Notícias / News

Punk Scholars Network 2nd Annual Conference and Postgraduate Symposium
CALL FOR PAPERS: Punk NOW!! | 27/3/2015

Punk Scholars Network 2nd Annual Conference and Postgraduate Symposium In Association ...

DIVULGANDO - CONFERÊNCIA SOBRE MÚSICA E ESTUDOS CULTURAIS
ISTANBUL, TURQUIA, 7-9 MAIO 2015 | 14/8/2014

VISITE A PÁGINA DO EVENTO: http://www.musicultconference.org/p/themes.html

DIVULGANDO - Congresso sobre Heavy Metal
Helsinki, Finland, 8-12 June 2015 | 11/7/2014

http://www.modernheavymetal.net/ CALL FOR PAPERS OUT! MODERN ...

Cronograma RBEC n. 5 e 6
Novos prazos | 7/7/2014

Caros autores, Informo-lhes que, devido a atrasos no processo de distribuição e ...

Chamada para artigos nºs 5 e 6 - novo prazo: 05 mar 2014
Call for papers - issues 5 and 6 - new deadline: March 5th, 2014 | 20/1/2014

  Prezados colegas, Está aberta a chamada de artigos que comporão o quinto ...

More Blog Entries

 

Debaixo da Condesseira e um Modo de Escuta Intertextual

 

Danilo do Amaral Santos Lagoeiro 1/ João de Carvalho 2.

danilo_lagoeiro@yahoo.com.br / jocarv1984@yahoo.com.br

 


 

Resumo: A canção “Valsa pra Biu Roque”, composição de Céu e Beto Villares, é uma resposta à canção “Maria, Minha Maria”, de domínio público, que aparece na voz de Biu Roque no álbum de estreia de Siba e a Fuloresta. Para que possamos compreender como se dá a construção do significado presente na canção de Céu e Villares, é fundamental que resgatemos os significados presentes na obra à qual ela se reporta. Para amparar tal leitura, utilizamo-nos do conceito de dialogismo, como é apresentado por Julia Kristeva, e buscamos verificar em que medida e em quais estratos de significação da obra se fez presente tal noção.

Palavras-chave: Dialogismo; Canção; Céu; Biu Roque.

 

Abstract: The song “Valsa pra Biu Roque," written by Céu and Beto Villares, is a response to the song "Maria, Minha Maria," a public domain song which appears in the voice of Biu Roque on Siba and Fuloresta’s debut album. In order to understand how the construction of meaning in Céu and Villares’s song, it is essential to retrieve the meanings present in the work to which it refers. To support such reading, we use the concept of dialogism, as presented by Julia Kristeva, and seek to ascertain to which extent and how such notion is present.

Keywords: Dialogism; Song; Céu; Biu Roque.


 


 

Introdução

 

A palavra em diálogo com a sonoridade musical tem na forma canção nossa atenção neste breve artigo. Nossa proposta é a de analisar duas canções brasileiras contemporâneas, a saber: “Maria, Minha Maria” (Domínio Público, gravação de Biu Roque e Siba, que integra o CD Siba Fuloresta do Samba de 2003) e “Valsa pra Biu Roque (composição de Beto Villares e Céu, inclusa no CD Céu, de 2005). Nosso enfoque teórico-metodológico se centra em um diálogo entre alguns preceitos da Semiótica Literária de Julia Kristeva articulados à Semiótica da Canção, sob alguns pressupostos de Luiz Tatit. Objetiva-se ampliar nossa compreensão sobre o intertexto cancional, e como este se expressa nas duas canções mencionadas, que se caracterizam, como veremos, via uma intertextualidade e interdiscursividade explícitas.

