O canto como um testamento: poesia e política no filme Terra em transe
Júlio César Lobo1
Resumo: De que forma o simples ato de cantar pode ser associado a uma atitude de resistência? Essa é questão principal a ser desenvolvida neste texto, que analisa a influência da noção da função social da poesia (e, por extensão, de todo e qualquer canto) no filme brasileiro Terra em transe (RJ,1967,Glauber Rocha),que, por sua vez, discute aspectos da militância do trabalhador intelectual na cena latino-americana nos anos 1960. Para tanto, reportamo-nos ao período áureo da canção de protesto brasileira, que retoma, de certa maneira, alguns aspectos do romantismo brasileiro, notadamente a obra de Castro Alves, mas destacando também a poesia moderna de Mário Faustino. A nossa discussão tem como referências as noções da literatura como missão (Antonio Candido), o mito da canção (Walnice Galvão), a didática do fracasso (R. Schwarz), o poeta como o herói da modernidade (C. Baudelaire), a metáfora da guerrilha (Ismail Xavier), a teoria da tragédia (Aristóteles e P. Szondi). Enfim, discutimos as defasagens de contexto entre os tempos de difusão das frases “É preciso cantar”, da Marcha da quarta-feira de cinzas” (1964), e “Eu preciso cantar”, pronunciada pelo protagonista desse filme ao morrer, quando sinaliza para a luta armada contra um golpe de Estado em Eldorado.
Palavras-chave: Música Popular Brasileira e Cinema Novo; Música Popular Brasileira e Política no Cinema; Música de Protesto; Cinema Novo; Glauber Rocha.
Abstract: How does the simple act of singing can be associated with an attitude of resistance? This is the main question to be developed in this text, which examines the influence of the notion of the social function of poetry (and, by extension, of any chant) in the Brazilian film Terra em transe (RJ, 1967, Glauber Rocha), which in turn discusses aspects of the intellectual worker militancy in the Latin American scene in the 1960s. In order to achieve this goal, we refer to the golden age of Brazilian protest song which incorporates, in a way, some aspects of Brazilian romanticism, notably the work of Castro Alves, but also highlighting the modernist poetry of Mario Faustino. Our discussion makes references to the notions of literature as mission (Antonio Candido), the myth of the song (Walnice Galvão), the didactics of failure (R. Schwarz), the poet as the hero of modernity (C. Baudelaire), the metaphor of the guerrilla (Xavier), the theory of tragedy (Aristotle and P. Szondi). Finally, we discuss the context of lags between the diffusion times of the phrases “You have to sing”, from “The March of Ash Wednesday” (1964) and “I have to sing”, spoken by the protagonist of this film when he is dying, when he signals for an armed struggle against a “coup d’etat” in Eldorado.
Keywords: Brazilian Popular Music and New Brazilian Cinema; Brazilian Popular Music and Politics in Cinema; Brazilian Protest Song; New Brazilian Cinema; Glauber Rocha.
Em 1963, Vinícius de Moraes e Carlos Lyra compuseram a “Marcha da Quarta-feira de Cinzas”, canção que se tornaria muito famosa, um ano depois, principalmente por ser parte do encerramento do show Opinião, realizado em dezembro de 1964. Trata-se de uma das primeiras tentativas, no sofisticado universo da Bossa Nova, de procurar temas populares, de sintonizar-se com uma parcela inconformada da sociedade. O seu refrão apontava para os superpoderes da canção, abrindo um rico filão na música popular brasileira: “E, no entanto, é preciso cantar / Mais que nunca, é preciso cantar / É preciso cantar/ E alegrar a cidade”. A marcha-rancho, aparentemente, faz o canto saudoso dos velhos carnavais, mas as suas metáforas têm um alvo, que lhe é bastante contemporâneo: a substituição de políticas ligadas a um nacional-populismo do final dos anos 1950 e início dos 1960 por uma ditadura, a partir de 1º de abril de 1964. O fim do “Carnaval” fez com a canção lamentasse ver nas ruas pessoas que não sorriem, não beijam e não se abraçam, mas os versos apontam para uma “promessa de luz”, pois há “tanto amor para dar”; toda a tristeza daquela gente “qualquer dia vai se acabar”, e o povo vai sair, cantando “seu canto de paz”. Porém, “é preciso cantar”.
A música popular brasileira de esquerda àquela época passou a dar o ritmo sedutor a todos os gritos de protesto contra o status quo, ou seja, contra o regime. Como consequência dessa investidura, parte dela assumiu uma postura extremamente didática, simplificando formas e conteúdos (resultando, em muitos casos, em maniqueísmo), em busca das “verdades imediatas”: fome, desemprego, sub-habitação, seca, latifúndio etc. Essa instrumentalização da música popular brasileira provocaria textualmente o irromper de uma série de palavras de ordem musicalizadas. O tempo é de repressão, portanto, torna-se vital cantar desesperadamente a liberdade. Uma boa estratégia é se montar espetáculos musicais, a propósito de períodos mais remotos da nossa História para, através deles, se falar do presente. Com as experiências passadas, no caso mal-sucedidas, buscava-se um modo de aprender com as derrotas para se evitar erros no futuro. Essa curiosa didática do fracasso é fulminada pela argumentação do crítico literário Roberto Schwarz (1981, p.81): “A esquerda vinha de uma derrota, o que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso. Se o povo é corajoso e forte, inteligente, por que saiu batido? E se foi batido, por que tanta congratulação?” Entre outras coisas, o sucesso do show Opinião mostrou aos artistas “engajados” que o poder sugestivo da canção poderia ser utilizado na procura de modelos mais “comunicativos” de se praticar teatro no Brasil.
