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O corpo audiovisual do cantor popular

Performances e gestos de Tom Zé no programa Ensaio

                           

Rafael José Azevedo[1]

                                                                                                       rafaeljoseazevedo@gmail.com

 

 

Resumo: O artigo discute questões relativas à interpretação do cantor popular a partir da mediação do dispositivo televisivo. Tratamos mais especificamente da performance de Tom Zé em edição do programa Ensaio gravada em 1991 (TV Cultura). Partimos de uma discussão acerca da natureza poética da linguagem corporal. Observamos, então, a atuação do tropicalista no Ensaio tomando por base alguns modos gerais de se comportar dos intérpretes de canção – apontados de maneira precisa por Marcadet (2008). A partir de uma análise mais pontual de duas canções presentes na edição do programa, formulamos algumas questões acerca do modo como Tom Zé opera suas aparições de maneira crítica e inventiva. Isso nos leva a pensar em como a performance desse artista pode conformar uma espécie de reflexão acerca daquilo que podemos chamar de uma estética da conduta dos cantores populares.

Palavras-chave: Tom Zé; Canção; Performance; Corpo.

 

Abstract: This article discusses questions related to the acting of a popular singer through the mediation of a television set. It deals more specifically with Tom Zé’s performance on the TV show Ensaio, broadcast by Cultura TV in 1991. It starts from a discussion on the poetic nature of body language. Then, it regards the tropicalist singer’s performance at Ensaio taking in consideration some general behaviour manners of music interpreters – as precisely pointed out by Marcadet (2008). Analyzing specifically two songs included in that particular Ensaio program, it formulates some questions about the way Tom Zé critically and ingeniously makes his appearances. This leads us into wondering about how can this artist’s performance shape a kind of reflection on what may be called here an aesthetics of behaviour of popular singers.

Keywords: Tom Zé; Song; Performance; Body.

 

 

Poética gestual e o cantor popular

            A conduta corporal do cantor popular é algo que se distancia da nossa vivência cotidiana. O palco, o cenário e o aparato sonoro, constituintes de um espetáculo de grandes proporções, são elementos que conferem a priori uma espécie de ritualidade aos gestos dos intérpretes, tal como ocorrem na sua mediação na tevê, no rádio ou no cinema. “Uma composição musical se apresenta como um objeto preciso. Sua execução por um intérprete, ainda que seja menos fácil definir o que lhe é próprio, possui, contudo, por sua vez, uma existência distinta” (GALARD, 1997, p. 74).

            O teórico Jean Galard busca demonstrar que nossos comportamentos encontram-se subjugados a modos institucionalizados de ser da linguagem corporal. Um dos postulados iniciais do autor de A beleza do gesto (1997) é o fato de que as atividades corporais podem ser tratadas como objetos estéticos e, assim, são capazes de guardar valores diversos que revelam estratégias de construção sígnica que se distanciam da coloquialidade. Duas consequências delineiam-se a partir de tal consideração: a primeira é que as condutas no dia a dia são objetos fugidios e seu potencial estético pode passar despercebido, não havendo intenção de se revelar processos de significação; a segunda seria justamente o reconhecimento da artificialidade de nossos gestos corporais, pois eles podem refletir e alimentar estéticas circunscritas e balizadas a partir de ideais e contextos diversificados. Dessa forma, Galard diferencia as condutas de natureza prosaica (atos) de ações que guardam um aspecto poético quando em performance (gestos).

            Tomar o gesto como ato poético é dar, portanto, relevância ao potencial expressivo que as condutas podem carregar em sua dimensão sensível. A materialidade de um gesto, a forma que ele toma diante de um cúmplice, carrega uma dimensão comunicativa, ao mesmo tempo em que é resultante propriamente de um jogo com processos de significação. E, da mesma forma que a poesia escrita brinca com a polissemia das palavras, o gesto faz algo semelhante com os atos. Através de operações poéticas, os signos da linguagem corporal desestabilizam-se; não apenas revelam seu aspecto polissêmico como colocam em relevo a própria operação sobre a linguagem, dando ênfase às formas, pois as últimas passam a conter em si aquilo que se quer fazer significar.

