A Melopoética Cultural do Sertão do Moxotó: Uma profecia cantada
Adriana Soares de Almeida1
Resumo: Este artigo se propõe a investigar as relações entre música e literatura na canção “Profecia (Ou Testamento da Ira)”, do grupo pernambucano Cordel do Fogo Encantado, de forma a compreender os sentidos dessa composição interartística e como ela reinventa as tradições cristalizadas sobre a imagem do sertão. Várias implicações surgiram dessa abordagem e para respondê-las nos valemos do trabalho pioneiro de Steven Paul Scher e seu conceito de Melopoética (melos = canto + poética), que abarca os estudos de comparativismo musical-literário, buscando as conexões entre essas artes. Junto às ideias desse autor, a noção de Melopoética Cultural, presente nas obras de Solange Ribeiro de Oliveira, também nos serviu de base. Além disso, consideramos pertinente o diálogo entre a melopoética e o conceito de poesia oral desenvolvido pelo medievalista Paul Zumthor, bem como a sua ideia de performance.O processo analítico por nós utilizado buscou demonstrar como se manifesta na canção trabalhadas a presença da literatura e da música e como essa conexão é responsável pela transcriação de um sertão híbrido que teima em se reinventar.
Palavras-chave: Sertão; Poesia oral; Melopoética; Performance.
Abstract: This article aims to investigate the relations between music and literature in the song “Profecia (Ou Testamento da Ira)” by the group Cordel do Fogo Encantado, in order to understand the meanings of this interartistic composition and how it reinvents the crystallized traditions about the image of the Brazilian backlands. Several implications of this approach appeared and to answer them we followed the pioneering work of Steven Paul Scher and his concept of Melopoetics (melos = singing + poetic), which includes studies of musical-literary comparativism seeking connections between these two arts. Alongside the ideas of this author, the notion of Cultural Melopoetic present in the works of Solange Ribeiro de Oliveira also served as a basis to our reflections. Furthermore, we
consider appropriate the dialogue between melopoetic and the concept of oral poetry developed by medievalist Paul Zumthor, as well as his idea of performance. The analytical process we used sought to demonstrate how the presence of literature and music manifests itself in the song worked and how this connection is responsible for transcreating a hybrid backland that insists on reinventing itself.
Keywords: Backlands; Oral poetry; Melopoetics; Performance.
Nascido na cidade de Arcoverde, sertão do Moxotó pernambucano, o Cordel do Fogo Encantado carrega em sua obra o hibridismo, no qual novas formas artísticas surgem como resultado de encontros culturais que reinventam as tradições. O grupo, que surgiu como um espetáculo teatral, mais tarde transformado em musical, abarca diferentes manifestações culturais, símbolos de nossa mistura étnica das três raças – índios, brancos e negros – em sua poesia oral. Nessa mistura de diferentes etnias e culturas o quinteto produziu canções que passeiam pela literatura de cordel e pela cantoria de viola, mesclando-se à religiosidade popular do catolicismo sertanejo e suas profecias apocalípticas junto aos batuques africanos e aos santos do candomblé, criando versos de fácil memorização como as poesias trovadorescas do passado quando a oralidade era a força motriz de toda cultura.
A fim de compreender o trabalho do grupo arcoverdense nos guiamos à luz da melopoética, disciplina de interesse da Literatura Comparada que foi desenvolvida pelo professor e crítico literário húngaro Steven Paul Scher, o qual formulou uma tipologia triádica para esse trabalho interdisciplinar: o estudo da música na literatura, que utiliza o instrumental da musicologia para a análise da obra literária; o estudo da literatura na música, que se vale dos conceitos literários para o estudo da música; e a análise que investiga a combinação entre literatura e música.
Essa terceira abordagem será aqui adotada, visto que nosso objeto de estudo é a canção, híbrido de literatura e música, como veremos adiante. Na canção,
[...] o texto literário e a composição musical são inextricavelmente ligados. Juntos, eles constituem uma construção simbiótica que a qualifica como um trabalho de arte completo só se os componentes de ambos estão simultaneamente presentes2 (SCHER, 2004, p.175, tradução nossa).