A também crítica literária Walnice Galvão (1976) produz uma fina análise ideológica de parte de uma produção musical dos anos 1960 tida como “participante”, mostrando, ao final, como ela era mais “mitológica” e “confortadora” do que “revolucionária”, “transformadora”. O argumento central dela é de que a música popular brasileira, em seu projeto “informativo e participante”, acabou por construir uma nova mitologia, alegorizada nos mitos: “O dia que virá” e “O mito da canção”. O corpus é vasto. Para Galvão, o mito “O dia que virá” tem como função primordial “absolver o ouvinte de qualquer responsabilidade no processo histórico”. Ora é “o dia que vai chegar”, ora “o dia que vem vindo”. Assim, o homem renuncia a um papel honroso de sujeito da História que passa a ser ocupado, segundo as canções, por um ente, dotado de vontade e sentimento: “O Dia”. A ensaísta vê nesse culto do “Dia que virá” uma proposta “imobilista e espontaneísta”, ao incentivar os braços cruzados e delegar a ação a uma “abstração mitológica”: “O Dia”. Versos exemplares dessa “mitologia” estão em “Porta-estandarte” (Geraldo Vandré – Fernando Lona), por exemplo: “Levando pra quem me ouvir/ certezas e esperanças pra trocar/ por dores e tristezas que, bem sei,/ um dia ainda vão findar./ Um dia que vem vindo/e que eu vivo pra cantar”.
Terra em transe (RJ, 1967, roteiro e direção de Glauber Rocha) foi o primeiro filme brasileiro a discutir de uma maneira mais intensa a questão da militância do intelectual, isto em um ano, como o de 1967, em que eram colocadas em crise certas formas de inserção do mesmo dentro da linha da “revolução pela palavra”. Ao debater o cotidiano militante desse homem, esse filme põe em questão o conteúdo – mas também a forma – e a utilidade social da produção simbólica desse trabalhador intelectual, no caso um poeta e jornalista, enfatizando os seus cantos. Deve a poesia de um intelectual “engajado” ser também explicitamente “engajada”, partidária, maniqueísta, deixando que a ênfase na comunicação se sobreponha ao trabalho no plano da expressão? Deve a arte ser utilitária? São questões colocadas pelo filme.
Mas o filme coloca outras questões igualmente importantes: por que fracassou a revolução? Qual o papel destinado ao intelectual nela? Qual o papel destinado ao “povo”, nela? É claro que as indagações acima desdobram-se em muitas outras, que poderiam investigar, por exemplo, a função dos partidos políticos no discurso preparatório para a “revolução” e na mobilização popular “revolucionária”. A emergência de um discurso em torno da “guerra revolucionária” era uma das consequências desse processo de revisão, que já tinha provocado dissensões no âmbito dos partidos comunistas do Terceiro Mundo.
Pretendemos trabalhar algumas sequências que reputamos como importantes no processo de construção aparentemente caótica de uma frustração: o fracasso de todo um procedimento político. Neste, privilegiava-se a inserção do intelectual no trabalho de “conscientização” do “povo”, com a finalidade de prepará-lo para a “revolução”, conduzida por uma vanguarda (onde está o intelectual, em posição de destaque). Buscaremos rastrear evidências da articulação, em determinado contexto, de uma prática política com uma prática cultural, aqui restrita à dimensão artística (poesia). O confronto poesia versus política sintetiza de certa forma uma série de embates entre o artista, que se quer livre (mas que também deseja a liberdade não só de si como de todos), e o político. Paulo Martins (Jardel Filho), protagonista e locutor da narração, em voz over, dessa história, em nenhum momento abdica de sua prática poética, apesar de admitir, em determinado momento da narrativa, que “as palavras são inúteis” e que um determinado gênero de poesia, que praticara, era tributário de um elenco de “coisas da juventude”. A poesia “romântica” de Paulo é questionada. A sua postura “romântica” também é questionada, mas ele é investido de certa herança dos “bons poetas revolucionários, como aqueles românticos do passado”. Indaga-se, então, por que esta investidura? A que ela serve? E até que ponto ela é útil aos seus investidores.
Em Terra em transe, a expressão-pensamento “eu preciso cantar” não tem respaldo, não tem referencial na própria narrativa. O seu processo de significação é detonado de fora pela contextualização, pela força alusiva a todo um imaginário, que informou, em determinados períodos, sobre determinados contextos. Se o levantamento, mesmo que breve, das alusões possíveis do “eu preciso cantar”, de Paulo, fosse se restringir apenas à esfera da música popular que se fez no Brasil, ele já seria razoavelmente significativo. Por força da instrumentalização da arte, o próprio ato de cantar – como um dado da resistência de uma certa vanguarda (de intelectuais) no front cultural – passou a estar carregado de uma densa representatividade. Tentava-se, naquele período citado, ganhar, no plano da produção simbólica, uma guerra, que se havia perdido, na realidade imediata, com a deposição de João Goulart, gerando a inevitável compensação reconfortadora, conforme o crítico literário Roberto Schwarz argumentara acima.