            Jean Galard aponta, no entanto, a dificuldade de se tomar as condutas corporais como gestos estetizados. Nossas atividades apreendidas no dia a dia são marcadas pela casualidade. Segundo o autor, nessas circunstâncias, uma conduta “[...] ganha sentido a partir de uma situação que não tem contornos assinaláveis [...]. Seus inícios são fugidios, seu fim é impreciso” (GALARD, 1997, p. 74). Uma das observações do autor é justamente a de que uma estética das condutas não é algo inteiramente fechado. Nossas ações corporais cotidianas, ele afirma, estão em constante negociação com os diferentes contextos em que nos colocamos. Há um trabalho racional nesse processo que remete ao nosso aprendizado sobre o corpo dado na vivência social. Os gestos do corpo tornam-se, assim, reflexos de tradições socioculturais ao mesmo tempo em que, ao tomarem contornos mecanizados/automatizados, acabam dissimulando suas próprias origens.

            Christian Marcadet (2008) dedica-se a uma reflexão sobre o estatuto do corpo do cantor popular no momento da interpretação. Ao propor uma metodologia de análise, o autor afirma que uma das tarefas mais importantes da figura do cantor é alcançar uma singularização, para que consiga sensibilizar seu(s) interlocutor(es). O cantor popular joga com as expectativas de um público, tomando como princípio a busca de uma afetação através de uma atuação que lhe seja própria e, dessa maneira, convincente. Para além da capacidade de compor e produzir boas canções, é preciso domínio sobre as técnicas do corpo, para que se impressione e desperte o interesse de uma plateia. Seu corpo, assim, deve servir como instrumento de semiotização do espaço da mesma forma que deve reforçar a singularidade da canção em performance (MARCADET, 2008). A interpretação é tomada como uma incomparável arte de síntese, “[...] que combina encenação, enunciado, personalidade, mito, pulsões do público e contexto” (MARCADET, 2008, p. 13).

            Buscando definir os modos de apropriação das canções interpretadas por parte do observador, Marcadet nomeia duas grandes formas pelas quais o corpo se articula à música. A primeira delas é o que o autor chama de incorporação, tomando-a como

 

[...] a faculdade que tem o cantor de apropriar-se e “viver” uma obra [...]. Assim, uma obra cantada pode ser totalmente interiorizada e animada pelo artista, apropriada do seu interior, de acordo com o princípio de mimesis, de tal modo que, se a ilusão é perfeita, a audiência é incitada a confundir os sentimentos próprios do papel desempenhado na narração cantada, os do intérprete/indivíduo cantando, e aqueles que emergem na intimidade de cada ouvinte. (MARCADET, 2008, p. 13-14)

 

Nesse caso, a conduta corporal é tomada como redundância em relação aos sentidos evocados pelo conteúdo formal de uma canção. Nesse âmbito entendemos que estejam comportamentos muito naturalizados que indicam um uso reiterado de uma gramática corporal normatizada. Gestos apresentados pelos intérpretes tais como as mãos no coração e os olhos fechados do cantor romântico ou as mãos jogadas ao alto dos cantores do universo gospel podem ser enquadradas nessa primeira categoria.

            O outro procedimento de que fala Marcadet é um processo em que o cantor pode “[...] levar o público a ver e entender o tema [...] pela força de convicção de um afastamento fundado sobre o princípio brechtiano do distanciamento” (MARCADET, 2008, p. 14). Tal distanciamento, fruto de uma “quebra do fluxo” de uma apresentação, deve almejar um efeito de estranhamento, pois trata-se de um recurso de desnaturalização da continuidade das ações, constituindo uma narrativa que repugna, em princípio, a empatia da recepção e visa a causar um sentir e um reagir a partir de um gesto reflexivo.