Buscando as semelhanças e diferenças entre música e literatura, a melopoética serve aos propósitos da arte contemporânea, num momento em que diferentes expressões culturais se encontram interligadas, levando poetas e músicos a transcenderem as limitações comunicativas das formas de arte individuais (SCHER, 2004, p.176).
A melopoética cultural também guiará nosso estudo, visto que esta se interessa pela associação entre conceitos musicais junto a aspectos literários e socioculturais, pois “o estudo da obra de arte, produto cultural, historicamente condicionado, bem como das várias formas de confluência do literário com o musical, pode contribuir para a compreensão da própria história e da própria cultura” (OLIVEIRA, 2002, p.41).
Assim, as relações entre literatura e música podem ser compreendidas pelo material compartilhado por ambas: o som. Como trabalham esse material e em que elas se aproximam e se distanciam pode nos ajudar a compreender essas artes irmãs e suas imbricações responsáveis por novas formas de arte, híbridas, nas quais é possível enxergar o avanço das fronteiras artísticas.
Além da música e da literatura, para compreender o trabalho do Cordel do Fogo Encantado é fundamental a percepção de que o poético necessita da presença ativa de um corpo para existir em sua totalidade de efeitos, necessita “de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas” (ZUMTHOR, 2007, p.35).
Assim, a melopoética dos poetas do sertão do Moxotó, embora possa ser reproduzida nos aparelhos eletrônicos, só alcança maior dimensão poética na concretização da performance, na expansão corporal do grupo endereçada à plateia. A performance é o momento em que a mensagem poética é ao mesmo tempo transmitida e recebida, momento em que se integram todos os elementos de um ato teatral, sejam eles visuais, auditivos, táteis, tudo que manifeste a presença de um corpo (ZUMTHOR, 2005).
O corpo é um dos elementos mais valorizados no trabalho do quinteto arcoverdense e seu vocalista, Lirinha, tem uma expressão corporal muito peculiar. Frequentemente visto no palco como se tivesse os olhos em transe, num estado de consciência alterado, já que poesia é também ritual e por isso a emergência da performance na qual ela se faz viver.
Unindo música, poesia e dança em sua performance, o Cordel do Fogo Encantado retoma a Mousiké grega, numa obra de arte total em que o corpo é o elemento primordial. O caráter ritualístico da teatralidade do grupo é acentuado por suas referências às romarias sertanejas, ao toré indígena, aos ritos africanos e ao fanatismo dos profetas do sertão.
Dessa forma, para melhor compreender o trabalho do Cordel do Fogo Encantado, achamos pertinente uma descrição da performance do quinteto arcoverdense com a consciência de que, assim como a oralidade, a performance perde muito da sua dimensão poética quando reduzida à escrita, pobre em seus atributos para descrevê-las. No entanto, nos esforçaremos para romper essa barreira entre os meios a fim de apresentar a importância do corpo na manifestação desta obra poética oral.
Profecia (Ou Testamento da Ira)
A canção “Profecia (Ou Testamento da Ira)” é a canção que introduz o CD homônimo do Cordel do Fogo Encantado, que foi o primeiro do grupo. Foi um CD concebido no palco, quando o grupo ainda apresentava um espetáculo teatral cujas canções pareciam atos de uma mesma peça.
Em “Profecia (Ou Testamento da Ira)”, mesclam-se os vaticínios de dois profetas representativos do universo sertanejo, junto a mitos e lendas que povoam o imaginário nordestino com suas visões apocalípticas relacionadas aos problemas da seca, da escassez de alimentos e da luta pela terra, temas esses que sempre envolveram a história do sertão.
