras línguas / noutros países?
Que “contam” as modas (?)
As modas celebram a palavra, num exercício associado ao de introspeção e reflexão, expressadas em gestos de “gratidão” à “terra-mãe”, por exemplo, na letra de
“Alentejo, Alentejo”
Terra sagrada do pão
[…]
Eu sou devedor à Terra
A Terra me 'stá devendo
A Terra paga-m'em vida
Eu pago à Terra em morrendo
[…]
A Terra me 'stá devendo”
A simbologia impregna os textos dessas modas alentejanas nesse tipo cantar melismático de “intervenção” que quase se pode considerar “romântico”. Essa teoria justifica-se, na medida em que as modas alentejanas apresentam algumas das características desta corrente estético-literária, surgida nos finais do século XVIII – o romantismo –, como por exemplo, o tema da natureza; o mundo pessoal e os sentimentos do “eu”; o sentimentalismo; a idealização da mulher; a ânsia de liberdade; a solidão e a evasão, e ainda, as versificações popularizantes como característica formal do texto.
Em alguns versos é estabelecida uma relação simbólica, onde a natureza do signo é alheia à natureza do objeto designado. Por exemplo, identificam-se inúmeras referências “à água” e “às fontes”, que podem ser subentendidas como um desejo de regeneração ou de sobrevivência do homem alentejano, na subtil denúncia de um regime totalitário. Destaquem-se modas como “Dá-me uma gotinha d’água” ou “ A ribeira quando enche”.
As letras das modas, na década 1930-40, não aludem às precárias condições de trabalho que se vivem, nem tecem quaisquer referências à entidade patronal devido ao clima de opressão. Mais tarde, como já aqui se aludiu, foi “permitido” às mulheres (e crianças) integrarem os Grupos Corais. Antigamente, estas, apesar de também trabalharem em atividades agrícolas, desempenhavam outras tarefas, como se pode verificar na moda “Fui-te ver estavas lavando”.
Há ainda as modas de cariz religioso, que empregam alguns símbolos de índole divina, como o “pão”, “ o vinho”, “ a espiga” com o significado de “vida” e ainda, julga-se, a criação de imagens bíblicas, como na moda “ Fui colher uma romã”:
Fui colher uma romã
Estava madura no ramo
Fui encontrar no jardim
Aquela mulher que eu amo
[…]
E o ramo caiu ao chão
– cuja situação metafórica pode remeter ao gesto de Adão e Eva ao colher o fruto, no Paraíso.
O Cante: costume ou tradição?
O Cante surgiu sob a alçada da tradição6 religiosa da bacia do Mediterrâneo. Sabe-se que é muito antigo cantar em grupo, mas antes do final do século XIX não há registos, documentos alusivos ao Cante. Apontam-se origens gregorianas, eclesiásticas ou cristãs, mas também origens arábicas ou islâmicas7.
Quando o Cante “sai” dos campos para os “palcos”, forma-se o primeiro Grupo Coral em 1926: o grupo do Sindicato dos Mineiros de Aljustrel, cujo espaço/local de trabalho, “a mina de Aljustrel”, surge como pretexto para que o mesmo se organizasse, no Sindicato.
De acordo com os estudos de Eric Hobsbawm (1992), os “costumes” assumem-se informais, coletivos, livres, diversos e variáveis, envolvem gerações e as “tradições” como atos formalizados, repetitivos, invariáveis e ritualizados: os costumes fundem-se em condutas vernáculas e as tradições em momentos institucionais.
Essas premissas, em conformidade com os estudos desenvolvidos por José Rodrigues dos Santos8, sugerem que o Cante Alentejano assume um “caráter participativo” quando acontece nos campos, nas tabernas, junto à lareira ou noutros contextos idênticos, configura-se informal, apresentando uma estrutura social aberta, equalitária e coesiva, todos participam na arte da ornamentação (que acontece ao “bem querer” dos intervenientes), a métrica é irregular, não há compassos (tempo rubato). A distinção entre artista/audiência é inexistente, e verifica-se uma “pressão” natural para que todos participem.