            Tomamos tais categorias como ponto de partida para entender como a figura de Tom Zé se porta no programa Ensaio no momento em que interpreta algumas de suas canções. Fazer-se presente em uma situação como essa implica, antes de mais nada, uma competência, uma consciência de que o dispositivo televisivo torna capaz uma figuração específica de quem Tom Zé pode vir a ser. O medievalista Paul Zumthor afirma, acerca das competências de um ator em performance, que o trabalho sobre o corpo (de um poeta, cantor, performer...) pode revelar “[...] um saber que implica e comanda uma presença e uma conduta, um Dasein comportando coordenadas espaço-temporais e fisiopsíquicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (ZUMTHOR, 2007, p. 31). Podemos dizer que, no caso da presença de Tom Zé no programa Ensaio, não está em jogo apenas o fato de o cantor revelar um saber acerca da linguagem corporal, mas de constituir-se enquanto um cancionista através de operações singulares na relação com os mecanismos de captação audiovisual e, virtualmente, com o público televidente.

            Outro aspecto que diz respeito ao modo como o cantor se dá a ver e ouvir por meio da tevê é algo que diz respeito a uma espécie de gramática da linguagem corporal. Cantores em performance (não só televisiva) colocam-se em constante negociação com normas e regras de interpretação. No caso de Tom Zé, não estamos diante de um corpo dócil, subjugável a coordenadas que tendem a enrijecer suas performances. Sua gestualidade corporal apresenta-se, na maioria dos casos, como algo desrespeitoso e desmesurado, mas isso não quer dizer que não exista coerência entre suas aparições. Tomamos a espontaneidade como algo valorizado pelo artista, o que implica na consideração de que esse modo de agir é uma opção estética. Se, por um lado, o espontâneo nos induz a pensar em desordem, por outro, quando se constitui enquanto uma espécie de categoria estética, podemos afirmar que se trata de um modo de institucionalizar/normatizar certas operações sobre a linguagem do corpo. Nas suas performances há sempre uma oscilação entre a atualização de algo já feito – em outros cantores e/ou nele mesmo – e gestos inovadores (novos gestos, novos movimentos, novos figurinos). Assim, sua gestualidade torna-se um terreno de atualização de determinada gramática de comportamentos corporais da mesma forma que pode tensionar valores, reordenar regras, potencializando a emergência de deslocamentos e questionamentos referentes aos modos de ser padronizados que conformam o corpo do cantor popular.

            Retomando Galard, ao buscarmos uma reflexão acerca da dimensão performática do corpo de Tom Zé no programa Ensaio, interessa-nos observar a forma como a linguagem gestual carrega o poder “[...] de variar a extensão dos elementos carregados de sentido” (GALARD, 1997, p. 34). Se, para Zumthor (2007), o acontecimento de uma performance é algo capaz de colocar tudo a prova, é por meio de um trabalho gestual de um corpo como o de Tom Zé que se revela materialmente o caráter construtivista e instável da linguagem das condutas.

            A busca de uma superação de oposições como “forma x conteúdo” e, no âmbito das condutas do corpo, entre sinceridade e dissimulação, podemos observar em Tom Zé um questionamento em relação ao que Galard chama de moral representativa da linguagem. O autor aponta como problemática essa concepção sígnica que busca uma compreensão essencialista das condutas e propõe:

 

Imaginemos que uma conduta não seja compreendida como a exteriorização de uma natureza íntima, que não seja mais suposta como manifestação de um ser interior, que não seja mais um índice de um temperamento, mas que se dê apenas por aquilo que ela é na pura exterioridade: uma forma produtora de um sentido, uma configuração significante que é supérfluo referir a uma origem substancial. (GALARD, 1997, p. 46)

 

            Quando pensamos na figura de Tom Zé, colocamo-nos diante de uma expressividade corporal que, por vezes, está longe de se mostrar como elemento “naturalista” ou “ilusionista”, sinalizando um verdadeiro “desrespeito” às maneiras gerais de se mostrar cantando. O corpo de Tom Zé, assim, parece funcionar como um instrumento em que se imprime parte de seu projeto estético: tal como este compositor coloca-se em constante debate com os modos mais institucionalizados de se fazer canção popular no Brasil, seu corpo se presta a questionar os modos mais usuais de se portar corporalmente enquanto cancionista. Tal procedimento dá a impressão de que o próprio acontecimento da interpretação, em Tom Zé, é marcado pela abertura polissêmica do gesto corporal, pois, nesse caso, seus procedimentos, marcados pela espontaneidade, não se colocam em favor de uma estabilidade sígnica.

