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Timbre em Semiótica da Canção: Retrospectivas e Perspectivas

Lucas Takeo Shimoda (FFLCH-USP/CNPq)[1]

lucas.shimoda@yahoo.de

 

Resumo: A proposta de um estudo semiótico sobre o timbre é uma combinação audaciosa entre um objeto relativamente pouco explorado e um projeto teórico ambicioso em sua missão de elucidar a significação humana. Posta nesses termos, a tarefa se mostra como uma incumbência titânica que exige o estabelecimento de limites nítidos, sem os quais a pesquisa corre o risco de ficar à deriva. O presente trabalho tem por objetivo traçar essas fronteiras que delimitam o perímetro teórico das reflexões semióticas sobre o timbre a serem desenvolvidas pelos trabalhos futuros. Em primeiro lugar, será feita uma breve revisão das premissas metodológicas e epistemológicas do projeto teórico da Semiótica da Canção. Em seguida, propõe-se uma leitura crítica das teses brasileiras mais recentes sobre o tema a fim de extrair linhas de força para um estudo semiótico do timbre.

Palavras-chave: Semiótica da canção; Timbre; Significação; Enunciação.

 

Abstract: The proposition of a semiotic study on timbre is an audacious combination of a relatively unexplored object and an ambitious theoretical project in its mission of elucidating human signification. Defined in these terms, the task turns out to be a titanic task to which a clear definition of limits is required in order to prevent the research from being led astray. This paper aims to define the theoretical framework extent of the semiotic research on timbre to be conducted by forthcoming projects. At first, Song Semiotics' methodological and epistemological assumptions will be briefly reviewed. After that, a critical reading of the most recent PhD theses will be presented in order to draw out guidelines for the semiotic studies on timbre.

Keywords: Semiotics; Tone colour; Signification; Enunciation.

 

Introdução

Dentre as diversas maneiras de se analisar criticamente a canção, o modelo semiótico desenvolvido por Luiz Tatit tem se mostrado um aparato teórico extremamente flexível e fecundo. Em grande medida, a fecundidade desse ferramental analítico decorre do alto grau de coesão com que trata as imbricações entre letra e melodia. À medida que esse modelo de análise foi se desenvolvendo, novos questionamentos vieram à tona e exigiram maior aprofundamento das reflexões. Entre os muitos caminhos a desbravar, a questão do papel do timbre na produção de sentidos na canção se impôs com grande força. Para compreender com mais clareza a necessidade de um estudo semiótico do timbre, bem como os contornos de tal empreitada, faz-se necessário retraçar algumas linhas da constituição do projeto teórico da Semiótica da Canção.

Em meados da década de 1980, Luiz Tatit defende sua tese de doutorado, cujo título “Elementos semióticos para uma tipologia da canção popular brasileira”, já traz em si elementos significativos para compreender o valor de inovação de seu gesto naquele momento histórico. A canção popular de consumo não era considerada, àquela época, objeto digno de estudos em âmbito acadêmico. Com frequência, as análises excluíam por completo a participação das modulações melódicas na construção de sentidos e consideravam apenas o componente verbal, que recebia o mesmo tratamento analítico dado a um poema. Do ponto de vista musical, essas canções também nunca receberam tratamento científico, posto que as configurações melódicas e harmônicas utilizadas nessa linguagem eram consideradas demasiadamente simplórias em comparação com as composições da música erudita (TATIT, 2007a, p. 65-67). É nesse ponto que reside o toque de originalidade do projeto de L. Tatit: tratar a canção popular urbana como um objeto de estudo singular em suas especificidades, liberto das grades analíticas impostas pelos métodos da análise literária e (etno-)musicológica.

É necessário também destacar a abordagem da canção popular enquanto fenômeno linguageiro. Assim como os primeiros trabalhos realizados pela semiótica da Escola de Paris lutavam para desvencilhar a análise do texto das determinações de ordem biográfica, psicológica e sócio-histórica (cf. GREIMAS, 1974), a abordagem proposta pelo semioticista brasileiro olhava para a canção em suas estruturas imanentes, isto é, as relações de compatibilidade entre letra e melodia. A opção pelos princípios de análise interna e imanente destaca essa segunda particularidade da proposta da semiótica da canção em oposição a numerosas análises que, não raras vezes, se limitam a apontar dados dispersos e puramente anedóticos sobre o processo de composição e execução das canções. Com esse objetivo em mira, os primeiros trabalhos de Luiz Tatit procuram estabelecer os elementos semióticos básicos para descrever o funcionamento da linguagem cancional. A aplicação desses conceitos em uma ampla amostra de canções do repertório popular nacional buscou evidenciar a adequação do instrumental analítico ao objeto.

