Ciência, filosofia e arte: 1.000 destinos cruzados em “Lance de dados”, de Humberto Gessinger
Rafael Cava Mori1
rafael.mori@usp.br
Resumo: Apresentamos um estudo sobre a canção “Lance de dados”, de Humberto Gessinger. Primeiro, descrevemos aspectos da temática científico-tecnológica da canção. A seguir, estabelecemos os nexos dela com outras produções do próprio Gessinger e demais cancionistas, a fim de explicitar a influência da filosofia existencialista sobre a abordagem da temática de ciência. Finalmente, considerando indicações prévias de um estudo discursivo da obra de Gessinger baseado em conceitos do Círculo de Voloshinov e Medvedev, elaboramos uma breve análise de “Lance de dados” a partir da Semiótica da Canção. Os resultados obtidos com esta análise apresentam convergências com as conclusões do estudo discursivo anterior, o que pode indicar a viabilidade de uma abordagem complementar entre as duas metodologias analíticas.
Palavras-chave: Humberto Gessinger; Ciência e tecnologia; Existencialismo; Círculo de Voloshinov e Medvedev; Semiótica da Canção.
Abstract: This paper reports on a study about the song “Lance de dados”, written by Humberto Gessinger. Firstly, we describe aspects of the scientific-technological song theme and then establish connections between this and other songs by Gessinger and other songwriters, so that the influence of the existentialist philosophy on the scientific theme approach can be made explicit. Finally, given preliminary evidences of a discursive study of Gessinger’s work based on concepts of “Voloshinov and Medvedev Circle”, a brief analysis of the song in light of “Song Semiotics” is elaborated. The results show convergences with the conclusions of the previous discursive study, which may indicate the feasibility of a complementary approach between the two analytical methods.
Keywords: Humberto Gessinger; Science and technology; Existentialism; “Voloshinov and Medvedev Circle”; “Song Semiotics”.
Introdução
A obra do cancionista, músico e escritor porto-alegrense Humberto Gessinger (nascido em 1963), que ganhou reconhecimento à frente do conjunto de rock Engenheiros do Hawaii, vem chamando a atenção de pesquisadores de diversos campos. Há alguns anos, uma dissertação de mestrado na área de Literatura foi dedicada a ela – Mapas do acaso: as canções de Humberto Gessinger sob a ótica contemporânea (FRANZ, 2007) –, havendo também estudos de suas canções a partir da Linguística (VIEIRA, 2008), da História (ALMEIDA, 2013) e, a nosso exemplo, do campo da Educação Científica (MORI, 2014).
Em nossos trabalhos, a propósito, temos mapeado as unidades temáticas de ciência e tecnologia presentes nas canções de Gessinger, argumentando que elas contribuem para problematizar questões atinentes às relações entre a esfera tecnocientífica e a sociedade, a partir de um olhar crítico sobre aspectos da natureza da ciência. Quanto a estas características, “Lance de dados”, canção dos Engenheiros do Hawaii presente no disco Simples de coração (1995), é uma peça exemplar. Mas há ainda outros “1.000 destinos cruzados”2 nesta única faixa, o que faz dela uma grande e complexa encruzilhada, merecedora do olhar detalhado que desenvolveremos neste ensaio.
O presente estudo está estruturado em três momentos. Primeiramente, descrevemos e discutimos a unidade temática tecnocientífica abordada pela letra da canção. A seguir, traçamos as possíveis relações discursivas entre ela e outras canções, da autoria de Gessinger ou não. Esse processo evidenciará a importância da filosofia – no caso, o chamado “existencialismo” – para uma melhor compreensão do material poético de “Lance de dados”. Finalmente, a partir de uma concepção sobre esses relacionamentos (entre ciência, filosofia e arte) à luz de conceitos do coletivo conhecido como Círculo de Bakhtin, como enunciado, gêneros do discurso e dialogismo, tomamos indicações da Semiótica da Canção para uma análise, tentativa e inicial, da melodia e da letra da canção tomadas em conjunto.
Antes de prosseguirmos, vejamos a letra da composição de Gessinger, conforme registrada em sua gravação original (ENGENHEIROS DO HAWAII, 1995, faixa 4).