 

O corpo de Tom Zé no Ensaio

            O registro imagético do programa Ensaio de Tom Zé revela que há algo de desestabilizador no modo como esse artista opera sua aparição naquela situação. Todavia, há, nesse caso, a escritura de uma corporalidade marcada por algo de contido, algo não tão excessivo. O que é uma característica dentro da tradição do programa, dado que a iluminação, os enquadramentos e sua sonoridade são marcados por uma atmosfera intimista algo rara na televisão brasileira. Nele, Tom Zé é colocado como centro, havendo claramente um constrangimento na relação com os instrumentos de captação audiovisual. Sua presença, aparentemente, inscreve-se de maneira paradoxal: por um lado, o dispositivo televisivo carrega um desejo de captar o menos encenado da apresentação do músico; por outro, coloca, obviamente, certos limites para a atuação do músico naquele espaço-tempo.

            A dimensão visual do Ensaio de Tom Zé vem, dessa maneira, de uma confluência entre a estética do programa e o modo como o cantor faz uso estratégico de seu corpo como parte de seu projeto artístico. Buscaremos descrever e analisar alguns trechos do programa com atenção voltada para as condutas corporais que o músico articula na execução musical a partir das ideias que apontamos sobre uma poética dos gestos e os modos de ser do cantor em performance.

            A primeira música interpretada por Tom Zé (ao lado de sua banda) é “Só (Solidão)”, canção de apelo bossanovístico que se apresenta como uma reflexão sobre a condição solitária vivida por um enunciador. A sequência de imagens começa com o registro da mão direita de Tom Zé. Sua mão está levantada e se abaixa até que escutamos o primeiro ataque do piano. Seu movimento nessa circunstância pode ser comparado ao de um regente que, pelo gesto, desencadeia a execução da música. Há, então, uma fusão entre esse primeiro plano da mão em movimento e um plano aberto do palco; vemos toda a banda em um cenário composto pelos spots de luz e pelos instrumentos e ferramentas de captação sonora. O plano vai se fechando aos poucos; Tom Zé continua sua ação posicionando suas mãos ao lado das orelhas e olha para um conjunto de cantoras que entoa a letra no canto esquerdo da tela. O plano continua se fechando, até que os integrantes da banda, que se encontram nas laterais do palco, ficam fora da moldura televisual. Tom Zé simula cantar a letra, vai movendo os braços tirando as mãos da proximidade dos ouvidos e fechando os punhos um pouco acima da cabeça, até que pega no microfone. Nesse momento, o movimento da câmera se contém, registrando em plano americano o compositor e um percussionista em segundo plano.

            A partir daí, há uma série de imagens dos instrumentos musicais sendo tocados, das cantoras e de Tom Zé, em diversos closes. Quando o músico se coloca, finalmente, a cantar, vemos na tela o registro de seu olho esquerdo. Quando canta o primeiro verso (“Na vida, quem perde o telhado”), ele fecha o olho tensionando os músculos da face, dando à interpretação uma carga passional, em conformidade com a temática da letra. Já no segundo verso (“Em troca, recebe as estrelas”), ele abre os olhos, como se seu gesto figurasse a “recompensa” do enunciador da canção. No exato momento em que Tom Zé canta “estrelas”, ele olha rapidamente para cima, como se olhasse para o céu.

 

 

Tom Zé - Programa Ensaio (2006): 3'23''; 3'29''.

           

            Nos dois versos subsequentes (“Pra rimar até se afogar / e de soluço em soluço encontrar”[2]), temos a imagem da boca de Tom Zé ao microfone em um close lateral. Não sabemos, assim, se o intérprete mantém os olhos abertos ou se os fecha. Essa imagem é interrompida em um corte que coincide com uma pontuação de natureza conclusiva da segunda parte da canção. Após uma pequena pausa, Tom Zé retoma o canto com os versos que invocam um retorno ao refrão inicial, “O sol que / sobe na cama / e acende o lençol”; no registro imagético temos um plano frontal do rosto do músico com os olhos arregalados mirando algo à sua frente. Sua expressão passa uma impressão de tranquilidade e até mesmo de frieza (há algo de distanciado nesse modo de agir). Esse plano é seguido de um close da mão que ataca um teclado. Temos novamente o plano frontal do rosto de Tom Zé com a mesma expressão anteriormente descrita; ele conclui a estrofe entoando “Só lhe chamando / Solicitando”. Ao final do plano, Tom Zé fecha os olhos enquanto se distancia do microfone.