Uma vez afastados os elementos não-pertinentes a um estudo que se pretenda estrutural e imanente, fez-se necessário delimitar o objeto de análise. Em vista disso, os primeiros trabalhos desenvolvidos buscavam determinar as relações de compatibilidade entre letra e melodia. O mapeamento dessas possibilidades permite reconstruir a arquicanção, entendida como a configuração de uma estrutura virtual subjacente às linhas entoativas das incontáveis canções que habitam nossa memória auditiva. O seguinte trecho registra com clareza o objetivo visado pelos empreendimentos daquele momento histórico:

 

A extensão do sentido produzido por uma canção é certamente inatingível pela análise. O que se tenta, no fundo, é explicar alguns aspectos de produção desse sentido geral, a partir do reconhecimento dos traços comuns a todas as canções, aqueles que, independentemente das particularidades da obra, nos oferecem uma pronta identificação de sua natureza. Aqueles que nos permitem dizer, simplesmente: ‘isto é uma canção’. (...) Arquicanção é o conjunto dos traços (ou processos) comuns às canções, a partir da neutralização dos traços específicos que as opõem entre si. (TATIT, 2002, p. 26)

 

 

Logo na sequência da citação acima, o semioticista propõe três níveis distintos de análise, a saber: (i) o nível da arquicanção, (ii) o nível das canções propriamente ditas e (iii) o nível dos efeitos de sentido idiossincráticos. Lançando mão dessa hierarquização, pode-se localizar com clareza o campo de ação dos estudos realizados até então. É no primeiro nível dessa tripartição que se concentraram a maior parte dos estudos, que visavam a descrever o sentido/direcionalidade da linha do canto por meio das oscilações tensivas que regulam os processos de tematização, passionalização e figurativização[2]. O desiderato de estabelecer “os traços comuns a todas as canções” pode ser interpretado como uma busca pela langue cancional, fazendo aqui referência à célebre oposição do linguista Ferdinand de Saussure. Isso parece justificar, pelo menos em parte, o predomínio desse campo de estudos sobre os demais.

Delimitar o objeto de estudo ao chamado “núcleo de identidade” da canção, formado pela configuração dos parâmetros de altura e duração, implicava necessariamente relegar a segundo plano outros elementos, tais como o arranjo, a seleção de timbres, e modulações de dinâmica, entre outros. A definição do objeto nesses termos permitiu dar conta da produção de sentidos no domínio cancional em sua globalidade (e não mais apenas em uma mera reunião de dados ocorrenciais), lançando-se mão de um instrumental teórico fortemente articulado e capaz de descrever com igual poder heurístico tanto fenômenos pertencentes ao domínio verbal quanto pertencentes ao domínio melódico. À medida que o novo modelo de análise se consolidava, foram levantados questionamentos sobre qual seria o papel dos elementos excluídos da análise na produção de sentidos nos textos cancionais. Ainda que a eficácia heurística da semiótica da canção não estivesse sob ameaça, as críticas chamavam a atenção para alguns pontos cegos desse novo modo de abordar a canção. De fato, a decisão de eleger os elos entre letra e melodia como objeto de análise nunca ignorou a participação dos demais elementos na construção de sentidos da canção: “Produzir canções significa produzir compatibilidades entre letras e melodias – aos quais se agregam recursos musicais de toda ordem – de modo a configurar um sentido coeso”. (TATIT, 1997, p. 117)

Uma vez demonstrada a operacionalidade do modelo, observou-se a tentativa de alargar as fronteiras teóricas com a incorporação dos elementos deixados em segundo plano nessa primeira etapa de desenvolvimento da teoria. Nesse momento, as pesquisas semióticas aprofundam suas incursões no terreno das interpretações vocais, do arranjo, do andamento, da qualidade vocal, do timbre, entre outros temas. No entanto, tais investigações reclamavam o redelineamento do objeto de análise, sensivelmente distinto daquele mirado pelas pesquisas iniciais.

Dentre os autores participantes desse movimento de expansão do modelo da Semiótica da Canção, selecionamos três trabalhos cujas propostas se mostram particularmente fecundas para tratar a questão do timbre dentro desse referencial teórico. A tríade teórica que sustentará nossa reflexão se apoia nas teses de doutorado “O arranjo como elemento orgânico ligado à canção popular brasileira: uma proposta de análise semiótica”, de Márcio Coelho (2007), “Melodia e prosódia: um modelo para a interface música-fala com base no estudo comparado do aparelho fonador e dos instrumentos musicais reais e virtuais”, de José Roberto do Carmo Jr. (2007), e “Semiótica do discurso musical: uma discussão a partir da obra de Chico Buarque”, de Peter Dietrich (2008). Nas linhas que se seguem, as ideias centrais das teses brasileiras serão sumarizadas e confrontadas criticamente a fim de extrair um mapa metodológico que sirva de guia para as investigações sobre o timbre. Uma revisão crítica exaustiva ultrapassaria em muito os modestos limites deste texto, portanto o cotejo desenvolvido aqui visará filtrar somente os pontos mais diretamente relacionados ao estudo do timbre em semiótica da canção[3].

 

Enunciação

Da leitura comparativa dos três trabalhos anteriormente mencionados, o ponto que salta mais imediatamente à vista é o consenso implícito de que o timbre deve ser alocado no nível discursivo do percurso gerativo de sentido e, portanto, intimamente conectado à instância da enunciação. Em diversos casos extraídos de análises práticas, Dietrich (2008, p. 73-88; 137-148) mostra que o timbre funciona como recobrimento figurativo de atores do enunciado. Além de conferir maior concretude aos actantes, transformando-os em atores, o timbre enquanto elemento de figuratividade é também capaz de recriar figuras do mundo no interior dos textos.