Em contrapartida, os Grupos Corais obedecem a uma forma canónica, num tipo de “Cante Apresentacional” cuja estrutura é fixa, fechada, normativa, institucional, que depende de subsídios e do mercado, cuja métrica é regular com compasso determinado; além disso, sua ornamentação tende a desaparecer ou a ser mais limitada, ficando reduzida aos solistas. A distinção entre o artista e a audiência é vincada, verificando-se a responsabilidade de fornecer “boa música”: os timbres e texturas são claros, transparentes, sem densidade, os repertórios oferecem variedade entre as peças, há necessidade de alternar momentos mais alegres com outros mais melancólicos, ao contrário das músicas participativas, onde se canta em círculo, os “maus” cantores não são (tão) criticados, a inovação é permitida, mas o privilégio é concedido a modas que todos conheçam.
Em suma, segundo as teses de Hobsbawm, o “Grupo Coral Alentejano” constitui uma tradição e não um costume.
O Cante sai das planícies
A diáspora alentejana dos anos 50, relata a “fuga” de muitos alentejanos da exploração latifundiária, de um regime ditatorial e que se radicaram na margem sul do Tejo, dando origem a uma fusão de culturas nos Grupos Corais ali constituídos, revelando que um povo apesar de ser forçado a sair em busca de melhores condições de vida, continua a preservar a sua ligação à terra:
“Vou-me embora pra Lisboa”
Alentejo terra do pão
Onde eu tenho a residência
[…]
Chora por mim, que eu choro por Ti
Já deixei o Alentejo
Cante Alentejano: vivências e Cante na margem Sul, da autoria de Maria Eduarda Rosa, apresenta um trabalho de recolha e divulgação da poesia e música popular alentejana. Nesse texto, a autora relata vivências com o “Grupo 1º de Maio do Bairro Alentejano de Palmela” (que já tem um livro publicado), salientando o aspeto “pedagógico” do Cante, descrito nas palavras das gentes da margem sul, que não são alentejanas e que “vivem” o Cante como uma terapia e um motor de iniciativa para outras atitudes de cidadania.
Na análise ao conteúdo das letras das modas, são identificadas algumas diferenças nos textos dos Grupos Corais Alentejanos e os Grupos Corais Alentejanos constituídos na margem sul. Verifica-se que os temas são os mesmos, mas os últimos, os que se “libertaram” da planície cantam de forma mais interventiva, mais denotativa, mais aberta, pois “podem tirar um homem do Alentejo, mas não podem tirar o Alentejo de dentro de um homem” (depoimento de um cantador). Contudo, talvez por serem constituídos por faixas etárias mais velhas, esses grupos oferecem mais resistência às mudanças de rituais, preferindo manter o que trouxeram. Na “encenação” do Grupo muitos recusam, por exemplo, o uso de relógios de pulso. Veja-se a moda “Ó Patrão dê-me um cigarro”, que sugere um “convite”, uma aproximação entre as duas classes sociais – empregado e patrão –, ou o estabelecimento de uma relação mais cordial entre ambos, sem deixar de denunciar, através da ironia, as relações de poder, nos últimos versos:
Ó patrão dê-me um cigarro
Acabou-se o tabaco
E o trigo que eu hoje entarro
Fumando dá mais um saco
[…]
Ai de nós o que seria
O rico comprava a morte
Só o pobre é que morria
Com o fim da ditadura, em 25 de abril de 1974, surgem as coletividades no Alentejo, e estas como (novas) portadoras do Cante: a ligação desses homens e mulheres à terra e a forma como a coletividade influencia a história dos Grupos Corais é notória. A herança do Alentejo rural é o traço comum entre os cantadores, que cantam, sofrendo, reivindicando o direito da dignidade das condições de trabalho no latifúndio, dizendo ao mesmo tempo que não desistirão. A memória coletiva é o legado a novos cantadores: “É o passado que tentamos divulgar (…) levar o sofrimento de um povo que cantava, chorando”.9 “População sem terra”: é esta a gente que canta, corpos pesados frutos do trabalho.