 

Tom Zé - Programa Ensaio (2006): 3'32'';  3'49''.

            Os versos do refrão introdutório são retomados e o plano subsequente é uma tomada lateral das três cantoras que voltam a cantar. A partir desse momento, temos alternância entre imagens da mesma natureza que descrevemos, a não ser mais ao final, quando vemos o rosto de Tom Zé virado para o canto esquerdo da tela. Ao final da execução, quando uma das cantoras é enquadrada cantando o último “solidão” da música, há um último close no rosto de Tom Zé, que fecha os olhos quando ocorre o derradeiro ataque em um dos pratos da bateria; o cantor mantém uma expressão serena em seu rosto. E, mesmo não tendo terminado de soar os instrumentos, ele olha rapidamente para trás e volta a olhar para frente, tomando a palavra para apresentar a próxima canção a ser executada.

 

Tom Zé - Programa Ensaio (2006): 5'43''.

           

            Em certo sentido, a escrita de seu corpo nos planos imagéticos revelam, nos termos de Marcadet (2008), algo da natureza de uma interpretação incorporada. A solidão expressa no arranjo bossanovístico e na letra quase piegas parece ganhar outra amplitude a partir da escritura corporal do músico na interpretação. O enunciador da canção mostra-se como um cúmplice da solidão, ele não busca negá-la lançando comentários sobre possíveis ganhos e perdas do sujeito que se encontra naquela situação. Os olhos fechados de Tom Zé acabam revelando uma espécie de incorporação passional ao mesmo tempo em que há também um distanciamento quando o músico se mostra, por exemplo, “regendo” as cantoras da banda. Tom Zé, nesse sentido, poetiza sua conduta redefinindo os possíveis modos de apropriação da canção através de gestos que revelam um jogo entre a incorporação das paixões do enunciador da canção (sobretudo ao fechar os olhos) e distanciamento (o olhar voltado para os integrantes de sua banda assim como a simulação do canto no início da canção).

            Por um lado, podemos dizer que os olhos fechados de um músico remetem a uma atualização de uma gramática comportamental amplamente difundida em diferentes formas de mediação musical, induzindo-nos a tomar o gesto como signo de sofrimento, angústia. No contexto da linguagem televisiva, porém, esse mesmo gesto acaba por representar uma espécie de afronta, ou mesmo resistência, em relação aos modos mais gerais de intérpretes se mostrarem na tevê. Uma edição do programa Ensaio de 1973 – que conta com Elis Regina – é reveladora dessa contraposição que sugerimos. Em diversos momentos tocantes da interpretação da cantora, temos em seu olhar um apelo fático que revela, aparentemente, um desejo de cumplicidade entre a intérprete e o telespectador.

            A segunda canção performada por Tom Zé ao lado de sua banda no programa nos serve como exemplo dessa postura resistente por parte do cantor em relação às formas habituais de performance corporal na televisão. Entretanto, como se trata de uma canção cujo arranjo se apoia em andamento mais acelerado e também na repetitividade, temos outra maneira de escritura de imagens baseadas nos corpos em performance. Os movimentos dos músicos são marcadamente mais intensos e cíclicos, da mesma forma que o corte entre as imagens é menos espaçado, criando uma dinâmica mais acelerada.

            Em andamento acelerado, “Hein?” faz uso estratégico das repetições (inicialmente, a harmonia se resume em dois acordes alternantes), gerando uma explícita e fácil identificação de sua estrutura. A primeira expressão vocal da canção vem do grupo feminino, que entoa em uníssono a vogal “e”. Os integrantes que cantam a primeira estrofe são Tom Zé e o multi-instrumentista Jarbas Mariz. Com a letra, cria-se uma cena conflituosa – o desentendimento entre dois sujeitos –, narrada por um enunciador do sexo masculino. O relato que se faz a partir da letra cantada faz referência a uma briga de casal carregada de humor.