Profecia (Ou Testamento da Ira)
Salve o povo Xucuru
Na cumeeira da serra Ororubá o velho profeta já dizia
Uma nova era se abre com duas vibras trançadas
Seca e sangue
Seca e sangue
Herdeiros do novo milênio
Ninguém tem mais dúvidas
O sertão vai virar mar
E o mar sim
Depois de encharcar as mais estreitas veredas
Virará sertão
Antôe tinha razão rebanho da fé
A terra é de todos a terra é de ninguém
Pisarão na terra dele todos os seus
E os documentos dos homens incrédulos
Não resistirão a Sua ira
Filhos do caldeirão
Herdeiros do fim do mundo
Queimai vossa história tão mal contada
Ah! Joana Imaginária
Permita que o Conselheiro
Encoste sua cabeleira
No teu colo de oratórios
Tua saia de rosários
Teu beijo de cera quente
E assim na derradeira lua branca
Quando todos os rios virarem leite
E as barrancas cuscuz de milho
E as estrelas tocadeiras de viola
Caírem uma por uma
Os soldados do rei D. Sebastião
Mostrarão o caminho
(LIRA, 2000)
A canção tem início com a saudação “Salve o povo Xucuru”, cuja tribo se localiza na região onde nasceu o Cordel do Fogo Encantado, o sertão de Pernambuco, e que desde a década de 1980 vem lutando para reaver suas terras. Em “Profecia (Ou Testamento da Ira)”, o Cordel do Fogo Encantado defende a legitimidade do discurso Xucuru que deve ser respeitado, e para tanto os toques do toré serão a base rítmica dessa composição.
O toré é uma dança ritual, de batida forte, também chamada batida-mãe, que leva os índios ao contato com o sagrado, com o Panteão dos Encantados. Sua performance se dá através da flauta, também chamada de mimbim, que seria o meio de comunicação entre os índios e os encantados. Enquanto o mestre da gaita toca o instrumento, o puxador do toré, ou bacurau, entoa as canções que seguem o ritmo e são constantemente repetidas; a seguir, surgem os homens em fila indiana, sucedidos pelas mulheres e crianças, que formam um círculo (FERREIRA, 2007, p. 4).
Há também a percussão que guia os movimentos dos pés no chão, e o que se vê então é “um conjunto de batidas, gritos, chiados e gemidos, que penetra nos ouvidos e se mistura com a música do interior do corpo, ativando uma parte da consciência que nas relações cotidianas geralmente está inerte” (ARCANJO, 2003, p.127).
Figura 1: O vocalista Lirinha saúda o povo Xucuru
Performance em Campinas – agosto de 2008
O povo Xucuru, localizado no município de Pesqueira, divisa com Arcoverde, acredita que o toré os leva ao encontro com antepassados que lhes servem como guias na mata sagrada, além de expressar um ritual político na luta por seu reconhecimento étnico e pela demarcação de suas terras, subtraídas desde os tempos da colonização portuguesa.
Os xucurus há muito vêm sofrendo com as disputas pela terra; nos atos públicos, na luta por seu território, o toré é dançado para expressar a dor e a revolta desse povo, cujos direitos, na maioria das vezes, são negados.
Essa dança ritual, cujo ritmo hipnótico leva os índios ao contato com o sagrado, foi absorvida pelo quinteto arcoverdense, e um de seus integrantes, o percussionista Emerson Calado, descendente direto da tribo Xucuru, carrega em suas batidas essa herança cultural; ademais, a disputa pela terra empreendida pelos índios era motivo de preocupação para os integrantes do Cordel do Fogo Encantado que, à sua maneira, repudiavam as mortes de líderes indígenas, assunto esse evitado pela mídia. Em entrevista ao programa “Provocações”, o vocalista Lirinha, perguntado pelo apresentador como queria terminar sua participação no programa, dá a seguinte declaração:
[...] tem uma tribo lá em Arcoverde chamada Xucuru, onde o processo muito violento de desenvolvimento da identidade deles, onde já morreram vários caciques assassinados e agora trinta e uma lideranças dessa aldeia estão com mandado de prisão e estão foragidos, num silêncio enorme da imprensa de Pernambuco, um silêncio grandioso da imprensa nacional nesse assunto. E não só dessa tribo, esses mandados de prisão, mas várias outras tribos de Pernambuco estão com as lideranças sendo acusadas por crimes de formação de quadrilha e outras coisas mais (LIRA, 17/07/2009).