Daqui não tem mais volta, pra frente é sem saber
Pequenos paraísos e riscos a correr
Os deuses jogam pôquer
E bebem no saloon doses generosas de BR 101
Tá escrito há 6.000 anos em parachoques de caminhão
Atalhos perigosos feito frases feitas
Os deuses dão as cartas... o resto é com você
No fundo tudo é ritmo
A dança foge do salão
Invade a autoestrada do átomo ao caminhão
O fim é puro ritmo
O último suspiro é purificação
Os deuses dão as costas... agora é só você
Os deuses dão as costas... agora é só você... querer
Ciência, preditibilidade, indeterminação
Desde os tempos mais remotos, o homem procurou compreender a natureza e suas manifestações, aliando a observação do mundo à capacidade de interpretar, isto é, de atribuir sentido a essas impressões sensoriais. Por muito tempo, bastou para se explicar os fenômenos naturais a ação de divindades, seres mitológicos, gênios e outros agentes sobrenaturais. Com o passar dos séculos, no entanto, a busca por explicações mais satisfatórias levou o homem a explorar novas maneiras de observar e interpretar os acontecimentos à sua volta.
Atribui-se à civilização grega antiga, com destaque para a figura de Tales de Mileto (635-543 a.C.), a proposta de um novo modo de se adquirir conhecimento a respeito do Universo, unicamente com o uso da razão. Essa busca racional pelos padrões da natureza, em conjugação com o avanço da matemática, levou ao surgimento das ciências físicas quase exatamente como as conhecemos hoje.
Dois milênios depois, em 1687, Issac Newton (1642-1727) publicava seus Princípios matemáticos de filosofia natural, transmitindo uma mensagem: a de que o mundo funcionaria exatamente como uma máquina, ordenada e previsivelmente, como opera um relógio a engrenagens. Emblemático deste pensamento é o discurso de Pierre Simon Laplace (1749-1827), em seu Ensaio filosófico sobre as probabilidades (1814):
Uma inteligência que, para um instante dado, conhecesse todas as forças de que está animada a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem, e se além disso essa inteligência fosse ampla o suficiente para submeter esses dados à análise, ela abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela, e tanto o futuro como o passado estariam presentes aos seus olhos (apud RUELLE, 1993, p. 42).
O método de Newton, baseado no uso de equações diferenciais para descrever a ordem subjacente aos fenômenos naturais, seria amplamente explorado nos séculos XVIII e XIX, quando se elaborou a maioria das grandes teorias da física-matemática clássica. Contudo, uma parcela considerável de processos naturais permanecia sem qualquer formalização. Ainda, muitas das leis matemáticas atribuídas aos fenômenos só poderiam ser consideradas em condições especiais, “aproximadas”. Para completar, a resolução de determinados conjuntos de equações diferenciais mostrava-se impossível, como admitiria Henri Poincaré (1854-1912) no ensaio Sobre o problema dos três corpos e as equações da dinâmica, publicado em 1890, que demonstrava ser surpreendentemente complexo o problema das interações gravitacionais entre apenas três massas.
As primeiras décadas do século XX assistiram ao desenvolvimento de um impressionante corpo de conhecimentos, que revolucionariam a Física e acrescentariam outros óbices ao determinismo laplaciano. A primeira dessas revoluções se deu com a relatividade de Albert Einstein (1879-1955), que eliminou a ilusão newtoniana sobre um espaço e tempo absolutos. Depois, a teoria quântica, desenvolvida por Max Planck (1858-1947), Niels Bohr (1885-1962), Ervin Schrödinger (1887-1961) e Werner Heisenberg (1901-1976), entre outros, limitaria as possibilidades de mensuração das quantidades em escala atômica.
O título de “Lance de dados” alude a um dos mais profundos debates científico-filosóficos de então, aquele travado entre dois dos físicos citados no parágrafo acima, o alemão Einstein e o dinamarquês Bohr. O primeiro se recusava a aceitar algumas das consequências mais impactantes do então novo paradigma quântico. Conforme conceitua Stewart (1991), a mecânica quântica lida com quantidades que não são contínuas, mas aglomerados discretos (os chamados quanta), concebendo as partículas da matéria não apenas como grânulos pequeníssimos, mas também como ondas. Prossegue Stewart dizendo que
Não é fácil traduzir a mecânica quântica em termos humanos. Há até uma corrente de pensamento que afirma ser absurdo tentar fazê-lo, pois o mundo quântico e o de nossos sentidos nada têm em comum. Outros discordam, e propõem traduções, de um jeito ou de outro. Segundo uma delas, muito popular, a função de onda [expressão matemática que descreve o comportamento ondulatório de um dado objeto] representa não o estado de uma partícula, mas a superposição de todos os estados possíveis; e quando uma observação é feita, a função de onda “desaba” num estado único. Antes desse colapso, ela representa a probabilidade de que o sistema será encontrado num determinado estado (ibidem, p. 312).