Ao dramatizar o cotidiano militante do poeta e jornalista Paulo Martins, o filme Terra em transe põe em questão também o conteúdo, a forma e a utilidade social da produção simbólica desse trabalhador intelectual com ênfase para a sua poesia, fortemente ligada a um romantismo de evasão. Deve a poesia de um intelectual engajado ser também explicitamente engajada, partidária, maniqueísta, deixando que a ênfase na comunicação se sobreponha ao trabalho no plano da expressão? O confronto poesia versus política sintetiza de certa forma uma série de embates entre o artista, que se quer livre (mas que também deseja a liberdade não só de si como de todos) e o político.
As sete sequências iniciais (excetuando-se a primeira – ambientação e créditos) do filme Terra em transe constituem os instantes finais da narrativa e, assim, o filme passa a ser narrado em um longo e tumultuado flashback. Uma legenda situa um pouco o cenário: “Eldorado, país interior, Atlântico”. Tem-se assim a designação de um Estado que nos remete imediatamente a uma utopia, a terra de El-Dorado. Nesse Eldorado, fala-se português, mas muitos dos seus mais destacados cidadãos têm nomes que remetem a uma ascendência espanhola: Don Porfirio Diaz, Julio Fuentes e Fernandez, presidente de Eldorado. O castelhano está presente também em vários dos versos recitados pelo protagonista e no trecho lido por ele do poema-livro Martin Fierro. Terra em transe associa assim elementos da cultura afro-brasileira (o som do candomblé nos letreiros iniciais e nos comícios do senador) com patronímicos e versos em idiomas ibéricos. Agindo desta forma, o realizador estende o âmbito de sua narrativa de um óbvio Brasil à cena latino-americana.
Poucos minutos decorrem entre a legenda do cenário e o desabafo exageradamente dramatizado de Paulo: “Precisamos resistir, resistir! Eu preciso cantar... Eu preciso cantar”. Até então [momento que em diz “Eu preciso cantar”], a personagem principal dessa narrativa desembarcara de um carro em meio a uma crise política, protagonizada pelo governador Vieira (José Lewgoy) e encenada como uma estranha ópera sem música, no terraço do Palácio de Governo de Alecrim. Os gestos de Paulo são bruscos, radicais, exagerados: ele arrebata uma metralhadora de um militante, propõe ao renunciante Vieira uma resistência popular, se decepciona com ele e chama a atenção de Sara (Glauber Rocha) para o desmascaramento do seu chefe.
Há um corte abrupto, e veremos Paulo e Sara dentro de um carro em alta velocidade em uma estrada de direção ignorada. Eles dialogam, recuperando alguns conflitos exacerbados no encontro do palácio, e Sara questiona a radicalidade proposta por Paulo, apontando, mais uma vez, para a sua “loucura”. A resposta dele equipara “loucura” à consciência, destruindo a lógica de uma razão, e aponta metaforicamente para a revolução: “momento da verdade”, “hora da decisão”, “luta”. A saída proposta por Paulo menciona a morte, remetendo-se imediatamente à ideia de sacrifício, corporificada no herói, morto. Quando Sara adverte Paulo de que não se precisa de heróis, a resposta dele prega a resistência, mesmo que não seja naquele momento. Eles continuam no carro, e a sua trajetória é interditada pelos acenos proibitivos de dois guardas rodoviários.
Uma atenção aos diálogos, mas nem tanto às imagens, talvez decodificasse no enfático “precisamos resistir” tão-somente a réplica à advertência de Sara sobre as consequências sangrentas de uma guerra civil de sustentação ao governador Vieira. Uma outra leitura, atenta às imagens, poderia fazer emergir dela um toque de humor negro: a carreira de um político, que prega a luta armada, é interrompida por uma zelosa dupla de patrulheiros rodoviários... Suprema ironia. Uma certa ambiguidade irônica, presente na sequência, não se esgota na ação fatal daqueles policiais. Um pouco antes, Sara admitira um futuro promissor para a revolução, e Paulo reagira, assumindo os riscos da ousadia. A tréplica da namorada comporta uma margem de discurso ambíguo. Ela diz “pare, Paulo!”, olhando para os policiais adiante, que estão sinalizando negativamente. O imperativo tanto pode se referir à necessidade de se parar o veículo quanto à necessidade do jornalista-poeta-político interromper o seu discurso radicalizante diante da evidência dos fatos. Essa ambiguidade é própria do cinema moderno.
Quando Paulo, discordando de Sara, clama pela resistência, a ambiguidade irônica permanece, pois o “precisamos resistir, resistir!” é pronunciado com a visão dos patrulheiros, no meio da pista, acenando pela interdição. Paulo fura o bloqueio, há a perseguição, e ele é baleado por um dos guardas justamente na segunda vez em que diz: “Eu preciso cantar”. Aqui está a frase-tema que tentaremos problematizar neste trecho de nosso ensaio, buscando elementos para discutir uma questão-chave: de que forma o simples ato de cantar pode ser associado a uma atitude de resistência?