A saudação aos xucurus é respondida em coro pelos outros integrantes do grupo – “Salve” – e pelo público, na forma de aplausos e gritos. Após a saudação, o barulho da maraca, instrumento que marca o ritmo do toré, sacudida por Lirinha, imita o som do chocalho das serpentes e anuncia as palavras do Pajé Cauã do Ororubá: “Na cumeeira da serra Ororubá o velho profeta já dizia / Uma nova era se abre com duas vibras trançadas / Seca e sangue / Seca e sangue”. O uso da síncope – vibras em lugar de víboras – é uma das estratégias do grupo para aproximar os versos da linguagem popular que costuma repelir as proparoxítonas, numa mostra do que Zumthor classifica como índice de oralidade.
Por “índice de oralidade” entendo tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação, quer dizer, na mutação pela qual o texto passou, uma ou mais das vezes, de um estado virtual à atualidade e existiu na atenção e na memória de certo número de indivíduos (ZUMTHOR, 1993, p. 35).
A profecia xucuru se une à fala de Antônio Conselheiro “Herdeiros do novo milênio / Ninguém tem mais dúvidas / O sertão vai virar mar / E o mar sim / Depois de encharcar as mais estreitas veredas / Virará sertão”.
Conselheiro foi uma figura central da Guerra de Canudos, na qual retirantes sertanejos foram massacrados devido à sua organização social que incomodava os fazendeiros do interior da Bahia. Esses fazendeiros obtiveram a intervenção do poder estatal sob a alegação de que aqueles crentes sertanejos eram membros de uma contrarrevolução internacional, cujas sedes estariam em Nova York, Paris e Buenos Aires.
Três expedições bélicas falharam em suas tentativas de suprimir os fieis do Conselheiro, que acreditavam alcançar a salvação da alma se morressem no campo de batalha. A quarta expedição acabou por liquidá-los em 5 de outubro de 1897, quando o arraial foi destruído e parte de sua população dizimada diante dos generais.
A canção entoada em forma de declamação é muito mais teatral do que musical, os instrumentos servindo como acompanhamento para marcar o ritmo dos versos. O vocalista acentua as sílabas tônicas e o fonema /r/ é sempre vibrante, o que contribui para a atmosfera apocalíptica produzida na performance, na qual o tom profético de Lirinha é enfatizado por seus gestos de braços abertos, olhos para o alto, dedo em riste como se proferisse uma advertência ao público que se mostra envolvido por suas declarações.
Figura 2: Lirinha em performance
As profecias encontradas na canção nos remetem à ideia, muito presente no imaginário sertanejo, de que antes de uma era de paz, um tempo de aflição castigará o povo, um retrato dos movimentos messiânicos que se desenvolveram no sertão nordestino.
O messianismo floresceu no sertão em consequência de condições históricas específicas nas quais um conflito de classes levava um grupo debilitado a lutar contra a condição adversa, valendo-se da figura de um líder que representasse os anseios dessa classe e defendesse seus direitos. Assim, “o líder responderia, através dessa missão, às necessidades de soluções não encontradas na ordem tradicional vivida pelo grupo em questão” (ALVIM, 1971, p. 69). É o caso, precisamente, de Antônio Conselheiro, que se tornou um “messias” a fim de salvar o povo sertanejo do interior da Bahia.
Para Nísia Trindade Lima (1999), os movimentos messiânicos surgiram como uma forma de moralização, de pôr ordem à anarquia encontrada no sertão, constantemente descrito como terra sem lei. Segundo ela, os líderes messiânicos “aparecem, via de regra, como restauradores de padrões e valores sociais, como instituidores de organização social” (LIMA, 1999, p. 188). A imagem de Conselheiro adquiriu diversos significados no pensamento sertanejo, cuja “fascinação por este líder é manifestada na multiplicidade de formas em que ele é relembrado, seja como poeta, como construtor de igrejas e cemitérios ou ainda como líder religioso” (SÁ, 2007, p. 54).
Portanto, ao proferir que “Antôe tinha razão, rebanho da fé”, o Cordel do Fogo Encantado reafirma a autoridade desse líder messiânico, como fizera com o Pajé Xucuru. E mais uma vez a queda de uma sílaba pode ser observada para marcar a oralidade da canção. As luzes do show estão voltadas para Lirinha, cuja figura se destaca em suas roupas simples e em sua longa barba, que nos remete aos profetas populares. A música segue com as palavras de Conselheiro: “A terra é de todos a terra é de ninguém”, repetida com ênfase pelo vocalista – “A terra é de todos” – em defesa da divisão justa da terra. Esse é um problema que ainda hoje aflige o sertão, afetando desde os agricultores que acabaram por formar o Movimento Sem Terra (MST) até os índios que lutam para reaver suas terras, como o caso Xucuru, anteriormente tratado.