 

Dialogismos

A concepção dialógica da linguagem que Julia Kristeva trabalha em seu texto “A palavra, o diálogo e o romance” (KRISTEVA, 2005, p.61-90) será uma referência teórica relevante em nossa análise. O dialogismo, a grosso modo, compreende todo discurso como uma junção de outros discursos sociais, revelando a presença de outrem na formação discursiva individual. O dialogismo intrínseco de toda linguagem se faz presente nas duas canções analisadas. Primeiramente, em “Maria, Minha Maria”, Biu Roque, Siba e Beto Villares se apropriam de uma cantiga de domínio público do sertão do nordeste brasileiro, que o velho Biu Roque escutava nos “dengos” cantados por sua mãe. Nessa tradução, a canção ganha contornos de música contemporânea, com “colorações fantasmagóricas”3, que indicam essa ancestralidade da cantiga, cujo tempo de existência nem os próprios intérpretes podem dimensionar, assim como não podem dimensionar suas diversas situações de discurso (canção para ninar, canção em festa popular, canção para lavar, canção para trabalhar etc.).

“Valsa pra Biu Roque” já traz no próprio título da canção um diálogo com a composição que tem Biu Roque como poeta-cantador. Outro indício da intertextualidade sugerida em nossa leitura é a própria presença do músico e produtor Beto Villares na produção dos dois CDs já citados. Em um depoimento concedido ao programa televisivo Pelas Tabelas, Céu comenta o seu processo de composição com Beto Villares evidenciando a intertextualidade intencional na composição da canção “Valsa pra Biu Roque”:

 

Eu ouço coisas, eu assimilo um som, e dessa partícula, eu tento transformar com o que eu tenho. Mas eu bebi daquela fonte ali, que já foi feita, já foi ouvida, já existe. Então de alguma maneira é sempre uma conexão de um disco de um cara, eu acho muito legal compor assim. O Beto me mostrando coisas, a gente tem uma fusão assim. Com a música “Valsa pra Biu Roque” foi assim. O Beto me mostrou o CD do Siba e a Fuloresta do Samba, e eu fiquei passada com a voz do Biu Roque na música “Maria, Minha Maria”, e resolvemos compor uma resposta para ele. (CÉU, In BRASIL,Canal. 2009).

 

Veremos, mais adiante, como os contornos contemporâneos vão se dar de forma mais específica em “Valsa pra Biu Roque, que “nem por jura ou promessa” ‘cria’ uma canção a partir da escuta de outra canção, caracterizando assim para nós, uma intertextualidade cancional, que pode ser facilmente verificada no uso de algumas palavras em comum nas letras das duas canções (“Debaixo da Condesseira” e “Maria”). O espaço das palavras ressoa de forma particular em cada canção ao entoar essas expressões verbo-acústicas, e por isso é importante compreender, também, outras intertextualidades que habitam as duas canções.

Vale lembrar que o aspecto dialógico da linguagem poética se expressa também em dois eixos: 1) horizontalmente, a palavra nos textos musicais pertence simultaneamente ao sujeito da escritura e ao destinatário; 2) verticalmente, a palavra cantada está orientada para os contextos culturais anteriores ou sincrônicos (KRISTEVA, 2005, p.63). Por isso, justifica-se um modo de escuta intertextual para as duas canções estudadas aqui, pois acreditamos também no papel do destinatário-crítico, que ao escutar participa da “composição”, do processo de significação das canções. Como nos explicita Kristeva acerca da natureza dialógica e intertextual da palavra literária:

 

A palavra literária não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior. (KRISTEVA, 2005, p. 62).

 

Nesse sentido, ampliamos nossa compreensão sobre intertextualidade, que não se encerra no simples enquadramento de palavras em comum diante de dois textos de autoria distinta. Em nosso caso, a noção de texto se amplia e iremos refletir sobre aspectos da intertextualidade cancional, que também vislumbra citações de elementos melódicos, rítmicos, harmônicos e de textura da canção “Maria, minha Maria”, que são recriadas em “Valsa pra Biu Roque”. Nesse espaço de recriação que a intertextualidade pressupõe, podemos caracterizar a chamada interdiscursividade. Em princípio, a intertextualidade cancional se fundamenta na citação de fragmentos textuais em comum, considerando-se a simbiose poesia e música que se expressa na canção. Por outro lado, a interdiscursividade não necessariamente precisa citar integralmente uma parte do texto cancional, mas envolve uma situação de discurso que possui um diálogo implícito ou explícito a ser decifrado por uma escuta atenta. Em nossa análise, podemos aferir que há elementos intertextuais pontuais na canção “Valsa pra Biu Roque”, no entanto, toda situação discursiva que engendrou sua composição pode ser denominada de interdiscursiva. A noção de interdiscursividade nos abre a leitura da canção como um todo, não somente para as partes em que o intertexto fica evidente nas canções. De uma forma geral, tanto intertextualidades como interdiscursividades são características habituais e presentes em toda canção, como vimos, na leitura de Kristeva acerca do dialogismo inerente a toda linguagem poética.