Do início da narração em voz over do protagonista, até o acidente na estrada, não há qualquer informação, seja textual, musical ou pictórica, que relacione a Paulo uma atividade de canto. Pior: os momentos iniciais do filme não fornecem nenhuma pista que leve o espectador a associar o ato de cantar com um ato de resistência. Cremos que não se pode afirmar que os cantos em ioruba, durante os créditos iniciais, signifiquem resistência, uma vez que, àquela época, ainda não havia se constituído um discurso acadêmico-político que tomasse os cultos afro-brasileiros como elementos de resistência, visando à constituição de uma identidade cultural “afro-brasileira” com caráter acentuadamente étnico, para não dizer racialista. Para complicar as coisas, até o final do filme, não se terá também nenhuma pista nesse sentido. Sendo assim, a frase gera um processo de significação o qual terá de ser trabalhado fora do discurso fílmico em pauta, obrigando o exercício analítico a buscar, na maioria das vezes, a contextualização.
A rigor, o canto, em seu sentido corrente (musical) tem uma participação quase inexpressiva no processo de significação do filme. Os cantos em iorubá fornecem apenas elementos para uma possível localização geográfica de Eldorado, na abertura, e não portam no filme em foco qualquer referência, como afirmamos acima. Há trechos da ópera Otelo, de Verdi, dramatizando uma briga de Paulo com Diaz; uma Bossa Nova cantada baixinho; e um par de versos, em uma voz em off, dizendo que “a praça é do povo/como o céu é do condor”. Estes últimos versos comentam ironicamente o encontro em que Paulo é apresentado a Vieira, mais propriamente comentam uma citação feita por Sara dos versos famosos de Castro Alves. Sendo as referências intratextuais escassas na relação canção/resistência, um possível passo inicial na discussão da frase-tema “Eu preciso cantar...” talvez fosse buscar algumas virtuais origens na poesia de Castro Alves.
Castro Alves, no filme em foco, surge também como um modelo de artista comprometido com as causas do seu tempo. Sara, alegre pelo engajamento de Paulo na campanha política de Vieira, diz que “a praça é do povo / como o céu é do condor”, do poema “O Povo ao Poder” (ALVES,1990, p.38). O sentido completo dos versos é este: “A praça! A praça é do povo / Como o céu é do condor./ É o antro onde a liberdade / Cria águias em seu calor” (Idem,ibidem). Os dois versos castroalvinos iniciais retornarão mais adiante, musicados, cantados em off, acrescidos da identificação apositiva: “Já dizia o poeta dos escravos lutador”. O “lutador”, da edição final do filme substitui o “cantador” do roteiro publicado.
Na segunda vez em que o poeta baiano é citado, a força do seu exemplo serve como um comentário da instância narradora do filme a propósito do desencontro entre os discursos de campanha do populista Vieira – discursos redigidos pela “humilde pena” de Paulo – e a sua ação como governador de Alecrim, deixando impune o assassino de um líder camponês. As vozes de cantores em off (Sérgio Ricardo, responsável pela trilha sonora do filme, e Gal Costa) são os dois únicos momentos em que alguém canta algo no filme. O som da canção de Gal é tão baixo que dificilmente se entende claramente o enunciado dos seus versos. Assim, a rigor, é somente S. Ricardo quem canta algo que pode ser facilmente decodificado em toda a narrativa. A seleção da edição final leva-nos a levantar a hipótese de que quando Paulo brada que é preciso resistir (que ele precisa cantar) esteja fazendo alusão ao canto de S. Ricardo, parafraseando Castro Alves.
Paulo e Castro Alves têm em suas poesias o culto à retórica, traduzido no arranjo vocabular e sintático que enfatiza a oratória mais do que a imagética, fazendo do palco uma extensão das tribunas, que, por sua vez, são uma extensão do jornalismo. Ambos buscam unir uma poesia pública (política, libertária, insufladora) com uma poesia privada (lírica, sentimental, trovadoresca), que, em Paulo, resulta numa empresa frustrada, caótica, delirante. “Palavras... As palavras são inúteis”, diz Paulo a Sara. Essa última expressão do protagonista também pode ser lida de outra maneira, além do espectro de um fracasso. Para o poeta Lamartine, escrevendo em 1849, “o que existe de mais divino no coração do homem jamais se revelará por falta de uma língua, que o exprima para o mundo. A alma é infinita, e as línguas não são mais do que um pequeno número de sinais elaborados pelo uso para as necessidades dos homens comuns” (GOMES,1992,p.155). Três anos antes de Lamartine, o brasileiro Gonçalves Dias, no seu prólogo aos Primeiros cantos, inaugurava este lamento entre nós: “...eis a Poesia – a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem poder defini-la, como eu a sinto sem poder traduzi-la. O esforço – ainda vão – para chegar a tal resultado é sempre digno de louvor. Talvez seja esse só o merecimento desse volume” (Idem, ibidem, p.153).