Perspectiva semelhante é assumida por Carmo Jr. (2007). No capítulo “Denotação e conotação”, o autor posiciona o timbre no âmbito da conotação e, em seguida, declara explicitamente o parentesco entre sistema conotativo e enunciação: “A semiótica conotativa diz respeito fundamentalmente à instância da enunciação. Todas as marcas do sujeito da enunciação (sexo, idade, nacionalidade etc., além dos ilimitados ‘estados de alma’) estão impressas na substância da expressão” (Carmo Jr., 2007, p. 134). Esse ponto de vista é confirmado no capítulo dedicado às questões de enunciação musical, em que o autor considera o timbre como marcador da categoria de pessoa do nível discursivo do percurso gerativo do sentido (Carmo Jr., 2007, p. 148-174).

No trabalho de Coelho, a relação entre timbre e enunciação se estabelece de maneira mais sutil e deve ser inferida a partir da convocação do conceito de uso, cunhado pelo linguista L. Hjelmslev, para explicar a seleção de timbres que constituem o arranjo (2007, p. 130-147). O papel fundamental da enunciação se confirma quando o autor recorre ao pensamento de Bakhtin para compreender a apropriação do discurso alheio no arranjo. Qualquer incerteza acerca da primazia da enunciação em torno desse tema pode ser dissipada com a seguinte afirmação do semioticista Denis Bertrand, autor citado ostensivamente por Coelho: “A enunciação é, assim, compreendida como a mediação entre o sistema social da língua e sua assunção por uma pessoa individual na relação com o outro” (Bertrand, 2003, p. 89).

A insistência sobre a centralidade da enunciação não se justifica simplesmente pela mera confluência de opiniões. Ao tanger esse conceito, o timbre reverbera em outras regiões do edifício teórico da semiótica, dentre os quais destacamos a figuratividade, a conotação e o próprio conceito hjelmsleviano de uso, bem como seu desdobramento mais recente na noção de práxis enunciativa. A enunciação não só funciona como eixo gravitacional dessas questões, mas também ocupa posição-chave na constelação conceitual da semiótica, interpolada entre a esfera do enunciado e das estruturas semionarrativas e a esfera do discurso e dos fenômenos de intertextualidade e interdiscursividade. Por isso, a enunciação pode servir de “porta de acesso” para investigar o funcionamento semiótico do timbre.

 

Figuratividade

A ideia de que o timbre serve de revestimento figurativo tanto de atores do enunciado quanto da enunciação é um dos poucos pontos pacíficos nos estudos semióticos sobre o tema e, de fato, não é uma descoberta recente. Em suas investigações sobre o processo de figurativização na canção[4], Luiz Tatit já chamava atenção para esse fato.

 

 

Assim sendo, a distensão simultânea dos dois parâmetros pode evidenciar a presença do timbre vocal, elemento especificador da instância de enunciação, que vem reforçar o terceiro modelo de construção melódica a que chamamos figurativização enunciativa. A função normalmente desempenhada pelo timbre, entretanto, é a de ponte de ligação entre as zonas de densidade tensiva dos enunciados melódicos e o sujeito da enunciação que, na canção popular, vem manifestado pelo cantor. (TATIT, 1997, p. 121)

 

Pouco mais de dez anos depois, a mesma constatação reaparece em Dietrich, embora reformulada em outras palavras e inserida em uma reflexão de outra natureza.

 

O timbre, independentemente de suas características acústicas (e independentemente das suas condições de produção, como veremos), é sempre reconhecido como o som de algum instrumento. E um instrumento – uma vez reconhecido seu timbre – passa a ser não só um som, mas uma figura do mundo. (DIETRICH, 2008, p. 139)

 

Embora em termos sensivelmente distintos, Carmo Jr. também toca na questão do revestimento figurativo dos atores quando relaciona o timbre aos mecanismos de breagem na categoria de pessoa.

 

Por fim, o enunciador musical não pode dizer “eu” ou “tu”, mas pode criar um efeito de presença enquanto timbre. Por isso falamos na “voz” do piano, do violino, do oboé. Já vimos que reconhecemos a identidade de uma pessoa ou de um instrumento pela qualidade específica de seu timbre. Existem timbres calorosos, afetuosos, ásperos etc., e todos esses efeitos sinestésicos nada mais são do que qualificadores de uma presença. (Carmo Jr., 2007, p. 175)

 

Alinhando as reflexões dessa maneira, é possível revelar simultaneamente uma conquista e um problema ainda a ser resolvido. O trunfo ambivalente do conceito semiótico de figuratividade repousa no fato de que, em princípio, o inventário de figuras é aberto. Nesse ponto, o conceito se compatibiliza com a ideia amplamente difundida de que, ao contrário do que ocorre com os parâmetros sonoros de altura, duração e intensidade, o repositório de timbres não pode ser esgotado, conforme evidenciado pela própria instabilidade do vocabulário descritivo: “No plano do conteúdo, os timbres são reconhecidos e identificados com sua fonte. Além disso, eles podem ser sérios ou descontraídos, frívolos ou austeros. Um timbre pode também ser dramático – ou simplesmente engraçado.” (Dietrich, 2008, p. 141, grifos nossos).

Atrás dessa convergência se esconde o problema da não-exaustividade da descrição. A se pautar pelas palavras de Dietrich, pode-se inferir que existirão tantos timbres quanto forem as fontes sonoras ou os estados de alma. Uma breve consulta ao verbete “Figurativo” do Dicionário de semiótica mostra que um mesmo enunciado narrativo pode receber, em tese, infinitos recobrimentos figurativos. Do mesmo modo, há múltiplas possibilidades de associar figuras e temas (Greimas&Courtés, 2012, p. 213). A despeito da impossibilidade de esgotar a análise, essa flexibilidade do conceito de figuratividade permite explicar os fenômenos de variabilidade semiótica. A análise semiótica deve boa parte de sua economia descritiva à maleabilidade da conexão entre estruturas profundas e manifestações de superfície.