 

 

Ferramentas de Leitura

Para que possamos identificar os dialogismos (intertextualidades e interdiscursividades) presentes na canção “Valsa pra Biu Roque” utilizaremos, além da análise dos conteúdos presentes nas letras, algumas ferramentas de leitura que se mostraram mais adequadas para a descrição dos elementos de destaque das canções em questão, a saber: análises formais (amparadas nos estudos de fraseologia musical); descrição dos arranjos das obras (descrições pautadas principalmente no que se refere à instrumentação e texturas utilizadas nas canções); e análise de compatibilidade entre texto e melodia (com base na Semiótica da Canção).

Por “forma musical”, compreendemos os contornos das partes – e até das partes das partes – que compõem a estrutura sonora da obra. Forma seria, em outras palavras, um mapeamento das estruturas musicais; uma abstração plástica de um fenômeno eminentemente temporal. A esse respeito, lemos em ZAMACOIS (1976, p.3) que “Una composición musical no es más que um conjunto organizado de ideas musicales”, e essa organização é o que constitui a forma de uma obra. O autor ainda apresenta como sinônimos de forma as expressões “estructura” e “arquitetura”, frisando que o compositor pode tanto criar suas formas ou partir de formas já pré-existentes.

A instrumentação utilizada nas canções possui uma espécie de equivalência – interdiscursividade – que merece ser evidenciada. Esse fato se dá principalmente pela composição da textura que engendra as obras. A textura é o elemento da composição musical resultante da “trama de linhas e planos” que configuram a sonoridade geral da obra (ou de parte da obra). Tradicionalmente, a textura é classificada como “monodia”, “homofonia”, “melodia acompanhada” ou “contraponto”4. Tais expressões nos servem muito pouco para o contexto cancional contemporâneo, pois a produção atual se esmera cada vez mais no trabalho das texturas das canções, e o que antes aparecia como uma mera funcionalidade para o acompanhamento do canto5, hoje desponta com indiscutível valor estético6. O estúdio se apresenta como mais uma espécie de instrumento musical, e é conveniente ressaltar que figuras como Beto Villares, Céu e Siba são artistas desta nova safra de produtores que pensam (escutam e realizam) música já com a perspectiva sonora descrita, o que acaba por marcar as duas gravações em questão.

São três os processos de compatibilidade entre texto e melodia provenientes da Semiótica da Canção (área de estudos criada por Luiz Tatit): “tematização”, “passionalização” e “figurativização” (TATIT, 2003, p.9). Esses processos aparecem concomitantemente nas canções, e a maneira como o compositor equilibra tais elementos vão caracterizar, em última instância, seu próprio estilo cancional.

Por tematização compreende-se a compatibilidade que há entre melodias de andamento mais rápido, geralmente com contornos mais reiterativos, e letras de caráter mais descritivo, onde impera o domínio da modalidade do /fazer/. Nesses casos, ocorre que o enunciador já se encontra em “conjunção” com seu objeto de desejo, e assim, melodia e letra não necessitam da ideia de busca.

Quando a melodia possui andamento mais lento e suas frases são mais assimétricas do que regulares, através de um processo denominado “passionalização”, a letra privilegiará conteúdos em que a modalidade do /ser/ sejam reforçados. Aqui, o enunciador se vê em “disjunção” com seu objeto de desejo. Em situações como essa, a melodia e a letra transmitem a ideia de busca.

Todos os elementos do texto que “presentificam” o enunciador – “vocativos, imperativos, demonstrativos” (idem) – ganham uma maior “naturalidade” quando coincidem, no âmbito melódico, com seus tonemas – proto-melodias da fala. Essa “naturalidade” faz com que o discurso da canção se torne mais “eficaz”, mais convincente, e que possamos escutar a “voz da voz” de quem canta.