Einstein não concordava com esta interpretação probabilística, e numa carta endereçada a seu colega Max Born (1882-1970), em 1926, assim se manifestou sobre a questão:
Você acredita no Deus que joga dados, e eu em lei e ordem absolutas, num mundo que existe objetivamente, e que eu, de uma maneira toscamente especulativa, estou tentando apreender. Acredito firmemente, mas alimento a esperança de que alguém descobrirá uma maneira mais realística, ou antes, uma base mais tangível do que me foi dado fazer. Nem mesmo os grandes êxitos iniciais da teoria quântica me fazem crer no jogo de dados essencial [...] (apud STEWART, 1991, p. 313).
O cientista alemão se recusava a aceitar a chamada “interpretação de Copenhague”, formulada por Bohr, que além das indeterminações probabilísticas, autorizava todo um conjunto de comportamentos “bizarros” por parte das partículas subatômicas, como a bilocalização, a comunicação em velocidade superior à da luz, e até certa intangibilidade.
Segundo Ruelle (1993), mesmo o domínio de descrições em termos de probabilidades é insuficiente para se fazer da mecânica quântica uma teoria incompatível com o determinismo. O autor lembra-nos também de que este assunto – acaso e determinismo – mobilizou dois grandes cientistas do século XX, René Thom (1923-2002) e Ilya Prigogine (1917-2003) em uma acalorada polêmica, e destaca a posição do primeiro deles:
Notemos a afirmação de Thom de que, já que a natureza da ciência é formular leis, todo estudo científico da evolução do Universo desembocará, necessariamente, numa formulação determinista. Observemos, porém, que talvez não se trate do determinismo de Laplace, mas, por exemplo, de leis “deterministas” que governem a evolução de distribuições de probabilidades: não se escapa tão facilmente do acaso! (ibidem, p. 43-44).
O aparecimento de sistemas de equações diferenciais insolúveis – sistemas de tipo “não-linear” – no âmbito da física clássica é outra mostra eloquente de que leis deterministas também não escapam às indeterminações.
Na canção de Gessinger, a figura de Deus atirando dados é tornada equivalente à jogatina de “deuses” em um “saloon”. O fato de o jogo ser acompanhado de “doses generosas de BR 101” cria uma imagem sugestiva, levemente dionisíaca. Não fica claro o que “Tá escrito há 6.000 anos em parachoques de caminhão”, mas parece haver uma referência, aqui, à idade estimada da Terra segundo o Velho Testamento. Lembremos que a canção consta no disco Simples de coração, cuja capa faz referência a um ícone do catolicismo, o Sagrado Coração de Maria. O que “tá escrito” (expressão que também pode ser entendida como “está determinado”, “está predestinado” – por Deus) é desqualificado como “Atalhos perigosos feito frases feitas”, sugerindo uma depreciação de todo determinismo, o que é corroborado pelo verso inicial, “Daqui não tem mais volta, pra frente é sem saber”.
A primeira e a segunda estrofes terminam de modo semelhante: “Os deuses dão as cartas... o resto é com você” e “Os deuses dão as costas... agora é só você”. A perspectiva aqui é inteiramente diferente daquela exposta por Laplace: não há uma “inteligência” capaz de conhecer todas as forças da natureza e a situação em que os seres que a compõem se encontram; há, no máximo, deuses que ditam as condições iniciais (mui probabilisticamente), e o que se segue, a partir de então, não é de seu menor interesse. No verso final da canção, resguardam-se todos os acasos e assegura-se o livre arbítrio – “agora é só você... querer”.
Mas o domínio da vontade não implica necessariamente desordem. Mesmo o bailar – novamente, uma imagem dionisíaca – é constrangido por algum tipo de coreografia, ainda que nada impeça sua subversão: “No fundo tudo é ritmo / A dança foge do salão”. Ecoando a fala de Ruelle (1993) a respeito da posição de René Thom, a canção propõe que a dança (regrada, mas corruptível) “Invade a autoestrada do átomo ao caminhão”. Esse verso certifica a continuidade entre a primeira estrofe e a segunda: o “caminhão” aparece em ambas, “BR 101” é sinônimo de “autoestrada” e, recuperando-se o teor da polêmica entre Einstein e Bohr, “átomo” (recordemos que o físico dinamarquês fora o proponente do primeiro modelo atômico quantizado) se relaciona aos “deuses [que] jogam pôquer”/“dão as cartas”.
Nada foi por acaso: relações discursivas entre canções
A obra de Humberto Gessinger apresenta um nível de coesão diferenciado em relação ao que produziram outros cancionistas de sua geração. São trabalhos – álbuns completos, canções isoladas escritas para outrem e, mais recentemente, crônicas – ricos em autorreferências, o que contribui para a constituição de uma espécie de “assinatura”. É comum que versos, expressões e passagens instrumentais de canções mais antigas ressurjam como que atualizados em novos lançamentos. Há uma predileção, de Gessinger, por construir uma obra conceitual, valorizando as relações internas entre os diferentes discursos que a constituem – provavelmente, por influência pelo rock progressivo inglês.