Os versos “Filhos do caldeirão / Herdeiros do fim do mundo / Queimai vossa história tão mal contada” retomam a história de um massacre acontecido no Nordeste, no Caldeirão cearense, em que tropas militares dizimaram beatos que viviam num sistema socialista. Pouco tratado na história nacional, mas vivo na memória sertaneja, esse massacre, semelhantemente ao de Canudos, embora em menores proporções, também teve como pivô a divisão da terra. No massacre do Caldeirão, centenas de camponeses foram mortos em confronto com o Estado, que via no estilo de vida utópico socialista daqueles homens rudes, guiados pelo beato José Lourenço, no sertão do Cariri, uma ameaça à soberania nacional.
A canção passa então a tratar de Joana Imaginária, com quem o Conselheiro teria vivido um romance e que seria capaz de apaziguar o sofrimento deste em meio à guerra “Ah, Joana Imaginária / Permita que o Conselheiro / Encoste sua cabeleira / No teu colo de oratórios / Tua saia de rosários / Teu beijo de cera quente”.
Na obra poética aqui analisada, também é visível a presença do mito da Idade do Ouro, conhecido desde a Antiguidade Clássica, e que se refere a uma época em que a humanidade viverá grande fartura de alimentos, sem sofrimento ou morte. Esse mito é uma constante na poesia oral nordestina, que o reinventou, atribuindo-lhe cor local. Ele também se adequa à ideia de que o sertão passa por um período de sofrimento à espera de uma nova era, pois “esses mitos do fim do mundo que implicam a recriação de um novo universo exprimem a mesma ideia arcaica e muito difundida de ‘degradação’ progressiva do cosmos, e da sua consequente destruição e recriação periódicas” (RIBEIRO, 1985, p.20). A ideia da Idade do Ouro, de um paraíso terrestre que se degrada, é destruído e recriado está presente nas mitologias grega, babilônica e hebraica, e pode ser encontrado também na Bíblia:
E vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas. E o que estava assentado sobre o trono disse: eis que faço novas todas as coisas (Apocalipse 21:1-5).
É nos versos “E assim na derradeira lua branca [...] E as estrelas tocadeiras de viola / Caírem uma por uma” onde encontramos uma visão do Apocalipse que precede o paraíso terrestre, conforme apontado no texto bíblico:
E, havendo aberto o sexto selo, olhei, e eis que houve um grande tremor de terra; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue; e as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte (Apocalipse 6:12-13).
Na literatura de Cordel, o mito da Idade do Ouro se transformou na lenda de São Saruê, uma terra em que os alimentos brotam espontaneamente da terra e o homem vive em constante lazer (RIBEIRO, 1985). Embora essa lenda seja muito conhecida entre a população sertaneja, poucos são os folhetos que versam sobre o assunto. Ribeiro nos apresenta três que, segundo ela, são os únicos de que se tem notícia. “O mais conhecido é o de Manoel Camilo dos Santos, Viagem a São Saruê, mas há ainda Um Passeio a São Saruê, de José Costa Leite, e As Terras de São Saruê, de autor ignorado, que Minelvino Francisco Silva ampliou e publicou” (RIBEIRO, 1985, p.119).
A presença desse mito na composição ora em análise também é encontrada nos versos “Quando todos os rios virarem leite / E as barrancas cuscuz de milho”, segundo os quais a conhecida fartura propiciada na Idade de Ouro se tornará a realidade sertaneja e esse povo, cuja escassez de alimentos foi sempre retratada na história do país, viverá sem medo da fome. Esses versos podem ser encontrados em Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, ao tratar da raça de ouro; e também em Ovídio, no livro Metamorfoses. Neste, diz: “(...) e o campo branquejava de espigas pesadas; ora corriam rios de leite ou de néctar e do verde azinheiro o louro mel brotava” (OVÍDIO, 2006, p. 47), assim como nas obras de cordel aqui apresentadas: “Lá eu vi rios de leite / barreiras de carne assada / lagoas de mel de abelhas / até leiros de coalhada” (SANTOS, 1965).