 

Hein?

(Tom Zé - Vicente Barreto)

Ela disse:

Nego,
nunca me deixe só.


Mas eu fiz de conta


Que não ouvi - Hein?


Ela disse: 

Orgulhoso,
tu inda vai virar pó.

Mas eu insisti, dizendo

Hein?

 

Hein hein hein hein hein hein hein hein.

Eu insisto: hein hein hein hein hein hein...

 

Ela arrepiou
e pulou e gritou


Este teu - Hein? - muleque
-

já me deu - Hein? - desgosto.

Odioso - Hein? - com jeito


Eu te pego - Ui! - bem feito


Prá rua - sai! - sujeito


Que eu não quero mais te ver

 

Eu dei casa e comida.


O nego ficou besta.

Tá querendo explorar.


Quer me judiar.

Me descartar.

 

A estratégia escolhida para que se crie a cena pela canção é totalmente apoiada no diálogo desses dois personagens – o “eu” e o “ela”. Quando os dois músicos cantam a letra até o final do momento em que a interjeição “hein” é repetida, temos uma sequência dos closes dos seus rostos num esquema plano-contraplano. Essa edição alternada se intensifica justamente no refrão: para cada “hein” temos, geralmente, o close do rosto de um desses dois integrantes.

 

Tom Zé - Programa Ensaio (2006): 6'17''; 6'18''.

           

            A canção continua seu percurso de modo a criar maior tensão devido a um salto harmônico, que deixa de ser repetitiva na terceira parte; ela sobe dois tons e passa a percorrer caminhos e tensões que se articulam ao modo como a discussão entre os personagens da canção se intensifica. Nesse trecho, o registro imagético ainda se apoia nos planos dos rostos de Jarbas e Tom Zé, mas outras imagens passam a fazer parte da performance do vídeo, como no caso do contra-plogée de uma das cantoras dançando ou das mãos que atacam o teclado. Esse último plano, inclusive, prevalece no momento em que os versos finais da letra são cantados; trata-se de um trecho da música que se apoia em “breques” conclusivos que acompanham um cantar mais contínuo da última estrofe.

            A letra da canção é repetida mais duas vezes e a natureza da performance da banda vai ganhando outra configuração, de modo a redefinir a escritura das imagens. Na primeira repetição da estrofe inicial, enquanto Tom Zé e Jarbas continuam a entoar a letra, o grupo de cantoras mantém a nota que dá tom à canção em uníssono – elas cantam “ah”. Tom Zé, em alguns momentos, vira-se para elas ao mesmo tempo em que as câmeras passam a captá-las frontalmente.

 

 

Tom Zé - Programa Ensaio (2006): 7'04''; 7'05''; 7'06''; 7'08''.

           

            Quando há o retorno ao refrão, as imagens também variam um pouco mais. Temos closes de uma das cantoras, do rosto do tecladista e também dos rostos de Tom Zé e de Jarbas Mariz. Interessante notar que o caráter rítmico da montagem é mantido de modo a realçar o diálogo da canção ao mesmo tempo em que realça um apelo videoclíptico do Ensaio.

            Nos versos subsequentes notamos, além do mais, que Tom Zé começa a se mover de modo mais explosivo, saltando, virando-se para os dois lados de maneira compulsiva e dando à interpretação um aspecto mais intenso. Esse caráter é também acrescido de uma impostação vocal também mais forte – em certos momentos o cantor solta verdadeiros gritos. A cena que se constrói a partir do canto nesse trecho é marcada pelo ápice da discussão entre os dois personagens da canção (Ela arrepiou
e pulou e gritou
 / Este teu - Hein? - muleque
/ já me deu - Hein? - desgosto. / Odioso - Hein? - com jeito
/ Eu te pego - Ui! - bem feito
 / Prá rua - sai! - sujeito
 / Que eu não quero mais te ver).

 

Tom Zé - Programa Ensaio (2006): 7'31''; 7'34''.