À primeira audição, no entanto, Simples de coração não parece estabelecer elos com o passado dos Engenheiros do Hawaii, talvez por ser o primeiro disco do conjunto enquanto quinteto, após a saída do guitarrista Augusto Licks (que participara de sete dos oito álbuns anteriores, de 1987 a 1994). Não há passagens que remetam a riffs de outrora, nem parece possível identificar um conceito a partir do qual as canções se articulem. Teria Humberto Gessinger desistido de uma das características mais marcantes dos Engenheiros do Hawaii?
Uma análise retrospectiva nos mostra que não, e “Lance de dados” talvez seja o melhor exemplo de que, no disco de 1995, a autorreferência e as citações permanecerão essenciais para a construção e a compreensão da “engenharia hawaiana”.
Partamos do relato do cancionista em uma de suas crônicas:
No disco Simples de Coração, duas canções, originalmente, tinham outros nomes: “Lance de Dados” se chamava “BR 101” e “Por Acaso” se chamava “Voo 101”. Este era o voo da Varig que fazia a rota Rio/PoA; aquela é a rodovia que liga o Rio Grande do Sul ao resto do país pelo litoral. Por achar pouco compreensível a alusão, acabei mudando os nomes (GESSINGER, 2011, p. 13).
A semelhança nos títulos originais das canções explicita a ligação entre elas. Afinal, não é por coincidência que “Lance de dados” tome o acaso como temática principal, e que a outra canção repita os versos “Não foi por mal / Não foi por nada / Nada foi por acaso”. Mas se “Lance de dados” examina o acaso de um ponto de vista filosófico, “Por acaso” se estrutura como um relato autobiográfico, em que Gessinger se dirige a sua esposa diante de uma paisagem aérea: “Da janela do avião eu vejo Porto Alegre / Vejo o futuro em flashback / Meu pai, minha filha, nossa casa / Da janela do avião eu vejo por acaso / O nosso caminho, moinhos de vento / Glória, independência, nossa redenção / Vejo da janela do avião”.
A menção de “Lance de dados” a uma “autoestrada” nos remete, também, a um dos maiores sucessos dos Engenheiros do Hawaii, a canção “Infinita highway”, do álbum A revolta dos dândis (1987). A identidade entre a BR 101 e a highway seria confirmada na versão ao vivo do disco 10.000 destinos (2000), em que o nome da estrada é cantado ao final das duas primeiras partes da canção. Em seus mais de seis minutos, “Infinita highway” associa diversas influências musicais e literárias, como relata Pedro Só em um release:
A música que mudou definitivamente a trajetória dos Engenheiros tangencia canções de Roberto Carlos e do Tremendão em pelo menos três pontos: “você me faz correr demais” (“Por Isso Corro Demais”), “eu vejo as placas dizendo ‘não corra’, ‘não morra’, ‘não fume’” (“É Proibido Fumar”), e ‘a sombra de um sorriso que eu deixei numa das curvas da highway’ (“As Curvas Da Estrada De Santos”). Mais explícita, porém, na letra, é uma frase de O Muro, de Jean-Paul Sartre: “a dúvida é o preço da pureza”. [...] Entre a inquietude existencialista (fora de moda entre intelectuais) e uma sabedoria popular atavicamente jovem-guardista, Humberto Gessinger e seus ex-colegas de Arquitetura construíram uma obra das mais sólidas e importantes da música brasileira recente (ENGENHEIROS DO HAWAII, 1999).
Franz (2007) defende que a canção “Highway to hell”, do conjunto australiano AC/DC, também teria influenciado a composição da faixa. Discutindo com algum detalhe o conteúdo filosófico existencialista3 de “Infinita highway”, a autora conclui que a voz que a canta enuncia a partir de uma postura de contraposição ao poder estabelecido – daí as referências ao rock da Jovem Guarda e à highway rebelde do AC/DC –, ao mesmo tempo em que examina criticamente o sentido – ou o absurdo – do comprometimento com esta posição e da responsabilidade que ela implica. Importa-nos ressaltar que a proximidade entre “Lance de dados” e “Infinita highway” permite induzir a presença de uma temática existencial também na canção de 1995. Com efeito, os versos que encerram suas estrofes – “Os deuses dão as cartas [costas]... o resto é com você [agora é só você/agora é só você... querer]” – ecoam as famosas palavras de Sartre, concedidas em uma de suas entrevistas:
O essencial não é o que foi feito do homem, mas o que ele faz daquilo que fizeram dele. O que foi feito dele são as estruturas, os conjuntos de significantes estudados pelas ciências humanas. O que ele faz é a própria história, a superação real dessas estruturas numa praxis totalizadora (apud PINGAUD, 1968, p. 117).