A respeito de Castro Alves, o crítico literário Antonio Candido (1959, p.269) elabora um diagnóstico sobre a contaminação da lírica do poeta baiano pela oratória, o que vale também para Paulo. Segundo ele, a poesia de C. Alves foi influenciada pela eloquência da oratória, sob o peso da presença da História, pois o orador acabava por se constituir, naquela época, a “expressão intelectual mediana do povo”. Mais do que isso, ele era a expressão do “gosto ambiente”, e a sua elocução procurava traduzir, de uma certa forma, as necessidades estéticas e espirituais que o circundavam.
A frase-testamento poética de Paulo – “Eu preciso cantar...” – talvez comporte mais uma outra tentativa de leitura com o propósito de se levantar alguns pontos mais visíveis na interação canto/poesia/resistência, ou seja, na discussão sobre a função política da poesia. Trabalhemos agora com a acepção literal de cantar e vejamos o que isto pode invocar. A resistência é enunciada por Paulo como uma tarefa de todos, mas pode ser entendida como um desígnio a ser cumprido por ele e por Sara: “Precisamos resistir, resistir”. Se resistir é função para o “nós” (sujeito oculto), o ato de cantar, assimilado com resistência, é personalizado na primeira pessoa: “Eu preciso cantar”, expressão esta que é bisada. A frase emblemática é tão carregada de significação que, ao repeti-la, Paulo, perseguido, é baleado. Mas por que razão o ato de cantar assume, na agonia de Paulo, tanto significado? Contextualizemos.
Se, numa proposta de leitura, a expressão “Eu preciso cantar”, no filme em análise, é uma paráfrase do verso “É preciso cantar”, da “Marcha da Quarta-feira de Cinzas”, é necessário se atentar para o fato de que as falas de Paulo e a letra da famosa canção, literalmente, divergem a propósito do “povo”. Nos poemas de Paulo, o povo não tem um poder persuasório. O emblemático refrão da “Marcha da Quarta-feira de Cinzas” era uma das expressões mais divulgadas, no campo das artes brasileiras dos anos 1960, de toda uma confiança no poder político do artista/intelectual “engajado”. Um poder que resultaria, entre outros fatores, de seu papel conscientizador, iluminador.
A frase-testamento de Paulo – “Eu preciso cantar” – insere-se perfeitamente no que Galvão entende por “O mito da canção”, quando o ato de cantar tem finalidades variadas: consolo, divulgação ou “pensamento mágico”. Em todas as modalidades, a canção de protesto brasileira dos anos 1960 resultaria numa “evasão à implicação pessoal de cada um na História”. Entende Galvão que o “Mito da canção” oferece, inicialmente, uma perspectiva de “O Dia”, mas, na ausência dessa perspectiva, ela promete a si mesma como a solução, tônica, por exemplo, do Vandré mais cantado. A “Marcha da Quarta-feira de Cinzas” consolava a todos com “o que resta é cantar/e alegrar a cidade”, enquanto o refrão acentuava: “E, no entanto, é preciso cantar”. Paulo, agonizante, resiste, afirmando: “Eu preciso cantar”. Não se trata de uma mera coincidência. Seguindo as pistas de Walnice Galvão, talvez pudéssemos ler no “eu preciso cantar” de Paulo mais uma crítica do que um elogio a uma certa arte “participante”, razão de perplexidade dele por toda a narrativa. Paulo é baleado justamente quando bisa a palavra de ordem “mitológica”, contrariando os finais otimistas de muitos filmes ditos “revolucionários”. Afinal, heróis “positivos”, em geral, não morrem cedo.
No filme Terra em transe, a estrada é o lugar da tragédia. O final não é esperançoso. Não há mais utopias, não há mais mitos confortadores, consoladores, pois até o “Mito da canção”, metaforicamente, é baleado fatalmente. “O país [Eldorado] tem outra saída”, diz Paulo a Sara próximo ao final da narrativa. Essa frase praticamente estrutura a penúltima sequência de Terra em transe, quando o protagonista se despede de Sara, querendo provar com a sua morte (suicídio?) o “triunfo da beleza e da justiça”: a fusão poeta-político. Alguns itens que havíamos levantado a propósito do Romantismo em parágrafos anteriores são retomados aqui de modo bastante sucinto para tratar a questão da emergência da luta armada no horizonte do poeta Paulo Martins, bem como relativos ao seu contexto: a América Latina dos anos 1960. Tem-se, então, o adeus agonizante à ideia de uma “revolução pela palavra”, de uma revolução por etapas, pois é chegada a hora para Paulo da “guerra revolucionária”, que crê ter iniciado, sozinho, brandindo uma metralhadora no meio das dunas. Saem Castro Alves e Neruda, entre outros, e entram “Che” Guevara, Régis Debray e companhia.
Rodovia, perto da praia. Sara: “O que prova a sua morte? O quê?” Paulo: “O triunfo da beleza e da justiça!” A última fala de Paulo na penúltima sequência do filme (a estrada), é a resposta a (mais) uma cobrança da militante Sara e, também de certa forma, é um testamento. Paulo foi baleado. Após um curto e dramático diálogo, ela o acompanha ainda pela estrada. Decorridos alguns minutos, ela o abandona. Sara está sendo coerente no gesto. Falar em beleza e justiça como frutos de uma mesma ação é voltar a uma discussão travada pelo casal e encerrada com a asserção dela: “A política e a poesia são demais para um só homem...” Aparentemente, para Paulo, a beleza somente pode ser encontrada na arte.