O “ser alentejano” e o Cante Alentejano
A identidade cultural das gentes do Alentejo está intimamente ligada ao Cante, na medida em que este adorna as suas vidas. As teses de Salwa Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco apontam o processo de folclorização como o “(…) da construção e de institucionalização de práticas performativas, tidas por tradicionais, constituídas por fragmentos retirados da cultura popular, em regra, rural” (CASTELO-BRANCO e BRANCO, 2003, p. 1), comprovam que essa forma de cantar representa um claro recurso na construção de identidades.
O afã d’ “a terra a quem a trabalha”10 estende-se à forma de reclamar para si, também, o seu modo de cantar. O alentejano é tido por não aceitar que o Cante se torne “viral”, recusando a sua “banalização”, uma vez que, por norma, em quaisquer circunstâncias, existem rituais a seguir e, por exemplo, quem chegue de fora e os desconheça e tente cantar com o grupo será sempre “criticado, apontado”. Comentam: “Não é qualquer um que o pode cantar. Pois, só quem trabalha a terra conhece bem o modo certo de o dizer. É um povo que canta chorando” (depoimento de um trabalhador agrícola alentejano recolhido numa taberna).
Verificam-se aqui, nessas asserções, mais uma construção mental edificada através das teorias românticas de Herder, que já se referiram anteriormente, adicionando-lhes as premissas resultantes das investigações de Ana Flávia Miguel, Isabel Castro, Flávia Duarte Lanna e Alexsander Duarte expostas no artigo “Quatro estudos de caso sobre a música e a identidade em Portugal, Cabo Verde, Moçambique e Brasil” incluído no(s) Cuadernos de Etnomusicología, nº1 de 201, online. Esses autores defendem que, devido a uma desterritorialização do modo de vida rural, acontece um desenraizamento da música. As práticas rurais praticamente desapareceram com o progresso e o Cante assume um importante papel de representação dos bens simbólicos e imagéticos. Citam, ainda, De Certeau – “o espaço é um lugar vivido” –, sublinhando que “através da (inter)ação e a comunicação, os lugares transformam-se em espaços de comunicação....”.
Nessa perspetiva, a lavoura, a ceifa, a apanha da azeitona, todos os trabalhos agrícolas evocados pelas curtas narrativas poéticas que constituem o Cante, são espaço, são a representação simbólica de um lugar onde os códigos socioculturais se defrontam com os valores inerentes à vida contemporânea. Desta feita, e ainda de acordo com esse artigo, a agricultura transforma-se numa representação simbólica de um tempo/espaço que já não pertence à realidade, e que, como tal, existe apenas na imaginação, quer pela memória daqueles que nela tiveram experiências vividas, quer não. À evocação desse espaço imaginado através da música designa o artigo por “miragem sonora” (p.144), como sendo a recriação de uma paisagem através da música, instrumental ou em forma de canção com letra, onde se consegue um transporte imagético, no tempo e no espaço, e por meio dos símbolos sonoros e poéticos “reterritorializar-se” na memória e na imaginação.
A questão do Cante, à semelhança da problemática da terra, parece não ser “democratizável”. Na opinião desses homens, quem canta o Cante, quem trabalha a terra aufere direitos sobre eles. Nos tempos de crise atuais que se vivem em Portugal, recorda-se uma das modas alentejanas “Grândola, vila morena”, que serviu como senha para a revolução dos cravos de 25 abril de 1974 e que terminou com o regime de ditadura de quarenta anos. Parece duvidoso considerar-se a “Grândola” uma moda alentejana. Nem a sua autoria é popular, nem foi gravada, inicialmente, por um Grupo, mas sim por um cantor solista, Zeca Afonso, que a cantou, em jeito de dedicatória, à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, numa atuação e “alguém” adaptou a letra à situação político-social que se vivia. Trata-se sim de uma canção que se inspirou as modas corais alentejanas, tal como as “Quadras ao gosto popular” de Fernando Pessoa se inspiram nas quadras tradicionais, mas não constituem quadras tradicionais.