 

A voz que canta dentro da voz que fala.

A voz que fala interessa-se pelo que é dito. A voz que canta, pela maneira de dizer. Ambas estão adequadas as suas respectivas funções.

(TATIT, 1996, p. 15)7

 

 

Interdiscursos Cancionais

Antes de compreendermos como Céu e Beto Villares estruturaram sua resposta ao canto de Biu Roque, e de verificarmos onde é possível observar o dialogismo mencionado pelos próprios compositores como o processo de composição, é fundamental que compreendamos como a oitava faixa do álbum A Fuloresta do Samba funciona.

Nos primeiros segundos de “Maria, Minha Maria”, escutamos somente um canto de cigarra, que pela própria natureza referencial desse som, cria uma ambiência capaz de nos reportar imediatamente para um lugar pouco habitado e sob a luz da lua. Ora, cigarras também cantam durante o dia, mas essa textura monódica, esse solo de cigarra, e esse foco sobre o solo, são muito mais prováveis no turno da lua.

E entra em cena o timbre rústico da rabeca, com uma melodia lenta, como um lamento. A história do instrumento vem à tona. Esse timbre reflete a própria essência do lugar, a natureza agreste, seca e de terra rachada, que nele se materializam em qualidade sonora. Existe um nó de significados presentes na própria natureza do som que compõe essa introdução. E o que a rabeca propõe, no âmbito melódico, já é, na verdade, o tema do qual nascerá a voz que entoará a canção. Mas há ainda, nesse primeiro momento, algo de irreal nessa cena: uma espécie de “baixo-contínuo” apontando uma perspectiva harmônica que não se filia com fidelidade à imagem de um canto rural. Tal fato, longe de ser fator de demérito, produz um estranhamento capaz de gerar aquilo, que como foi levantado na introdução deste artigo, Benjamim denominou “fantasmagórico”.

A voz de Biu Roque, assim como a rabeca, tem o poder de presentificar a secura da terra através de seu timbre. É muito forte perceber que essa característica qualitativa sobre o timbre freia, de certa maneira, a capacidade de reprodutibilidade da obra. Apesar de haver um âmbito da reprodutibilidade que é evidente – trata-se de uma gravação em disco – a irreprodutibilidade aqui se manifesta no que diz respeito à capacidade da obra de se prestar a outras interpretações, haja vista que qualquer outro cantor que não possua esses “traços de seca” na voz, irá sacrificar uma parte significante da obra. Note-se que estamos compreendendo a obra/canção não como uma imagem ideal, abstrata, que a interpretação materializa, e sim como a própria materialidade do registro que estamos descrevendo.

A melodia – tanto a da introdução como a do canto – é composta por duas partes divididas em dois eixos de pergunta e resposta cada, totalizando assim oito fragmentos motívicos. O primeiro período deste tema aparece registrado no diagrama subsequente:

 

 

Fig.1: Primeiro período de “Maria, Minha Maria”.

 

Além de o andamento dessa canção ser lento, evidenciando as durações vocálicas e a propensão passional da melodia, podemos notar que o contorno melódico evolui, não se reitera, cada motivo perfazendo um caminho de desbravamento da tessitura. Essa congruência de fatores reforça a ideia de disjunção, ou seja, confere mais verdade ao texto que, como podemos notar nos diagramas, relata a permanência que o evento do abraço teve em quem canta; afinal, de “ontem ao meio dia” até hoje (agora/noite), existe um dia e meio de falta, de desejo.

O próximo período da canção revela ainda mais detalhes sobre a natureza deste quadro passional. Vejamos:

 

 

Fig.2: Segundo período de “Maria, Minha Maria”.