A nossa última tentativa de produzir algum sentido a partir da tese de Sara vai ser trazer, por vias transversas, outra tese, a de um poeta e crítico fundamental, como aparece sintetizada por Köthe (1987, p.53): “Segundo Baudelaire, o poeta é o grande herói da modernidade, pois vive numa espécie de realidade em que não há propriamente lugar para o poeta: o que ele faz não vale nada para a sociedade. Então, só é possível ser poeta como paródia do papel de poeta”, o que se traduziria, “em desespero de causa”, dedicar “o melhor de seus esforços para algo que não tem maior circulação, valorização e, portanto, remuneração social”.
A separação da dupla de amantes na estrada é coerente com a trajetória de ambos. Paulo prossegue em sua postura “romântica”, mas Sara já não lhe é mais solidária. Ela não acredita que o gesto suicida de Paulo, rompendo a barreira policial (uma metáfora visual?), possa corporificar algum triunfo da beleza e da justiça. A tensão que esse impasse, na visão de Sara, entre poesia e política, talvez somente possa ser localizado entre outra discussão ficcional sobre esse “cruzamento de duas necessidades” na obra de Corneille, conforme nos revela o crítico teatral Peter Szondi (2004, p.102): “Os seus heróis têm a consciência dolorosa de que não podem ser os mesmos como amantes e como guerreiros. No entanto, para eles, o conflito trágico – o cruzamento de duas necessidades – é originalmente acidental exterior”.
Como Paulo acredita que o país tem “outra saída”, ele não participa da campanha de Vieira à presidência de Eldorado nem da campanha do senador Diaz, conservador e aliado das empresas multinacionais. Paulo parece ter-se decidido a não oscilar mais – como ao longo da narrativa – entre o reformismo (Vieira) e a restauração (Diaz). Assim, afastado dos políticos profissionais e de seus empresários correlatos, o onipresente Paulo sai de cena, temporariamente. O poeta volta no bojo de uma crise. O que se segue é uma sucessão de berros, gestos dramáticos, decepções. Aparentemente, essa sequência dá início a uma repetição da série inicial, que vai da segunda sequência legendada (“Província de Alecrim, Palácio do Governador Vieira”) até a posse de Diaz. Aparentemente, dissemos. Pois a série que se inicia com essa sequência é uma síntese vertiginosa, tanto no som como na edição de imagens, do que se viu no início do filme. Agora, sem os versos de Mário Faustino. Toda a longa discussão, entre Paulo e Vieira, sobre renúncia ou guerra civil, é comprimida em poucas falas, nesta reprise condensada e mais nervosa ainda.
Corte para a estrada. Paulo e Sara estão no “fusca”, e a voz over de Vieira descarta qualquer possibilidade de resistência, de guerra civil. Eles ultrapassam a barreira policial, são perseguidos por dois patrulheiros rodoviários, e Paulo é ferido por um deles. Tem-se, então uma sucessão de flashes do acidente na estrada e da cerimônia de coroação/posse de Diaz, flashes intercalados, de forma que o espectador tenha bloqueada, pela fragmentação da sua agonia, qualquer possibilidade de identificação emocional com a morte de Paulo.
Sobre a identificação no cinema, tema extenso e complexo, vale a pena considerar argumentação do teórico francês Jacques Aumont (1995, p.266), resumindo uma longa digressão. Partindo do princípio de que a “identificação secundária no cinema é fundamentalmente uma identificação com a personagem como figura do semelhante na ficção, como foco dos investimentos afetivos do espectador”, ele chama a atenção para o fato de que “estaríamos errados em considerar que a identificação é um efeito da simpatia, que é possível se sentir por essa ou aquela personagem”. É, antes do processo inverso que se trata e não apenas no cinema”. Seu argumento baseia-se em Freud: “[ele] analisa com clareza que não é por simpatia que nos identificamos com alguém: “Ao contrário, a simpatia só nasce com a identificação”. A simpatia é, portanto, o efeito, e não a causa da identificação”.
Ainda sobre a questão da identificação do espectador com o protagonista, mas denominando esse processo de “participação”, assim se expressam L. Jullier e M. Marie (2009,p.69): “O cinema bem-sucedido baseia-se nesse princípio – o filme leva o espectador a se unir ao grupo, mas o coloca em uma posição de convidado em que modelará as sensações e os pensamentos do outro sem ter de agir de verdade, nem se preocupar com a segurança do seu corpo real”. Para esses autores, a participação é um dos quatro “pequenos jogos de posicionamento” que fundamentam o prazer cinematográfico. Os outros são a transgressão, a cumplicidade e a vertigem.