Numa atitude revivalista, como forma de protesto e de resistência, vários grupos sociais cantam-na perante os ministros de estado em tertúlias, colóquios e reuniões. Até Espanha, também vivendo uma grave situação económico-social, se manifestou popularmente entoando a “Grândola”11. Em declarações à comunicação social sobre esse acontecimento, o povo alentejano, natural daquela vila alentejana, lamenta-se: “Não está certo, é o nosso Cante…parece que estão a gozar com a gente!”.
É muito curioso verificar o paradoxo dessas afirmações: esse povo assimilou a canção de José Afonso, considerando-a sua propriedade. Não obstante tratar-se de uma construção, uma vez que a canção não nasceu lá, que não é uma canção tradicional, que nem sequer é antiga, e nada tem de especificamente grandolense (para além da referência ao nome da vila), esta canção foi alçada a símbolo identitário pelo seu povo. Terá sido a fama que obteve que fez nascer nas pessoas da terra o desejo inconsciente de se identificarem com ela, de a verem como um símbolo seu, de Grândola, ideia que, porventura, o resto de Portugal não edifica (para um português de outras regiões e, talvez até de alentejanos de outras zonas, a Grândola é o símbolo do 25 de Abril, é uma canção reivindicativa, ou coisas similares; essas pessoas não a veem, certamente, como apenas um símbolo da vila de Grândola).
Assim e, em conformidade, com as teorias descritas no artigo retirado do(s) Cuardernos de Etnomusicolgía, os depoimentos das gentes de Grândola não são sustentáveis ou legítimos, uma vez que a mente faz-se território e a miragem sonora é a retemporalização e o reenraizamento dos códigos socioculturais e, por conseguinte, o Cante pode ser cantado quer por (ex) trabalhadores rurais quer por funcionários públicos.
Na edição n.3, jan-jun 2013 da Revista Brasileira de Estudos da Canção, Leandro Maia, no interessante artigo “A Palavra-Canto é uma Ponte”, apresenta alguns conceitos pertinentes que podem ser pensados à luz da problemática do Cante. Nesse estudo, o autor “confronta” os conceitos de “palavra” e de “música”, como esses se podem afastar e aproximar entre si através do instrumento da voz, ou da ausência dela, na construção do que consideramos “canção”, sustentado nos estudos de outros autores, por exemplo, Luiz Tatit, que “ocupa lugar de extrema importância como teórico da canção brasileira, dedicando-se tanto à pesquisa semiótica na Universidade de São Paulo (USP), quanto à reconhecida trajetória como compositor popular”, e de EL HAOLI sobre o conceito de “voz-música”.
Em consonância com estas premissas, Todorov afirma:
A fala-ação é percebida com uma informação, a fala-narrativa, como um discurso (…) a fala-narrativa concerne ao modo constativo do discurso, ao passo que a fala-ação é sempre um performativo (TODOROV, 2003, p.99).
O mesmo autor acrescenta:
Para entender corretamente o sentido da fala, devemos indagar primeiro a relação que esta mantém com o que ela denota, relação que pode adotar várias formas. Temos inicialmente a relação mais clássica, que podemos chamar de simbólica (…) (TODOROV, 2003, p.142).
Desse modo, poder-se-ão enquadrar as modas alentejanas na designação de Palavra-Canto? A palavra-falada sobrepor-se-á à palavra-cantada? Aproximar-se-á o sentido da palavra no Cante mais do aspeto utilitário, dadas as suas características solenes, sérias, dolentes que “narram” o quotidiano e dada a ausência de instrumentalização? Ficam as reflexões, certos que “ Cante a Palavra!”, porque a palavra no Cante constitui-se como um dos fatores mais “pesados”.