 

Se a evolução melódica é característica de um quadro típico do processo passional, a reiteração, por sua vez, sugere o estabelecimento de uma situação temática. Inegavelmente, toda a canção – da introdução ao coda instrumentais – reforça a ideia de falta, disjunção, busca, enfim, passionalização. Porém, no início desse segundo período (fig. 2), acontece a única reiteração melódica do tema. Isso agrega um fator diferencial às palavras “vem ver o belo luar / a sua ausência reclama”, que possuem a função de refrão desta obra (o primeiro período é reexposto com outro texto), e soam com um resquício de conjunção. Se por um lado a melodia parecia caminhar sem ponto fixo, sem se aderir a nenhum motivo melódico, agora ela encontra, mesmo que brevemente, um ponto em que insiste um pouco mais (lá, mi, ré, dó#, ré, mi). E é aqui que aparece o chamado, que se por um lado revela explicitamente a disjunção existente neste desencontro amoroso, por outro é nesse momento em que se entra em conjunção com o próprio desejo. A segunda estrofe, que será apresentada com a melodia do primeiro período, expõe dados que parecem fugir da paixão pela Maria, (“saudade da minha terra / onde eu nasci vou morrer”), o que demonstra que esse estado passional vivenciado pelo indivíduo parece pôr todos os seus sentimentos em turbilhão. Nesse quadro difuso, de uma melancolia nostálgica – e aqui vale lembrar que Biu Roque escutava sua mãe cantar essa canção quando ainda menino – o simples fato de focar o desejo já é um respiro de conjunção, temático, que contrabalanceia a carga puramente nostálgica das estrofes do primeiro período.

Porém, já no final do primeiro subperíodo do refrão (fig. 2), em vez de a melodia retornar à nota ré, existe um salto ascendente que atinge o extremo da tessitura da canção. Neste momento, aparece a palavra “reclama” (de “sua ausência reclama”), e temos uma retomada do quadro passional inequívoco que havia se estruturado no início. O segundo sub-período possui duas frases, a primeira em forma de “U”, e a segunda de caráter descendente, que pontua categoricamente todo o tema musical. Esta asseveração melódica traz o texto “não deve dormir quem ama”, e soa muito mais como um lamento do que como um argumento.

Como já foi dito, segue-se uma reexposição integral da melodia, com a troca do texto do primeiro período. Aparece agora uma mudança significativa na textura da canção. Se no primeiro momento o canto de Biu foi acompanhado por um movimento discreto, mas significativo, em uma espécie de “baixo contínuo”, na segunda exposição a rabeca de Siba passa a reiterar uma frase insistente no acompanhamento: um ostinato feito com uma apogiatura ascendente que parece sobrevoar a melodia principal. Esse movimento de duas notas para o agudo pode remeter ao próprio salto ascendente que caracterizou a parte de inclinação temática, mas pode soar também como uma referência a um canto de pássaro, devido à sua descontextualização harmônica e à ineficiência deste elemento como um contraponto tradicional. Este paralelo é reforçado por conta do texto que diz “Debaixo da condesseira / onde canta o zabelê”. Ao apresentar o refrão pela segunda vez, a rabeca de Siba se une à voz de Biu Roque e ressalta tanto o matiz temático presente no primeiro momento, como dramatiza a conclusão do tema.

Nos próximos dezesseis compassos, correspondentes aos quarenta segundos finais da faixa, o que escutamos é somente o solo das cigarras sobre a mesma quadratura harmônica que servira de aura ao canto que se concluiu. Não é difícil recriar a atmosfera de contemplação que deve ter tomado o personagem de voz seca após seu áspero desabafo, após seu lamento.

Através de uma indicação de seu parceiro/produtor, Beto Villares, Céu escuta a gravação de Fuloresta do Samba. Algo a encantou profundamente, a ponto de compor uma resposta a Biu Roque. É a própria compositora quem revela que ficou “passada com a voz do Biu Roque na música ‘Maria, Minha Maria’”. Céu, por ser uma cantora com grande influência de jazz, e como todo bom músico de jazz, primar pela singularidade do timbre – sua própria voz é um reflexo desse foco de escuta –, fica “passada” com a voz de Biu Roque. Foram provavelmente a concretude dessa voz, a aspereza e a carga de significados mencionada anteriormente que dispararam o estopim do encantamento emotivo em Céu.