Essa importância dada ao alimento se deve exatamente à constante falta dele devido às injustiças sociais e às intempéries da natureza. Para Antonio Candido, “é o problema da sacralização do alimento, isto é, a formação de representações mentais e de práticas que tendem a conferir à comida, à sua busca e à sua ingestão, um caráter mágico, ritual ou poético” (MELO E SOUZA, 2000, p.50). Talvez isto se dê porque “na cultura popular não há uma separação entre uma esfera puramente material da existência e uma esfera espiritual ou simbólica” (BOSI, 1992, p. 324). A cultura popular está imbuída do cotidiano de seus indivíduos desde atividades práticas como dançar e caçar até as relações pessoais, o que mostra a “indivisibilidade, no cotidiano do homem rústico, de corpo e alma, necessidades orgânicas e necessidades morais” (BOSI, 1992, p.324).
Para Bosi, essa fusão entre vida prática e crenças religiosas da cultura popular é o que se pode classificar de materialismo animista. Materialismo que se deve às obrigações cotidianas que são o meio de sobrevivência, numa luta constante contra o ambiente adverso. Mas esse contexto atribulado não deixa de apresentar encantamento aos olhos do homem rústico, em sua conexão com uma força superior que o liga a um universo mágico:
O materialismo animista (fundado, como a própria análise semântica da expressão nos ensina, na junção dos opostos corpo/alma) transmitiu-se por séculos e séculos de vida predominantemente rural. Por isso, é muito respeitoso dos ciclos da natureza, separando bem as fases do ano, as idas e vindas da seca e da chuva, os fluxos e refluxos das marés, as fases da lua, as partes do dia, os ciclos biológicos da mulher, as idades da vida humana, dando a todos um peso, uma qualidade, um significado, cujo conhecimento é parte integrante da sabedoria popular em toda parte do mundo (BOSI, 1992, p.325).
Estabelecendo um diálogo com o mito da Idade de Ouro, há também na canção a presença do sebastianismo, tema recorrente da poesia oral nordestina, que influenciou os movimentos messiânicos sertanejos. Nos versos “Os soldados do rei D. Sebastião / Mostrarão o caminho”, mais uma vez encontramos a esperança do sertanejo por dias melhores, guiados pelo herói D. Sebastião, que acabará com a fome e que trará abundância à comunidade sertaneja. Nesse momento, o palco é tomado por fumaça e o vocalista está envolto por luzes, enquanto a percussão constrói uma melodia constante cujo papel é acentuar as tônicas dando à declamação de Lirinha o tom apocalíptico produzido na letra da composição, intensificado pelos movimentos corporais do performer que se move de forma desconexa, como se estivesse aterrorizado pelas palavras que acaba de proferir, enquanto a plateia responde aos gritos. A poesia gritada e a base percussiva aumentam o aspecto teatral da performance do grupo ao retratar os mitos que povoam o imaginário popular.
Figura 3: Cordel do Fogo Encantado em Campinas – agosto de 2008
O mito sebastianista que chegou ao Brasil com os portugueses narra a história do rei D. Sebastião, que desapareceu na batalha contra os mouros em Alcácer-Quibir, no ano de 1578:
A presença mítica e histórica do rei português D. Sebastião, desde Portugal até o Brasil, oferece indícios de um complexo histórico-cultural de concepções místico-utópicas, eivadas de messianismo judaico-cristão, que viaja no espaço/tempo, sendo constantemente reelaborada de acordo com as manifestações sociais, culturais e religiosas (SÁ, 2007, p.52).
Segundo a crença, todo sofrimento do povo sertanejo chegará ao fim com a recuperação do Reino Perdido, porém esse retorno à era paradisíaca seria antecedido de adversidades, bem ao gosto das doutrinas milenaristas. Esse mito é muito presente na literatura nacional; em particular, Ferreira Gullar escreveu um poema que nos interessa sobremaneira, pois desmitifica a fantasia apresentada na canção para revelar a ideia de que os sertanejos devem se tornar protagonistas de sua história:
O rei que mora no mar
Diz a lenda que na praia
dos Lençóis no Maranhão
há um touro negro encantado
e que esse touro é Dom Sebastião.