Se “Lance de dados” reafirmou o discurso existencialista das primeiras composições de Gessinger – e, além disso, reportou-se a outras referências da música brasileira, como o “Trem das cores” de Caetano Veloso, cujo verso “Os átomos todos dançam” parece parafraseado em “A dança foge do salão / Invade a autoestrada do átomo ao caminhão” –, também preparou o terreno para discursos em discos vindouros dos Engenheiros do Hawaii. O tratamento de uma temática científico-tecnológica incorporando pitadas de filosofia existencialista, iniciado em 1995, voltaria a ocorrer no disco Surfando karmas & DNA (2002), mais especificamente na canção título. “Surfando karmas & DNA”, como já analisamos (MORI, 2014), apresenta como temática principal a liberdade, concluindo que, entre o conjunto de suas ações e consequências (“karmas”) e a inevitabilidade de seus caracteres biológicos (“DNA”), o homem só pode estar condenado a ser livre; sartrianamente, Gessinger canta: “Na falta do que fazer, inventei a minha liberdade”.
Outra canção de 2002 dos Engenheiros do Hawaii que prolonga a temática científico-tecnológica de “Lance de dados” é “Sei não”. Nesta, o cancionista traz à discussão uma terceira revolução científica do século XX (lembremos que as anteriores foram a relatividade e a física quântica), o advento da teoria do caos: “Não sei qual foi a causa e quais serão as consequências / (A borboleta bate as asas e o vento vira violência) / Não sei a soma exata, só a ordem de grandeza / Não sermos literais às vezes faz nossa beleza”. A letra faz referência à descoberta do meteorologista Edward Lorenz (1917-2008), que demonstrou nos anos 1960 que fenômenos modelados por sistemas não-lineares de equações diferenciais podem ser imprevisíveis a longo prazo, fornecendo o exemplo das previsões meteorológicas, em que imprecisões aparentemente insignificantes em dados iniciais seriam suficientes para “inutilizar” o modelo em reiterações seguintes. Stewart (1991) explica a metáfora de Lorenz:
O bater de uma única asa de borboleta hoje produz uma minúscula alteração no estado da atmosfera. Após certo tempo, o que esta efetivamente faz diverge do que teria feito, não fosse aquela alteração. Assim, ao cabo de um mês, um ciclone que teria devastado o litoral da Indonésia não acontece. Ou acontece um que não iria acontecer (p. 155).
Assim, se “Lance de dados” aborda as limitações do tipo probabilístico que a ciência moderna encontra para se firmar enquanto sistema de previsão dos fenômenos, “Sei não” acrescenta os problemas decorrentes da “dependência hipersensível às condições iniciais” (RUELLE, 1993) – ou, conforme o termo de Lorenz, o “efeito borboleta” – para a consecução do mesmo fim.
A Figura 1 apresenta um mapa das relações entre as obras mencionadas nesta seção. Destacamos que “Lance de dados” se apresenta como uma espécie de nó, para onde convergem, e de onde divergem, influências de canções em mais de quatro décadas de música popular, brasileira e estrangeira.
Figura 1: relações de “Lance de dados” com outras canções, de Gessinger (“internas”) e de outros cancionistas (“externas”).
Duas análises de “Lance de dados”
Já realizamos uma análise de “Lance de dados” de acordo com conceitos do chamado Círculo de Bakhtin – que, hoje, tendemos a chamar de Círculo de Voloshinov e Medvedev, conforme os motivos expostos na obra Bakhtin desmascarado (BRONCKART; BOTA, 2012) – em nosso último estudo sobre as temáticas científico-tecnológicas da obra de Humberto Gessinger (MORI, 2014). Abrangendo noções como as de enunciado, gêneros do discurso, discurso prosaico, discurso poético e dialogismo, percorremos a seguinte trajetória:
-
mapeamos unidades temáticas de ciência e tecnologia na obra de Humberto Gessinger;
-
observamos a incorporação de palavras e expressões do âmbito da ciência em sua produção poética;
-
a partir da análise “bakhtiniana”, observamos a insurreição de um diálogo no próprio interior destas palavras. Ou seja, observamos as vozes conflitantes nelas encerradas, quando dispostas nos enunciados poéticos do compositor gaúcho, já que elas fazem ressoar ecos de seu gênero discursivo de origem (os textos científicos, com seu léxico peculiar);
-
lembramos que o enunciado é marcado pela alternância dos falantes, e que os enunciados do texto em prosa científico, de acordo com o próprio Círculo de Voloshinov e Medvedev, apresentam apenas um mínimo de acabamento que possibilite posições responsivas. A poesia, por outro lado, busca sempre um acabamento máximo;
-
observamos que a obra de Gessinger, conforme o próprio cancionista nota, frequentemente foge a esse acabamento máximo, como se as canções permanecessem em suspenso, provisórias;
-
concluímos que o cancionista elabora uma obra poética com características prosaicas. O acabamento mínimo, que Gessinger almeja, encontra uma de suas fontes no uso de palavras e termos da ciência, que “contaminam” sua poesia com o prosaísmo e pouco acabamento dos textos científicos.