O Cante dos nossos dias
Recentes portadores do Cante Alentejano (ou novos inventores) tentam manter o cunho rural da prática, apesar da urbanidade, da extinção das coletividades, da diáspora e desruralização aliadas a recentes consumos culturais e à perda de influência dos grupos tradicionais. Os grupos de cantadores estão a renovar-se. Os mais novos conhecem e gostam das modas, têm paixão pelo cante, mas acabam por entrar com uma idade mais avançada nos grupos.
A questão da autoria também se levanta, pois registam-se modas novas, mas estas apresentam-se como colagem às antigas; muitas vezes só a letra é diferente, num exercício de atualização, mantendo a mesma estrutura musical. Outras vezes, tem-se um conjunto de formas de cantar melismáticas, ou seja, uma só sílaba é entoada com diversas notas.
O Cante Alentejano é sinónimo de recurso porque nos oferece inúmeras possibilidades de execução, pelas suas qualidades intrínsecas, desde a poética à agregadora. Pretende-se um Plano de Salvaguarda que não seja conservador, mas antes “transformador”, adaptando as suas “raízes” à passagem do tempo.
Nessa ótica, dois irmãos dos mais mediáticos cantadores alentejanos da atualidade, Janita e Vitorino Salomé, encetaram um projeto musical “Moda Impura” (impura, segundo eles, porque recebe influências do século XXI, corroborando TODOROV (2003, p.91). “Fala-se às vezes de uma narrativa simples, sadia e natural, de uma narrativa primitiva, que desconheceria os vícios das narrativas modernas.”), que introduz novos elementos ao Cante sem o descaracterizar.
A “Moda Impura” amplifica ou multiplica o conceito de Cante, adicionando-lhe instrumentos musicais como o piano, a flauta, a guitarra acústica, mantendo a sua estrutura vocal original (ponto, alto, coro), modificando algumas letras, enfim, “modernizando-o”. Arranjos instrumentais acompanham as letras das modas tradicionais e registam-se ainda letras, consideradas mais eruditas, uma vez que são da autoria de António Lobo Antunes12. Contudo, os temas e os universos das modas antigas são respeitados. Por exemplo,“ Os mortos dos retratos”, que são eternizados em fotografias a preto e branco, nas paredes, cómodas ou mesinhas de cabeceira das casas alentejanas:
Olho os mortos dos retratos sempre a olhar para nós,
Conversam sem fazer gestos e falam sem terem voz.
E falam sem terem voz,
A não ser a voz do vento,
Até que a morte nos diga:
– Filho, já vai sendo tempo
Considerações finais
Saliente-se, uma vez mais, a importância do Plano de Salvaguarda do Cante Alentejano, dada a perda dos seus portadores mais ativos, as coletividades. Este, que não passa só pela sua recente candidatura, apresentada à Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a Património Cultural Imaterial da Humanidade, mas sobretudo, por uma revitalização da sua prática, como a título de exemplo, a criação de escolas de música, a sua inclusão nos programas educativos, entre outras.
O Cante ganhou autonomia pela sua riqueza musical, poética e identitária, ocupando um lugar de destaque no panorama da música. Contudo o Alentejo está cada vez mais “abandonado e envelhecido” e é fundamental sensibilizar os mais jovens a preservá-lo, descobrindo a sua “categoria radial”, originando “outros cantares”.
Assiste-se hoje a um naipe de novos músicos, alentejanos, como António Zambujo, que aproxima o Cante ao conceito de “canção”, ou Pedro Mestre, que acompanha as modas com a viola campaniça e desempenha um papel pedagógico e didático significativo na divulgação e preservação do Cante entre os mais novos.