Ainda sobre esse tópico, é interessante notar que, tanto em Carmo Jr. quanto em Dietrich, os termos utilizados para caracterizar o timbre se relacionam estreitamente aos domínios do sujeito, ora fazendo referência a movimentos de alma (afetuoso, frívolo, austero, engraçado, etc.), ora fazendo referência à sensibilidade do corpo (caloroso, áspero, etc.). De nossa parte, gostaríamos de observar que essa divisão[5] poderia ser sincretizada com maior proveito teórico na unidade proprioceptiva constituída pelo corpo-próprio conforme a concepção de Merleau-Ponty (cf. Tatit, 1997, p. 35-48). Essas constatações se coadunam com a intuição de que a voz (incluindo aí as particularidades do timbre) é uma extensão do corpo do sujeito: “(...) o timbre principal, a voz, é um traço metonímico do intérprete a ser projetado livremente sobre a obra sem que haja também qualquer orientação prévia.” (TATIT, 1997, p. 158).

 

Sujeito e corpo

Conforme discutido anteriormente, o timbre figurativiza o sujeito e sua corporeidade. Em princípio, a ideia parece ser apenas uma formulação mais rebuscada da definição ingênua de timbre enquanto “identidade da fonte sonora”. Para uma reflexão não-científica, tais refinamentos conceituais têm pouca relevância. Para uma reflexão de natureza semiótica, essa afirmação tem consequências impactantes tendo em vista a posição central assumida pelo corpo e pela estesia nos desenvolvimentos mais recentes da teoria. Não é demasiado destacar que essa ponte entre voz e corpo já está registrada nos trabalhos de Tatit, como o mostra o seguinte excerto de O cancionista (2002):

Se lembrarmos que para haver canção já temos que contar com um primeiro nível de figurativização, o da voz presente, a explicitação da presença do corpo – que, de resto, está pressuposto pela voz mas raramente referido – constitui um segundo nível de motivação que reforça a ilusão enunciativa. (Tatit, 2002, p. 248)

 

Note-se que a figurativização operada pela dita “voz presente” age como elemento pressuposto aos demais processos que integram o modelo tripartite de Tatit. Sendo assim, o que as melodias figurativizadas fazem é adensar o tecido figurativo já constituído pelo timbre de voz do intérprete. Ainda com base nas palavras de Tatit, vemos que a presença do corpo instaurada desse modo raramente é posta em questão, o que parece explicar a dificuldade de cercear o timbre enquanto objeto de análise.

Quando Carmo Jr. problematiza as diferenças entre próteses reais e virtuais, o que está em jogo é justamente o estatuto do corpo do sujeito da enunciação (CARMO JR., 2007, p. 150-163). Segundo o autor, a prótese virtual é capaz de gerar combinações de alturas, durações, intensidades e timbres que são impossíveis para uma prótese real. As razões do virtuosismo da prótese virtual se encontram justamente em sua “a-corporeidade” em comparação com as limitações do corpo sensível humano, conforme sumarizado pelo próprio autor: “Em suma, enquanto os limites e as possibilidades dos instrumentos reais são de ordem física e tecnológica, os limites e possibilidades dos instrumentos virtuais são de ordem lógica” (Carmo Jr., 2007, p. 166). É essa mesma oposição que explica também a insuficiência enunciativa dos sintetizadores de som, ou seja, sua incapacidade de criar variações de intensidade, dinâmica e timbre (Carmo Jr., 2007, p. 165-167).

O exame da natureza dos instrumentos musicais (realizado por Carmo Jr., bem como por Coelho) como forma de desbravar o território do timbre é criticado por Dietrich, que considera esse tipo de questão como pertinente ao discurso de produção musical e não ao discurso musical propriamente dito (2008, p. 26). Ao reafirmar o princípio de imanência e a impossibilidade de ir ao mundo hors-texte, esse autor acaba colocando em segundo plano o papel desempenhado pelo corpo do sujeito da enunciação e suas marcas deixadas no enunciado.

 

(...) o reconhecimento de um instrumento é fruto de uma estratégia de construção do sentido. O enunciador tem o poder-fazer – e não o dever-fazer – criar o efeito de sentido que leva ao reconhecimento de um instrumento. Pouco importa se esse instrumento tem existência real ou foi emulado em um sintetizador. Se percebermos determinado som como sendo o som de um violino, então a estratégia produziu seu efeito. (Dietrich, 2008, p. 126, grifos nossos)

 

No excerto acima, as noções de “efeitos de sentido” e de “estratégia persuasiva” vêm substituir as explicações calcadas em dados da morfologia dos instrumentos musicais. Nesse ponto, a investigação de Dietrich trilha caminhos radicalmente opostos aos de Carmo Jr. e Coelho. Para Dietrich, a operação de reconhecimento do timbre (um fazer-interpretativo como qualquer outro) é soberana e basta para explicar os efeitos de sentido e os simulacros de sujeito construídos no texto. No entanto, tal linha de raciocínio parece ignorar o forte vínculo contraído entre simulacros de sujeito e sua corporeidade, considerados ambos como construtos discursivos (cf. DISCINI, 2009). No que diz respeito ao estudo do timbre, essa relação é ainda mais difícil de ser apagada. A voz é parte do corpo humano. Portanto, descrevê-la significa necessariamente fazer referência à corporeidade do sujeito, ainda que apenas de maneira oblíqua.