Remetemos o leitor não familiarizado com os conceitos do Círculo de Voloshinov e Medvedev a nossa referência anterior, em que os expomos mais diligentemente. As fontes em que nos baseamos são constituídas por obras costumeiramente atribuídas a Bakhtin, em que destacamos o livro Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 2004) e o texto “Os gêneros do discurso”, da coletânea Estética da criação verbal (BAKHTIN, 2011).
Nesta seção, observaremos de que maneira outra análise, desta vez pautada em algumas indicações da chamada Semiótica da Canção, pode desvelar outros aspectos da canção de Gessinger, já indicados na análise discursiva anterior e no exame da canção realizado neste artigo. A Semiótica da Canção, proposta pelo pesquisador e compositor paulista Luiz Tatit, apresenta uma teoria e um modelo para a análise da canção popular brasileira considerando a unidade constituída por melodia e letra (TATIT, 2007).
As Figuras 2, 3 e 4 apresentam perfis melódicos dos fragmentos mais representativos de “Lance de dados”.
Figura 2: temas 1 (harmonia maior) e 2 (harmonia menor) do perfil melódico.
Figura 3: refrão.
Figura 4: fragmentos passionais desestabilizam os temas 1 e 2 na segunda parte.
A canção é composta por duas partes harmonicamente idênticas, que correspondem às duas grandes estrofes. Elas desembocam em um “refrão”, em que são cantados os versos finais das estrofes. A estrofe de verso único, que encerra a canção, é uma versão ligeiramente modificada deste refrão, já que há a adição da palavra “querer”, como discriminado na Figura 3. Cada estrofe é mediada por uma passagem instrumental que reproduz as harmonias das duas partes. Estas harmonias são duas e ocorrem de modo intercalado, sendo uma constituída por acordes maiores (A / B / E/G#) e outra por acordes menores (Bm / F#m), do mesmo campo harmônico (A). Na Figura 2, os dois versos iniciais da canção ilustram o modo como estas duas sequências de acordes sustentam dois diferentes temas melódicos: “Daqui não tem mais volta, pra frente é sem saber” perfaz dois compassos da harmonia maior e um tema facilmente reconhecível (“tema 1”), que se encerra com um alongamento vocálico da última sílaba de “saber”, na parte mais alta da sua tessitura; de forma análoga, “Pequenos paraísos e riscos a correr” encerra um “tema 2”, que também ocupa quase a mesma extensão da tessitura, embora seja um tom mais grave. O percurso traçado pelos temas exibe uma elevação, mas seu revezamento acaba anulando o efeito “suspensivo” característico dos tonemas ascendentes.
A tematização da primeira parte da canção é bruscamente interrompida pelo refrão “Os deuses dão as cartas... o resto é com você”. Diferentemente do que mostra a Figura 3, no entanto, este primeiro refrão é levemente asseverativo, pois o alongamento vocálico da sílaba “cê” decai até a nota E, em vez de permanecer em G#’.
O fato de o refrão ocupar mais do que uma oitava da tessitura, avançando para as regiões mais altas e apresentando também dois alongamentos vocálicos (em “cartas” e “você”), faz dele um momento passional que, além da tematização, interrompe também a harmonia, modulada agora por C, e não por A.
A explosão proporcionada pelo refrão serve como um álibi para que a tematização da segunda parte ocorra desta vez em uma região mais alta da tessitura – uma oitava acima da região ocupada na primeira parte. Embora preserve os dois temas da Figura 2, a segunda parte traz algumas características interessantes. Sendo a métrica de seus versos mais irregular, faz-se necessário um uso mais frequente de síncopes em comparação com a primeira parte. Mas as síncopes apenas mitigam a “abundância” de sílabas, causando dois efeitos: como mostra o primeiro fragmento da Figura 4, algumas sílabas acabam não cabendo na forma estrita do tema 1 (“a” e “dan”); e, mais importante, os temas 1 e 2 são totalmente desestabilizados em fragmentos quase tão passionais quanto o refrão, ocupando entre 12 e 13 semitons da tessitura e, inclusive, contando com um alongamento vocálico bem pronunciado. Essa passionalização se reflete na letra: da mesma maneira que a “dança foge do salão”/“invade a autoestrada”, a melodia “foge” dos temas 1 e 2 e “invade” o espaço da tessitura que era reservado ao refrão.