Tornam-se inesgotáveis as possibilidades de conjugação de variáveis que o Cante como recurso tem para oferecer…e quem sabe, talvez Camões na sua fase mais acentuada de oralidade ou popularizante, em vilancetes, onde captou o encanto de pastorelas, o sabor pastoril, o desabafo, ou a confidência das cantigas de amigo pudesse ter criado algumas dessas modas.
A evidenciar que o Cante está vivo na memória do seu povo e associado a uma voz ativa, um amigo dizia-me há dias, ao telefone, “Esta noite, enquanto ouvia o discurso do Primeiro-Ministro, só me vinha à lembrança os versos e a melodia de uma cantiga de uma moda alentejana muito antiga, mas cada vez mais atual”:
Há lobos sem ser na serra
acreditem que é verdade
abandonaram os campos
foram viver para a cidade
Referências
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CASTRO, Mário de Alentejo. Terra de Promissão: linha geral de um pensamento agrário. [S.l.]:Tipografia da “Seara Nova”, 1932.
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GRUPO “Cantares de Évora: Cantares às terças- modas do Cancioneiro Tradicional. Disponível em: http://www.pedexumbo.com/old/images/stories/aprendemos/CANTE_2011_jan.pdf. Acesso em 06 maio 2013.
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Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol.13. Lisboa: Editorial Verbo,1972.
1 Professora de Português e Inglês. Licenciada pela ESEB e mestre em “Criações Literárias Contemporâneas”, pela Universidade de Évora, em 2010, cuja dissertação origina a publicação do seu 1º livro, Cria-ti: manifestações de criatividade no processo de cocriação, pela Chiado Editora. Atualmente, frequenta o Programa de Doutoramento em Literatura, na Universidade de Évora.
2 Apesar de se julgar que as mulheres só participaram mais tarde no Cante, por estarem sempre associadas à formação dos Grupos Corais, note-se que Michel´angelo Lambertini (1862-1920), quando esteve em Serpa em 1907 e ouviu o Orfeão Popular de Serpa, fala do canto das mulheres. Os primeiros grupos corais femininos constituíram-se na década de 1970, quatro décadas depois das primeiras formações masculinas. Atualmente, ainda estão em minoria.
3 Programa televisivo “O Portugal de…”, exibido em 16 de janeiro de 2013, na RTP1.
4 Fernando Lopes Graça, excerto da palestra acerca do Cante alentejano proferida em 1968.
5 Herder, artigo “Sobre a Semelhança entre a Poesia Medieval Inglesa e a Alemã” (1777, p.206-207), retirado do texto “Quando e porquê começou o interesse pela cultura popular tradicional”, da autoria do Prof. Doutor José J. Dias Marques, atual docente na Universidade do Algarve.
6 Considere-se o termo “tradição” o usado por Hannah Arendt, como “o fio que nos guia com segurança através dos vastos domínios do passado”.
7 Para um conhecimento mais aprofundado nesta área, sugerimos a consulta da bibliografia de Joaquim Roque (1913-1995), professor, estudioso, publicou “Alentejo Cem por Cento- Subsídios para o estudo dos Costumes, Tradições, Etnografia e Folclore Regionais” (1ª edição,Beja,1940; 2ª edição, Ferreira do Alentejo, 1990, Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo,195 páginas).
8 José Rodrigues dos Santos, antropólogo, professor associado com agregação, Academia Militar, investigador integrado, CIDEHUS (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, Universidade de Évora).
9 Depoimento de uma ex-ceifeira alentejana (trabalhadora rural) e cantadora num Grupo Coral.
11 “Jornal de Notícias” de 17 de fevereiro de 2013.
12 Dois dos livros deste autor receberam influência do Cante Alentejano. “ Eu hei-de amar uma pedra” e “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?” são dois versos retirados de modas tradicionais alentejanas, este último alusivo aos três reis magos, extraídos de uma moda de natal do final do século XIX. O Cante, aqui, como impulsionador da criação literária).