Dizem que, se a noite é feia,
qualquer um pode escutar
o touro a correr na areia
até se perder no mar
onde vive num palácio
feito de seda e de ouro.
Mas todo encanto se acaba
Se alguém enfrentar o touro.
Isso é o que diz a lenda.
Mas eu digo muito mais:
Se o povo matar o touro,
a encantação se desfaz.
Mas não é o rei, é o povo
que afinal desencanta.
Não é o rei, é o povo
que se liberta e levanta
como seu próprio senhor:
Que o povo é o rei encantado
no touro que ele inventou.
(GULLAR, 2001)
Dessa forma, observamos na canção a recorrência dos temas que floresceram na literatura acerca do sertão e as profecias que compõem o imaginário desta região, num retrato da poesia oral que parece “aderir ao que a existência coletiva comporta de mais repetitivo em nível profundo; daí a redundância particular e uma variedade mínima dos temas” (ZUMTHOR, 2010, p. 47). Além disso, a composição aqui discutida se assemelha a uma narrativa literária pela presença “da complicação, da dissonância não resolvida, que, impedindo o descanso, mantém o interesse, que se extingue com a solução do conflito” (OLIVEIRA, 2002, p. 73).
Considerações finais
Na canção “Profecia (Ou Testamento da Ira)”, o Cordel do Fogo Encantado aborda um problema tão arraigado na memória sertaneja que, para suportá-lo, os habitantes da região se valem de lendas e mitos que amenizem as injustiças sociais por meio da fantasia, da fuga pela imaginação. Não apenas isso: através de uma obra em que literatura e música se misturam, expondo a intrincada rede de crenças do homem sertanejo, o quinteto também incentiva os sertanejos a transformarem a realidade através da ação.
A música que serve de base à canção em tela é o retrato de um sertão mestiço. Nela, os toques africanos e indígenas do sertão do Moxotó guiam a composição do grupo. Aliados à letra, os tambores também são linguagem poética, carregada de significados, aumentando a dimensão apocalíptica dos versos que nos envolvem em sua atmosfera mística.
Fonte e modelo mítico dos discursos humanos, a batida do tambor acompanha em contraponto a voz que pronuncia frases, sustentando-lhe a existência. O tambor marca o ritmo básico da voz, mantém-lhe o movimento das síncopes, dos contratempos, provocando e regrando as palmas, os passos de dança, o jogo gestual, suscitando figuras recorrentes de linguagem: por tudo isso ele é parte constitutiva do “monumento” poético oral. Auditivamente, a percussão, apta a marcar com sutilezas as diferenças tonais, opera sobre o acontecimento-chave da língua. As mensagens que ela transmite não são traduzidas em código morse. Imediatamente inteligíveis, são “ditos” pelo tambor num registro que é a linguagem de articulação única, retendo, dos diversos níveis linguísticos, um único nível tonal (...) Assim praticada, a percussão constitui, estruturalmente, uma linguagem poética(ZUMTHOR, 2010, p. 188-189).
Unindo a percussão do toré aos batuques afro-brasileiros junto às profecias do imaginário sertanejo e as crenças católicas e indígenas, o Cordel do Fogo Encantado retrata um sertão em que os não-brancos tem voz ativa, lutam por seus direitos, pela manutenção de suas terras e pela valorização de sua cultura. A canção desafia o status quo para “queimar uma história tão mal contada”, a fim de que o sertanejo possa viver a sua Idade do Ouro, abrindo seus próprios caminhos como “Os soldados do Rei D. Sebastião”.
Referências
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1 Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe, onde desenvolveu o trabalho A Melopoética do Sertão do Moxotó: uma análise da poesia oral do Cordel do Fogo Encantado. Membro do grupo de pesquisa “História Popular do Nordeste” (HPOPNET).
2 […]literary text and musical composition are inextricably bound. Together they constitute a symbiotic construct that qualifies as a full-fledged work of art only if components of both are simultaneously present (SCHER, 2004, p.175).