A constatação, na primeira parte, de que “pra frente é sem saber” e de que o homem está à mercê de deuses embriagados é encarada como um obstáculo a qualquer empreendimento. Daí a tematização, restringindo a desaceleração do percurso narrativo e ressaltando a modalização pelo /ser/. O refrão serve como um primeiro abalo a esse estado precário de junção entre sujeito e objeto: demonstra-se a descontinuidade entre as estruturas – o que foi feito do homem – e a possibilidade de uma ação (minimamente coerente) direcionada a elas. Trata-se da <parada>, a interrupção do continnum fórico. A segunda parte reflete esse abalo e, com a desaceleração provocada pelo estado passional, reanalisa as estruturas, observando que do mundo macroscópico dos fenômenos cotidianos (o “caminhão”) à dinâmica do universo submicroscópico (o “átomo”), há uma garantia mínima de ordenação, como demonstrado pelo moderno conhecimento científico.
O segundo refrão tem a forma exata do primeiro fragmento da Figura 3, terminando com um tonema ascendente. Assim, “os deuses dão as cartas, agora é só você” e a “superação real das estruturas numa práxis totalizadora”, como diria Sartre, se torna possível: o caminho está aberto para o /fazer/.
Finalmente, o terceiro refrão surge como uma reformulação dos dois refrães anteriores. Diríamos até que se trata de uma “síntese” deles: no primeiro, é dito que “Os deuses dão as cartas... o resto é com você”; no segundo, “Os deuses dão as costas... agora é só você”; no terceiro, apesar de constar no encarte do disco que “Os deuses dão as costas”, Gessinger canta na gravação que “Os deuses dão as cartas... agora é só você... querer”. Assim, os refrães parecem seguir um percurso de sucessivas aproximações em direção a um /fazer/ cada vez mais concreto. Além disso, a palavra “só” no segundo refrão pode ser entendida como “sozinho”, o que constitui, sem dúvida, um obstáculo à completa realização do sujeito. No terceiro refrão, diferentemente, “só” tem o sentido de “apenas”, garantindo que o /fazer/ não só é possível, como se trata de uma tarefa nada árdua, mediada apenas pelo /querer/. A canção termina, portanto, na <parada da parada>, sendo a retomada da foria, a partir deste ponto, um momento apenas prefigurado, deixado em aberto. Não à toa, a última palavra cantada é justamente o “querer”, na região mais alta da tessitura.
Segundo Tatit,
Um sujeito em conjunção plena com o objeto, ou em identidade total, seria um ser inexistente neste mundo; um ser sem desejo e sem paixão. Justamente para conservar o seu vínculo extenso com o valor, o sujeito sacrifica, a todo instante, o seu contato intenso com o objeto. Seu contrato final é com o devenir, com a busca constante, com uma fusão plena e utópica com um objeto correspondente ao próprio valor, fusão esta inatingível por definição (2007, p. 43).
“Lance de dados” apresenta exatamente esta estrutura, em que o vínculo com um valor é sacrificado pelo sujeito logo no início da canção, que se abre então ao devir. No entanto, o desdobramento desse devir é apenas anunciado, permanecendo a salvo de ser narrado, como se a canção fosse interrompida cedo demais. Ora, não fora esta a conclusão a que chegamos quando analisamos as canções de Gessinger, com temáticas científico-tecnológicas, a partir de conceitos do Círculo de Voloshinov e Medvedev?
Curiosamente, há uma declaração recente de Humberto Gessinger, em uma apresentação transmitida ao vivo pela internet, que corrobora ainda mais a “hipótese do inacabamento”:
Tem duas músicas nesse disco [Simples de coração] que eu não acabei de escrever ainda. Uma delas é “Ilex paraguaiensis” e a outra é “Lance de dados”, que eu vou tocar agora. Mas é muito bom não acabar uma música porque a gente pode ficar delirando nela a vida inteira... (GESSINGER, 2012).