O discurso de posse, autoritário, restaurador, de Diaz, que se encerra com um close, denunciando a sua cólera triunfante (a sua vontade de poder), é sucedido pelas imagens de agonia de Paulo, morrendo como um atestado fatal do triunfo da beleza e da justiça. À frase-testamento, seguem-se, em som over, rajadas de metralhadoras. Com essa trilha sonora ao fundo, Paulo anda pela estrada, cambaleando. O som das metralhadoras prossegue, e a sequência seguinte inicia-se com a tela em claro. Lentamente, surge, no canto inferior direito, a figura de Paulo, sozinho, segurando a metralhadora. Quando Paulo, moribundo, no final do filme, ergue a metralhadora, apela à violência, à guerrilha.
Mas o que há naquele gesto que indique uma saída concreta, uma alternativa? Até que ponto o gesto de Paulo simboliza uma possibilidade de luta política, visando ao poder? Talvez a atitude final, radical, do poeta-jornalista seja uma sinalização no sentido do sacrifício, da purgação, da redenção pela morte, itens que nos levariam de volta à questão do “herói romântico”. Mas quais pontos pode haver em comum entre um guerrilheiro dos anos 1960, no Terceiro Mundo, e um romântico “clássico”?
Acreditamos que, para avançarmos na pista da “purificação”, talvez tenhamos de recuar um pouco, retomando, mesmo que de forma abreviada, o “primeiro final” do filme, que vai precisamente da segunda à oitava sequência, mais precisamente até as cenas com Paulo ferido, caminhando nas dunas. Nessa sequência, ele está portando uma metralhadora e está sozinho. A edição o faz “pular” do “fusca”, onde estava com Sara – discutindo – para as dunas. Essa sequência dura 1min58s e tem 20 de seus segundos preenchidos por um epitáfio, retirado de um poema de Mário Faustino (1985): “Não conseguiu firmar o nobre pacto / entre o cosmo sangrento e a alma pura (...) / Gladiador defunto mas intacto / (Tanta violência, mas tanta ternura”).
O nome de Faustino dá conta de uma ambiguidade não dissipada (cosmo sangrento versus alma pura), e a morte de Paulo aqui é “justificada” poeticamente como a manifestação mais radical da rebelião do artista contra o seu meio ou contra a falta de sentido na sua existência. Essa rebelião fatal é uma característica classicamente romântica: a morte é a terceira via, descartados ou superados o impulso pela revolução (com quem Paulo a faria?) e a melancolia, esta entendida como um sinal de passividade, de imobilidade. Muitos dos românticos “históricos” tiveram como ideia-fixa o desejo da morte, vista como uma libertadora, redentora, para o indivíduo em permanente situação de mal-estar com o (seu) mundo. Assim, essa compulsão pela morte efetua uma negação de qualquer iniciativa, de qualquer projeto (“... neste esquecer os horizontes /que outros poetas buscaram”, recita Sara para Paulo, o autor dos versos, numa sequência) visando atingir uma transcendência, advindo da própria morte.
As palavras do protagonista, no “segundo final” (sem os versos de Faustino), podem ser trabalhadas como uma justificativa “romântica” para a sua morte. Ele se sacrifica em nome da beleza e da justiça. Se há uma atitude que pode caracterizar um determinado espírito religioso próprio do “gênio romântico” é certa propensão a fazer da arte (do estético, em suma) uma instância privilegiada para buscar respostas “decisivas”, além de um meio para o aprimoramento do homem, um meio para a educação da humanidade. Segundo Antonio Candido (1959, p.26) o artista romântico incorpora ao seu ofício “uma missão de beleza ou de justiça”, a partir da qual ele participaria de uma determinada “categoria de divindade”.
Paulo morre em nome de um ideal, de uma revolução. Morrer em nome de algo ou de alguém é sacrificar-se, e talvez seja nesta menção ao sacrifício que emerja um ponto de contato entre os “dois finais”, as rajadas de metralhadora, a postura romântica “histórica” e a guerrilha como uma aventura “romântica”. Há no artista romântico “histórico” uma forte atração pela morte (“a morte é bela”), como consequência, entre outras, de certo desajustamento com a sociedade que o cerca. Não é por acaso que o Romantismo, enquanto movimento estético, floresce com a consolidação do Cristianismo. Entre os dois movimentos, há em comum os dramas de consciência, a noção de pecado (erro) e o dilaceramento interior.
Em Terra em transe, Paulo, além de se sacrificar no final da narrativa, admite outros sacrifícios. Ao chegar ao Palácio do Governo e tomar conhecimento da renúncia de Vieira, põe uma metralhadora nas mãos dele, argumentando: “O sangue não tem importância”. No “fusca”, com Sara, volta à tona o mesmo discurso, afirmando que não se muda a História com lágrimas, até que ela dá por encerrada a conversa radical, trazendo-o à realidade de que não precisamos de heróis mortos, certamente.