Conotação e variabilidade semiótica

Ainda tomando a enunciação como ponto de referência, vale a pena discutir a proposição de Carmo Jr., que demonstra por meio da prova de comutação a pertinência do timbre ao domínio da conotação. Embora essas reflexões sobre o timbre estejam restritas quase exclusivamente ao capítulo intitulado “Denotação e conotação” (Carmo Jr., 2007, p. 127-147), elas trazem à tona uma série de questões relacionadas tanto à corporeidade da voz quanto ao uso e à colocação em discurso.

Antes de tudo, gostaríamos de discutir a conotação enquanto fenômeno de variabilidade semiótica. Quando comprova que o timbre pode ser substituído livremente, Carmo Jr. fornece as evidências necessárias para classificá-lo como variante, segundo os termos do projeto teórico de Hjelmslev (Carmo Jr., 2007, p. 142). Trilhando seus rumos próprios, a argumentação do autor reencontra as conclusões de Tatit sobre a efemeridade da voz em oposição à perenidade da linha melódica:

No caso da canção, esses fenômenos de presentificação enunciativa são ainda mais acentuados em virtude da necessária interpretação de um cantor que literalmente recompõe a obra a cada nova execução. Além disso, a voz e a melodia se sobressaem, respectivamente, como substância e forma sonoras, cujas unidades se constituem de temas ou frases bem além das dimensões silábicas. (TATIT, 2007b, p. 256, grifos nossos)

 

Embora ambas as conclusões pareçam entrar em completa consonância, a reformulação da problemática em termos de conotação e denotação abre outras perspectivas para pensar a questão. Essa “redescoberta” não se deu por acaso. Ao se aventurar nos territórios intocados da semiótica da canção, as pesquisas mais recentes da área se viram obrigadas a reacender a discussão sobre o papel da composição e da interpretação na construção do texto e do sentido musical. Em outras palavras, o que está em jogo é a própria delimitação das fronteiras do objeto de análise. Segundo Carmo Jr., o chamado “núcleo de identidade” de uma melodia reside na configuração dos elementos denotativos (cronemas, tonemas e dinamemas). Já presentes em estado latente na composição, os elementos conotativos (variações de dinâmica, andamento, timbre, etc.) vêm à tona pela gestualidade do intérprete.

Elaborar uma teoria da conotação da expressão musical equivale a reconstituir em redes como os parâmetros que constituem as solidariedades observadas na substância da voz humana e dos instrumentos musicais. Existem razões para crermos que o andamento, a dinâmica e o timbre são algumas das categorias que poderiam constituir esse sistema de conotadores. (Carmo Jr., 2007, p. 146)

 

A problemática do elo entre composição e interpretação divide as opiniões dos pesquisadores. Dietrich recusa abertamente a primazia do binômio letra-melodia na constituição do chamado “núcleo de identidade” da canção:

 

Letra e melodia são ‘nucleares’ apenas para efeito de identificação. Eles são tão portadores de sentido quanto qualquer outro elemento musical da canção, pois carregam ou escondem valores para manifestação posterior tanto quanto qualquer elemento musical. (Dietrich, 2008, p. 35)

 

Mais do que mera discordância pontual, a crítica à constituição do objeto de análise traz a reboque uma crítica ao modo de conduzir a própria análise. Para o autor, a análise da linha entoativa abstrai elementos que deveriam caminhar ombro a ombro com altura e duração na produção de efeitos de sentido no texto cancional, como é o caso do timbre: “Podemos pensar então que existe um intervalo de altura entre duas notas, mas também existe um ‘intervalo’ de durações, intensidades e timbres” (Dietrich, 2008, p. 110).

Quando reivindica para o timbre (bem como para os demais parâmetros sonoros) os mesmos “direitos de igualdade”, o autor toca a delicada questão da virtualidade dos objetos postos em análise. Conforme notado acima, a linha entoativa construída por altura e duração ocupa tanto em Carmo Jr. quanto em Tatit a posição de unidade virtual, isto é, anterior à manifestação. Como se pode ler no excerto abaixo, Dietrich não partilha completamente dessa visão.

 

Esses obstáculos podem ser sintetizados em dois grandes grupos. O primeiro diz respeito à virtualidade do objeto de análise quando reduzido a um perfil melódico. Quando o modelo analisa, por exemplo, a canção “Garota de Ipanema”, fazendo o recorte do seu perfil, ela passa a ser uma “Garota de Ipanema” virtual, poderíamos até mesmo dizer “genérica”. Ela não começa mais na nota sol3, dó5 ou lá4. Suas notas não têm mais o timbre cristalino de Gal Costa ou o grave cavernoso de Tom Jobim. Ela não é nem sussurrada como em João Gilberto, nem tem a impostação dada na versão de Pavarotti. (Dietrich, 2008, p. 246)

 