A título de conclusão
[...] a música e as formas são temas recorrentes de fascínio científico. Outros desses temas fascinantes são o tempo e a sua irreversibilidade, o acaso, a vida. [...] Há diversas maneiras de honrar a beleza. Ali onde um artista rabiscaria um esboço, iniciaria um poema ou comporia uma melodia, o cientista imagina uma teoria científica (RUELLE, 1993, p. 71-72).
A obra de Humberto Gessinger se insere, frequentemente, na esquina entre a produção artística e o discurso científico. Ao longo deste texto, pudemos observar como uma simples canção de sua autoria consegue articular conhecimentos de campos diversos – em especial, a física e a filosofia – expressando-os não apenas no nível poético da letra, mas utilizando-se também da matéria musical para potencializar seu conteúdo semiótico.
Observamos também, a partir desta análise, como o estudo discursivo da letra da canção pode ir ao encontro das conclusões extraídas a partir de um exame da letra e da melodia tomadas em conjunto. Caberia indagar, futuramente, se a convergência de resultados de ambas as investigações se deveu, em nosso caso: às qualidades do próprio cancionista, que conseguiu realizar uma obra coerente em múltiplos níveis de análise; a proximidades epistemológicas e metodológicas dos referenciais teóricos adotados em nossas perquirições, que são aqui os conceitos do Círculo de Voloshinov e Medvedev e a Semiótica da Canção; ou, quem sabe, a um mero... acaso.
Referências
ALMEIDA, Gustavo B. “Os branquelos do fim do mapa”: Humberto Gessinger e a afirmação de uma identidade gaúcha. Anais do Congresso Internacional de Estudos do Rock, n. 1, Unioeste: Curitiba, 2013. Disponível em: http://www.congressodorock.com.br/evento/anais/2013/artigos/2/artigo_simposio_1_491_gustavo-tc@hotmail.com.pdf. Acesso em 23/11/13.
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail M.; VOLOSHINOV, Valentin N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, com colab. de Lúcia T. Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. (Linguagem e cultura; v.3).
BRONCKART, Jean-Paul, BOTA, Christian. Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012. (Linguagem; v. 45).
ENGENHEIROS DO HAWAII. Simples de coração. Los Angeles: BMG Ariola, 1995. 1 CD (44:59 min): digital, estéreo.
______. Infinita Highway. Rio de Janeiro: BMG, 1999. Caixa com 10 CDs: digital, estéreo.
FRANZ, Jaqueline P. R. Mapas do acaso: as canções de Humberto Gessinger sob a ótica contemporânea. Porto Alegre: 2007. Dissertação de mestrado – Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
GESSINGER, Humberto. Mapas do acaso: 45 variações sobre um mesmo tema. Caxias do Sul: Belas Letras, 2011.
______. Twitcam Simples de Coração. 2012. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=hUoKnDZCUo8>. Acesso em 3 de dezembro de 2013.
MORI, Rafael C. Sentir com a inteligência, pensar com a emoção: ciência e tecnologia em canções de Humberto Gessinger. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, 2014. No prelo.
PINGAUD, Bernard (Org.). Sartre hoje. [tradutor não informado]. São Paulo: Documentos, 1968.
RUELLE, David. Acaso e caos. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Unesp, 1993.
STEWART, Ian. Será que Deus joga dados?: a nova matemática do caos. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
TATIT, Luiz. Semiótica da canção: melodia e letra. 3. ed. São Paulo: Escuta, 2007.
VIEIRA, Vinícius B. Nas roldanas da guerra, uma análise léxico-semântica da engenharia hawaiana. Cadernos do Congresso Nacional de Lingüística e Fonologia, Rio de Janeiro, v. 11, n. 11, p. 104-114, 2008.
1 Bacharel em Química pelo Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo, é doutorando na área de Ensino de Química pela mesma instituição. Pesquisa também nas áreas de Educação Física e Linguística.
2 Fazemos referência a duas outras canções dos Engenheiros do Hawaii: “10.000 destinos”, de Gessinger e Lúcio Dorfman, com os versos “Há mais de 1.000 destinos / Em cada esquina”, lançada no disco Tchau radar (1999); e “O castelo dos destinos cruzados”, de Carlos Maltz, Ricardo Horn e Kleber Lucio, de Simples de coração.
3 A revolta dos dândis concentra muitas menções a autores do “movimento existencialista”: o título do álbum provém de um capítulo do livro O homem revoltado, de Albert Camus; o refrão de “A revolta dos dândis I” faz referência a O estrangeiro, obra do mesmo autor; e além da citação de O muro em “Infinita highway”, Sartre é mencionado em “Guardas da fronteira” (“Acontece que eu não tenho escolha / Por isso mesmo é que eu sou livre / Não sou eu o mentiroso / Foi Sartre quem escreveu o livro”).