           

            Há novamente o breque marcando o final da letra e o retorno aos primeiros versos. Nessa última repetição, o aspecto mais relevante a ser comentado refere-se ao fato de o grupo de cantoras entoar precisamente algumas falas da letra de modo a reforçarem o diálogo que nela se apresenta, sendo eles: “nego, nunca me deixe só” e “orgulhoso, tu inda vai virar pó”. Isso faz com que a edição se construa dando a ver as cantoras exatamente nos momentos em que elas cantam.

 

Tom Zé - Programa Ensaio (2006): 7'50''; 8'00''.      

           

            O uso do plano e do contraplano ou mesmo de uma edição rítmica apoiada na estrutura da canção são elementos que acabam por realçar os traços invocados pela letra. As falas cantadas e a divisão rítmica tornam-se mais evidentes a partir dessa estratégia de construção visual. Além disso, esse modo de se comportar do dispositivo televisivo é capaz de revelar dois aspectos interessantes, que dizem respeito à forma como os corpos e suas imagens são trabalhados na mediação dessa canção. Em primeiro lugar, temos o modo como os músicos incorporam, sobretudo através da expressão facial, o tom mais descontraído e cômico de "Hein?": os músicos imprimem sorrisos em seus rostos e Tom Zé traça movimentos mais bruscos, levantando-se, abaixando-se e virando-se de maneira desenfreada.

            O segundo aspecto diz respeito ao modo como o dispositivo televisivo revela determinado modo de interação com o material corpo-cancional de Tom Zé. Se compararmos o registro imagético geral de "Hein?" com a performance da canção "Só (Solidão)", notamos em primeiro lugar que, de um modo geral, a fotografia muda de natureza – o palco, os instrumentos e os corpos dos músicos estão mais iluminados em “Hein?”, predominando uma tonalidade de cor mais amarelada, não criando silhuetas dos corpos em performance. Além do mais, como já comentamos, a edição imagética fica mais acelerada, revelando uma articulação audiovisual raramente presenciada em outras formas de mediação televisiva, com exceção do videoclipe.

            A mudança da fotografia em “Hein?” e a própria corporalidade dos músicos em performance dialogam diretamente com a temática bem humorada da canção. Mas é na edição das imagens que encontramos algo mais contundente no que faz referência ao modo como imagens e sons podem ser articulados no videoclipe. Como dissemos, temos uma articulação direta entre closes e o diálogo da letra – cria-se uma espécie de extensão visual para a estrutura musical. É como se, pelos planos, o programa operasse a construção de uma equivalência visual para o refrão da canção de modo a criar uma concordância entre as dimensões.

 

Reflexões finais

            Voltando à questão relativa aos corpos em performance na interpretação de canções, retomamos Christian Marcadet, que reflete toma os gestos enquanto elementos emparelhados à ficcionalidade da interpretação “[…] que comentam, sublinham a narração e o ponto de vista do intérprete.” (MARCADET, 2008, p. 18). Pela descrição da performance de Tom Zé nessas duas canções, podemos dizer que tal categoria pode englobar ações de natureza redundante no que diz respeito à articulação entre corpo e canção. Para além de um efeito pleonástico, entretanto, seus gestos corporais colocam em relevo algo de inesperado. Por vezes, eles estão a serviço de uma tradução dos sentidos evocados pulo material sonoro, demarcando a incorporação. Em outros momentos, há um distanciamento entre o corpo de Tom Zé e aquilo que seria a temática da canção. Ao simular o canto no início de “Só (Solidão)”, por exemplo, temos a impressão de que o músico quer fazer de seu corpo um meio em que se revele um cantar feminino. Em sua condição de intérprete, através dessa ação, é como se ele se distanciasse de seu próprio corpo, reestruturando a maneira como a canção é incorporada, delineando (em parte) o modo como pode ser recebida pelo telespectador.

            Nessa mesma parte de “Só (Solidão)”, um movimento corporal que se sobressai é o uso das mãos de maneira semelhante à dos regentes de orquestra. Tal gesto não remete exatamente a uma incorporação das paixões do enunciador, marcando, consequentemente, um distanciamento entre o corpo do cantor e o sujeito da canção. Marca, possivelmente, uma preocupação de Tom Zé na forma como interage com sua banda. Esses gestos mais contidos revelam, também, uma resposta do corpo à pulsação lenta e à dinâmica algo confortável impressa pela canção.