Tomamos a liberdade de apresentar essa citação mais longa por considerar que ela expõe com transparência ideias fundamentais para pensar a démarche da análise semiótica de canções. Em princípio, a ideia de abrigar os elementos musicais deixados em segundo plano atende a uma exigência incontornável para o desenvolvimento dos estudos na área. No entanto, é intrigante ver o estatuto de virtualidade do objeto ser tratado como obstáculo. É precisamente no seu poder de deslindar as invariantes por trás das variações superficiais da manifestação que reside um dos grandes trunfos da semiótica francesa, como se pode constatar ao longo de todo o percurso da disciplina desde os estudos da narratividade (cf. Greimas, 1975) até as investigações sobre as relações entre nível figurativo e nível figural (cf. Zilberberg, 2006). Através das diversas análises apresentadas, Dietrich busca demonstrar que os parâmetros sonoros tem igual cota de participação na produção de sentidos no texto cancional/musical. Porém, ao proceder dessa maneira, o autor achata no mesmo patamar elementos que deveriam ser alocados em diferentes estratos.

O conceito hjelmsleviano de conotação pode resolver o problema de maneira satisfatória, pois permite dar tratamento sistemático para as variantes (como é o caso do timbre), ao mesmo tempo que as diferencia das invariantes quanto a seu lugar de pertinência. Mais do que apenas reafirmar o caráter variável do timbre, essa abordagem localiza com maior precisão a participação desse parâmetro sonoro na produção de sentido no texto cancional. O interesse desse ponto de vista parece residir na delicada operação de adjunção efetuada pelo analista, que inclui os elementos do sistema conotativo (timbre, dinâmica, arranjo, etc.) mas sem misturá-los com os elementos do sistema denotativo (altura, duração e intensidade). O argumento apresentado por Carmo Jr. serve de evidência eloquente a favor do tratamento do timbre em termos de conotação:

 

Essa abordagem do problema nos parece interessante porque mostra, em primeiro lugar, que denotação e conotação musicais têm sido inadequadamente reunidas sob a rubrica única “sentido”. Não deveríamos falar em sentido, mas em sentidos musicais. Além disso, ela propõe um método único para a análise dos sistemas denotativos e conotativos. (Carmo Jr., 2007, p. 147, grifos no original)

 

Enquanto elemento do sistema conotativo, o estudo do timbre supõe como conhecido o sistema denotativo, que corresponde ao núcleo de identidade da canção. Nesse sentido, a abordagem do timbre pelo viés da conotação se beneficiaria tanto da homogeneidade de modelos analíticos quanto das conquistas obtidas no terreno da linha do canto. O respeito a essa hierarquia na análise se impõe como uma exigência necessária para aquele que deseja conduzir a pesquisa por esse rumo. Sem isso, a distinção entre sistema denotativo e sistema conotativo se torna inoperante, uma vez que a própria oposição forma vs. substância seria anulada. Esse risco foi observado argutamente por Carmo Jr. logo nas páginas iniciais de seu trabalho:

 

Quanto a Roland Barthes, coube a ele estabelecer em Elementos de semiologia a interpretação “oficial” para a questão da conotação. Se essa interpretação tem o mérito de trazer o problema da conotação e da denotação para a ordem do dia, ela passa um tanto ao largo das colocações originais de Hjelmslev que lhe serviram de ponto de partida. Veremos que, a rigor, Barthes dá um passo atrás ao desconsiderar a distinção entre forma e substância, tratando a conotação como uma relação entre significante e significado. (Carmo JR., 2007, p. 21, grifos no original)

 

Nesse aspecto, o estudo do timbre enquanto elemento conotativo teria a vantagem de contar com as fronteiras do sistema denotativo já estabilizadas pelas pesquisas anteriores em semiótica da canção. No entanto, essa possibilidade apresenta um ponto fraco crítico quando se toma em consideração a seguinte afirmativa de Carmo Jr.: “Em última instância, a semiótica da canção é uma teoria das conotações (plano do conteúdo) criadas pelo cancionista ao manipular os elementos do plano da expressão oral-melódica.” (Carmo Jr., 2007, p. 16). Sob essa perspectiva, a linha de investigação considerada aqui revela sua vulnerabilidade. Segundo Hjelmslev, a experiência indutiva não registra a ocorrência de semióticas conotativas de segundo grau (isto é, uma semiótica conotativa incidindo sobre outra semiótica também conotativa), embora elas possam ser previstas por dedução (HJELMSLEV, 1975, p. 109). Pelo desejo de fidelidade à letra de Hjelmslev, é preciso não perder de vista esse risco. Outro aspecto positivo desse conceito é a sua relação estreita com a noção de uso, também tributária do pensamento do líder da Escola de Copenhague e cujo proveito teórico será discutido a seguir.

Uso e práxis enunciativa

Em texto publicado originalmente em 1943 intitulado “Língua e fala”, Hjelmslev chama atenção para as discrepâncias entre as diferentes acepções subjacentes à parole saussuriana e reorganiza-as nos termos da tríade norma/uso/ato (HJELMSLEV, 1991, p. 81-93). É interessante ressaltar que Hjelmslev atribui pesos desiguais a esses conceitos ao destacar expressamente a preponderância do uso, que permite dar conta das regularidades não previstas pelo esquema.