Na sequência do “segundo final” nas dunas, ouve-se o protagonista, em voz over, associar a sua radicalidade suicida com os românticos “históricos” ou, pelo menos, com certa imagem do personagem dito romântico naquilo que ele representa de um “percurso atribulado, isolado e em conflito virtual ou efetivo com a sociedade, com as suas convenções e constrições” (REIS;LOPES,1994, p.194), especialmente nessa fala: “Estou morrendo agora, nesta hora. Estou morrendo neste tempo. Estou correndo meu sangue e minhas lágrimas. Ah, Sara, todos vão dizer que sempre fui louco, um romântico, um anarquista, que sempre...”. A permanência desses dados de (auto)caracterização do protagonista confirma uma das virtudes da poética da tragédia, conforme Aristóteles (1988, p.35), quando ele se refere aos “quatro alvos” a que os caracteres devem visar: “O quarto é a constância, [pois] mesmo quando o modelo representado é inconstante e se figura tal caráter, ainda precisa ser constante na inconstância.
Enfim, as últimas palavras de Paulo no “segundo final”, podem ser entendidas, numa determinada leitura, como uma justificativa para a sua morte suicida. Ele morre sinalizando a guerrilha, mas deixando como testamento verbal outra justificativa. Ele morre para provar o triunfo da beleza e da justiça. Ele morre em nome de um ideal romântico “clássico”: inserir-se numa certa categoria de “divindade”, através da “transcendência” do seu ofício, pois Paulo se julga portador de verdades ou sentimentos, que ficariam em planos superiores aos dos outros “pobres mortais”, concretizando o que já foi classificado, repetimos, como “o conceito de missão” (CANDIDO, 1959, p.25).
Na tese Alegorias do subdesenvolvimento, Ismail Xavier (1993, p.15) trabalha com a relação guerrilha (opção política) e “estética da agressão” (opção artística), que Terra em transe aponta profeticamente, notando, na introdução: “A metáfora da guerrilha – antes mesmo que a guerrilha urbana se transformasse em experiência concreta – compôs um dos referenciais para a arte produzida dentro dessas estratégias da agressão dirigidas à plateia. [...]. Há uma cruzada que, pelo insulto, quer mobilizar. E há esforços de síntese, como em Terra em transe”.
Paulo desiste da militância partidária, disciplinada, didática e “iluminista” e é convertido (por quem?) à “guerra revolucionária”, à guerrilha, prática que valoriza a iniciativa individual, a rebeldia e o valor do exemplo (coragem), atributos que remetem aos “heróis românticos clássicos”: “[Eles] refletem o desencontro entre, por um lado, certos ideais e ânsias de Absoluto protagonizados e, por outro lado, as normas de uma vida social envolvente, que constrange e inviabiliza a concretização de tais ideais” (REIS;LOPES,1994, p.194). Se formos encarar o final do protagonista como um suicídio, teremos mais algum substancial respaldo para a associação que fizemos dele com românticos “históricos”, uma vez que “de uma ou de outra maneira, o suicídio e a morte amorosa passam a ser cultivados como ‘vias’ da unio, da elevação à unidade suprema, alvo constante das buscas românticas” (GUINSBURG,1978, p.281). Mais ainda, talvez tenhamos, com o argumento acima, mais um elemento para podermos ter um entendimento melhor do que o protagonista quer dizer ao associar a sua morte com “o triunfo da beleza e da justiça”.
O modo como o protagonista de Terra em transe morre produz sentidos de interpretação em direções diversas. Do ponto de vista da teoria da tragédia, tomando-se Paulo Martins como uma personagem trágica – hipótese que ele autoriza quando, ao responder à observação de Sara que ele era “tão engraçado”, ele sentenciara: “Engraçado? Eu sou um trágico...” – o desaparecimento dele configura uma das partes da fábula (aristotélica): o patético, traduzida “num ação, que produz destruição ou sofrimento, como mortes em cena, dores cruciantes, ferimentos e ocorrências desse gênero” (ARISTÓTELES,1988, p.31).
Ao aproximar, em várias partes desse trecho, noções da teoria da tragédia, como se encontra em Aristóteles, com outras noções e conceitos, digamos modernos, levamos em consideração a diferença de fundo, pelo menos, de natureza cultural, pois “a tragicidade do destino, característica da Antiguidade, torna-se, no âmbito cristão, uma tragicidade da individualidade e da consciência. O herói grego cumpre à sua revelia o ato terrível ao tentar evitá-lo” enquanto o herói do drama católico “torna-se, diante da salvação, vítima de sua tentativa de usar o saber e o pensamento para substituir a realidade ameaçadora por uma outra, que ele mesmo cria” (SZONDI, 2004, p.99).
Ao morrer, proclamando, com o seu suicídio, o “triunfo da beleza e da justiça”, Paulo contraria Sara, mais uma vez, e volta a acenar com a possibilidade de que a política (a luta pelo estabelecimento da justiça) e a poesia talvez não sejam demais para um só homem. A morte de Paulo quer provar que ambas as práticas são possíveis. Não deixa de ser romântico. Muito romântico.
Referências
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1 Doutor em Ciências da Comunicação (Estética do audiovisual) pela Universidade de São Paulo; Junior visiting scholar na Universidade do Texas em Austin (2000-2001); Coautor de Glauber, a conquista de um sonho (Os anos verdes). Belo Horizonte: Dimensão,1995; Professor-associado I de Cinema da Universidade Federal da Bahia; Professor-titular aposentado de Comunicação Social da Universidade do Estado da Bahia; Licenciado em Letras Vernáculas e jornalista.