            Essa última impressão é passada ainda quando os músicos interpretam a segunda canção no programa. O modo como eles se mostram dançando ritmicamente e a forma como seus movimentos são desenhados de maneira mais intensa revela uma articulação sincrônica, por assim dizer, entre as pulsões do corpo e a pulsação da canção. Desse modo, cria-se uma dinâmica específica para o modo como o programa dá às imagens elementos que lhe conferem identidade.

            Os corpos presentes no palco funcionam, em si, como matrizes geradoras de uma escritura audiovisual. Mais do que um direcionamento do ato receptivo, ou um efeito fático, Tom Zé, através do corpo, dá ao telespectador “[…] os meios para interpretar a significação sem que a mesma seja imposta.” (MARCADET, 2008, p. 18). Há, na forma como Tom Zé se comporta, uma abertura dos processos de significação no que se refere à natureza interpretativa. Em certos momentos de “Só (Solidão)”, podemos dizer que ele incorpora o sujeito da canção que descreve a solidão fechando os olhos. Em outros, incorpora o canto feminino, dublando as vozes das cantoras. A percepção de tais formas de interpretação revela como os gestos do corpo guardam uma polissemia que, por sua vez, é também reflexo do conteúdo sonoro que os acompanha.

            No que se refere a uma interpretação distanciada, poderíamos aferir que sua imitação do gesto do maestro, que domina aquela situação garantindo uma boa execução musical, coloca-se como um outro personagem que não exatamente o enunciador da canção. Já em “Hein?”, seu corpo parece se aproximar da figuração do conteúdo mais explícito da composição, delineado por um outro modo de se comportar. Assim, o corpo de Tom Zé revela-se como um dispositivo cuja natureza pode ser tão polissêmica quanto seu projeto cancional.

            Afinal de contas, se as palavras não são o bastante (ZÉ, 2003), a performance corporal de Tom Zé revela como a natureza instrumental do corpo do cantor popular ajuda a constituir um pacto com a recepção – e também um pacto com os dispositivos de captação audiovisual. Desse modo, não importa somente a capacidade de representar papéis fixos numa “incorporação literal” dos versos cantados; o corpo do cantor carrega desejos e pulsões que se imprimem nessas outras possibilidades de relação. Sua dança conforma a canção, mas o caráter aparentemente espontâneo de sua corporalidade revela que os processos de significação são circunstanciais, resultantes de uma experiência espaço-temporal específica. A interpretação de canções em Tom Zé, dessa maneira, não se coloca apenas sob o signo de uma natureza representativa da linguagem corporal. Em certos casos, as incorporações são, de fato, mais evidentes; no entanto, o apelo espontâneo de seu corpo – que chega a gerar um efeito de anti-ilusionismo e de quebra de um naturalismo comportamental – coloca-se em primeiro plano. Isso nos induz a relacionar esses modos de performance com um projeto cancional que se propõe como uma espécie de reflexão acerca dos modos mais naturalizados de ser da canção popular brasileira. Nossa apreensão de sentidos a partir das imagens do corpo de Tom Zé (e de sua banda) no Ensaio revelam articulações instáveis e, ao mesmo tempo, complementares.

 

Referências

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MARCADET, Christian. Teatralidade, Política e Sexualidade em Espetáculos Musicais.  In: Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro / Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - n. 21, agosto. 2008. Salvador : UFBA/ PPGAC, 2008.

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Videografia

Tom Zé: Programa Ensaio - 1991. FARO, Fernando. 2006. 1 DVD (60 minutos).

 



[1] Professor assistente no Centro Universitário de Belo Horizonte (Unibh) nos cursos de Produção Multimídia e Comunicação. Pesquisador convidado do Núcleo de Estudos Tramas Comunicacionais (UFMG). Mestre em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociabilidade da UFMG. Músico, compositor e produtor musical atuante principalmente na cidade de Belo Horizonte participando dos trabalhos de Makely Ka, Maísa Moura, A Fase Rosa, entre outros. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3951116308129681

[2] Na gravação original da canção, no disco Estudando o samba (1975), a letra é “Pra rimar até se afogar / e de soluço em soluço esperar”.