 

Isso nos leva a dizer que a teoria da instituição se reduz a uma teoria do esquema, e que a teoria da execução encerra toda a teoria da substância, tendo por objeto aquilo que aqui chamamos de norma, uso e ato. Norma, uso e ato estão, por outro lado, intimamente ligados e tendem naturalmente a não constituir senão o objeto verdadeiro: o uso, em relação ao qual a norma é a abstração, e o ato uma concretização. É unicamente o uso que constitui o objeto da teoria da execução; a norma, na realidade, nada mais é que uma construção artificial, e o ato, por sua vez, é apenas um documento passageiro. (Hjelmslev, 1991, p. 92, grifos nossos)

 

A nova proposta conserva o poder de distinguir as ocorrências fortuitas, atreladas ao âmbito da materialidade e da vontade individual e as regras gerais que governam a língua como um todo. A centralidade do conceito de uso e sua relação expressa com uma “teoria da execução" não pode ser negligenciada em um estudo do timbre.

De fato, a fecundidade dessa relação não passou despercebida pelos semioticistas. Dentre os trabalhos examinados aqui, é na tese de Coelho que essa noção de uso ganha inegável posição de destaque, o que pode ser atestado pelo título do quarto capítulo de seu trabalho: “O uso como elemento determinante para a escolha dos instrumentos que compõem um arranjo” (Coelho, 2007, 123-140). A nosso ver, a engenhosidade da solução proposta pelo autor se deve tanto a sua simplicidade quanto a sua adequação ao objeto em análise. O recurso a um conceito já disponível na teoria evita o sobrecarregamento do edifício teórico. Além disso, a noção de uso serve de junta articulatória que explica tanto a seleção dos timbres quanto as relações entre composição, arranjo e interpretação cancional.

Embora essa distinção conceitual proposta por Hjelmslev tenha aprimorado o trabalho descritivo da pesquisa linguística, ela parece agir antes como princípio teórico do que como ferramenta analítica. Nesse aspecto, é proveitoso recuperar o desdobramento do uso na noção de práxis enunciativa. Para tal, tome-se como ponto de partida a própria exposição didática de Denis Bertrand, principal referência das reflexões de Coelho sobre uso e timbre. No capítulo “A enunciação na semiótica”, Bertrand discute na subseção “Práxis enunciativa” o papel do uso na construção de blocos “pré-formados” de significação. Esses blocos agem como uma espécie de repositório de formas discursivas, perante o qual o ato individual da enunciação deve forçosamente tomar posição e, desse modo, criar práticas inovadoras ou sedimentar aquelas já correntes (BERTRAND, 2003, p. 85-89).

A convergência entre uso e práxis enunciativa é colocada em termos claros por Jacques   Fontanille e Claude Zilberberg no capítulo intitulado “Práxis enunciativa” de Tensão e significação, obra-chave para os desenvolvimentos do ponto de vista tensivo da semiótica (2001, p. 171-202). A grande conquista teórica reside na conceptualização das transformações observadas nas práticas discursivas nos termos das operações tensivas de ascendência e descendência. É interessante notar também que, para tratar das operações em curso na práxis discursiva, os autores lançam mão dos modos de existência, também readaptados aos moldes do esquematismo tensivo. Essa articulação entre uso e modos de existência efetuada por J. Fontanille e C. Zilberberg mostra que, no seu conjunto mais amplo, as reflexões de Coelho captaram com muita sensibilidade as imbricações sutis entre esses conceitos semióticos. Em nosso entendimento, as ideias desse autor poderiam ganhar maior alcance com a incorporação das reflexões sobre a práxis enunciativa (presentes apenas de maneira implícita em seu trabalho) e com as articulações sintaticizantes da abordagem tensiva conforme apresentadas por Fontanille e Zilberberg (2001).

Balanço intermediário

A leitura crítica dos trabalhos de Coelho (2007), Carmo Jr. (2007) e Dietrich (2008) revela convergências significativas que, contudo, podem passar despercebidas à primeira vista. Desses pontos de contato pode-se extrair algumas linhas de força que servirão de guia para o estudo semiótico do timbre que se pretende desenvolver.

Com base na reflexão desenvolvida aqui, é inegável reconhecer o papel central da enunciação no estudo do timbre: ela serve de ponto de sustentação do tripé conceitual figuratividade-uso/práxis enunciativa-conotação. No entanto, é preciso relembrar que a enunciação “mudou de endereço” após C. Zilberberg e passou a ocupar lugar privilegiado nas profundezas do percurso gerativo, operando já na seleção dos valores tensivos de base (2006, p. 129-147). Desse modo, o recurso ao esquematismo tensivo se mostra como uma alternativa promissora para examinar fenômenos atrelados à enunciação sem ferir os princípios de economia teórica.

O leitor atento poderá questionar a ausência das questões do corpo do sujeito nessa tríade de conceitos. De certa forma, esses pontos estão incorporados tanto na conotação – sobretudo em seu entendimento enquanto estudo das “fisionomias” (cf. CARMO JR., 2005) – quanto na enunciação, que funciona como mecanismo de inscrição do sujeito no discurso. Cremos ter conseguido demonstrar a conexão existente entre enunciação, uso e práxis enunciativa. A esse conjunto agrega-se a conotação hjelmsleviana enquanto estudo dos usos, como explica o semioticista Sémir Badir: “a semiótica conotativa contribui para a fundamentação desta possibilidade de formalização dos usos linguísticos” (Badir, 2004, p. 68)[6].

Tendo em vista tudo o que foi discutido até o momento, pode-se afirmar com segurança que o timbre habita o reino da enunciação[7]. A assertiva soa a um só tempo ousada e vazia pelo mesmo motivo: a enunciação abrange vastos domínios do território teórico da semiótica. Por um lado, parece ambicioso crer ter descoberto, já a essa altura, o lugar de pertinência do timbre. Por outro lado, uma afirmação tão genérica demanda investigações mais aprofundadas que permitem conclusões mais precisas. Na frente de trabalho da linguística do discurso (oposta à “linguística da gramática”), pouca coisa escapa à mão imperiosa da enunciação. Isso significa que, embora quase tudo ainda esteja por fazer nos estudos semióticos sobre o timbre, estes podem tomar como guia as conquistas já realizadas nos estudos sobre a enunciação. No momento, essa orientação se coloca apenas como hipótese de trabalho a ser discutida e deixa ainda intocado um vasto campo de problemáticas em torno do timbre. Porém, uma vez assegurada a confiabilidade dessa bússola e mapa metodológicos, a exploração desse novo território de pesquisas é apenas uma questão de tempo e trabalho paciente.

Referências

BADIR, Sémir. Hjelmslev. Paris: Les belles lettres, 2004.

BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003.

CARMO JR, José Roberto do. Da voz aos instrumentos musicais: um estudo semiótico. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005.

______. “Melodia e prosódia. Um modelo para a interface música-fala com base no estudo comparado do aparelho fonador e dos instrumentos musicais reais e virtuais”. São Paulo, 2007. Tese de doutorado - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

COELHO, Márcio Luiz Gusmão. “O arranjo como elemento orgânico ligado à canção popular brasileira: uma proposta de análise semiótica”. São Paulo, 2007. Tese de doutorado - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

DIETRICH, Peter. “Semiótica do discurso musical: uma discussão a partir das canções de Chico Buarque”. São Paulo: 2008. Tese de doutorado - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

______. “O estatuto do timbre no modelo semiótico”. Anais do primeiro encontro nacional de cognição e artes musicais, n°1, Deartes-UFPR: Curitiba, 2006. pp. 130-135.

DISCINI, Norma. O estilo nos textos: história em quadrinhos, mídia, literatura. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. São Paulo: Discurso Editorial/Humanitas, 2001.

GREIMAS, Algirdas Julien. “A enunciação: uma postura epistemológica”. Significação – Revista Brasileira de Semiótica, nº 1, Centro de Estudos Semióticos A. J. Greimas: Ribeirão Preto, 1974. pp. 09-25

______. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975.

GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

HJELMSLEV, Louis. Résumé of a theory of language. Copenhague: Nordisk Sprog- og  Kulturforlag, 1975.

______. Ensaios linguísticos. São Paulo: Perspectiva, 1991.

TATIT, Luiz. A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Atual, 1986.

______. Musicando a Semiótica. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1997.

______. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002.

______. Todos entoam: ensaios, conversas e canções. São Paulo: Publifolha, 2007a.

______. Semiótica da canção: melodia e letra. 3. ed. São Paulo: Editora Escuta, 2007b

ZILBERBERG, Claude. Razão e poética do sentido. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.



[1] Lucas Takeo Shimoda é graduado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e conduz atualmente pesquisa em nível de mestrado no programa de pós-graduação em Semiótica e Linguística Geral da mesma instituição. É bolsista do Conselho Nacional de Apoio à Pesquisa (CNPq), membro ativo do Grupo de Estudos Semióticos da Universidade de São Paulo (GES-USP) e integra a comissão editorial do periódico acadêmico Estudos Semióticos.

[2]      Cumpre notar que esses termos, conforme aqui empregados, assumem a acepção atribuída por Luiz Tatit (1986, 1997, 2002, 2007a, 2007b) e distinguem-se das acepções dadas pela semiótica greimasiana (GREIMAS; COURTÉS, 2012).

[3] O texto completo desses trabalhos pode ser acessado na página da Biblioteca Digital da USP (www.teses.usp.br).

[4] Até o momento, a centralidade do timbre nas canções figurativizantes parece ter sido pouco explorada. Uma evidência intrigante está na constatação de que, ao contrário do que ocorre com as canções tematizantes e passionalizantes, canções de forte veio figurativizante (com especial destaque para o rap) raramente recebem reinterpretações, como se a substituição do timbre do intérprete acarretasse a destruição do próprio núcleo de identidade desse tipo de canção.

[5] Observe-se também, por exemplo, que a maioria dos termos que descrevem estímulos sensoriais são igualmente usados para se referir a traços de caráter. Segundo o Dicionário Houaiss, o termo “caloroso” também designa aquele “que demonstra energia, entusiasmo; que infunde ânimo, que desperta simpatia e/ou sensação de afeto”. Na mesma direção, o termo “áspero” designa o sujeito “de trato difícil; rude, ríspido”. Embora não seja possível desenvolver aqui mais a fundo a questão, a “intuição de falante” poderá ajudar o leitor a recobrar inúmeros casos dessa ambivalência nos adjetivos.

[6]      Tradução livre do original: “La sémiotique connotative contribue au raisonnement de cette possibilité de formalisation des usages linguistiques.

[7]      Nesse aspecto, nossas conclusões corroboram e ampliam aquelas apresentadas em “O estatuto do timbre no modelo semiótico” (DIETRICH, 2006).