Com a introdução de “Valsa pra Biu Roque”, inicia-se uma típica valsa choro com violão e bandolim8. Por se tratar de uma forma musical ligada historicamente à boemia urbana, às serestas à luz da lua, logo na introdução temos um interdiscurso cancional intrincado e belo. Da mesma maneira que a gravação de Biu Roque se reporta a um tempo antigo, recriando e re-vivenciando certa memória afetiva que está concentrada naquele canto de domínio público, a sonoridade que Beto Villares compõe com bandolim e violão produz efeito similar. Porém, em uma relação verdadeiramente dialógica, re-contextualiza essa memória a um lugar não rural, colocando, dessa maneira, o enunciador em um espaço geográfico e cultural distinto. Nesta introdução, fica evidenciada a distância e a proximidade que existe entre as obras, esta, no âmbito do afeto, aquela, no que toca ao espaço geográfico e cultural.

O tema melódico da canção é exposto duas vezes com o mesmo texto. Podemos notar que o primeiro período da resposta de Céu é composto de um perfil melódico de caráter reiterativo, com forte inclinação à tematização, o que é perfeitamente reforçado pela letra que simplesmente aponta suas condições em que uma possível conjunção poderia se dar9. Mas por conta do andamento lento proposto, ainda percebemos a canção sob o predomínio da passionalização. O fato é que essa resposta soa, em comparação à tradicional cantiga, muito mais bem resolvida quanto à disjunção relatada.

 

 

Fig.3: Primeiro período de “Valsa pra Biu Roque”.

 

A palavra “Maria” e seus diferentes significados apreendidos na escuta das duas canções nos ajudam a compreender a proximidade e a distância entre elas. A Maria de Biu Roque rima com “melancia” e “meio-dia”, revelando uma espécie de simplicidade presente na vida rural. A Maria proposta por Céu, como mencionamos anteriormente, está integrada a um cenário urbano, e nesse sentido suas rimas evidenciam uma Maria do devir, que se “daria”, que “cantaria”, caso seu interlocutor aceitasse uma relação onde ela fosse “a sua, e não mais uma”. Note-se que na cantiga de Biu Roque, Maria ressoa em substantivos, enquanto na versão proposta por Céu, Maria ressoa em verbos10.

Outro elemento presente nos dois textos é a lua. O chamado “Vem ver o belo luar” ambienta uma cena romântica, e provavelmente se refere à lua cheia – que é aquela tida tradicionalmente como a lua dos amantes. Já o verso “as quatro luas eu te daria” ressignifica o primeiro, pois escancara a natureza idílica dos versos originais ao apontar a possibilidade de outras luas. É como se essa imagem irreal de dar as quatro luas forjasse a noção de se dar por inteiro ao amante – na lua cheia e na nova, com luz e na ausência dessa –, o que em outro sentido acarreta também um maior grau de envolvimento por parte do poeta-cantador. Esses dois primeiros versos revelam a perspectiva de uma mulher forte e também possuidora de vontades e desejos.

A segunda estrofe se inicia e aqui podemos encontrar uma referência explícita ao processo de composição da obra. Ao cantar “Minha resposta ao que ouvi / a mais bela melodia / foi roubar pra minha história / sua poesia de outrora” a personagem – em grande consonância com a própria voz da autora – revela que sua melodia, seu canto, roubou a poesia seu interlocutor para integrá-la à sua história. E justamente esse é o momento de maior ressonância melódica entre as duas canções.

 

 

Fig. 4 – correspondências melódicas entre as canções (a).

 

 

Fig. 5 – Correspondências melódicas entre as canções (b).

 

A melodia deste novo período possui um contorno similar ao que encontramos quando Biu Roque entoa “meu doce da melancia” (fig.4). Porém, devido ao lugar que esta melodia ocupa na forma da canção11, a ocupação do extremo da tessitura, e à reiteração motívica presente, o eco mais sonoro entre as obras é ressonância do que ocorre com os versos “vem ver o belo luar / a sua ausência reclama” (fig.5). A interdiscursividade se faz presente nesta passagem de maneira discreta, porém marcante.

Segue-se uma reexposição integral da canção. Após isso, surge uma espécie de segundo tema, repetido duas vezes, que possui quase a função de coda da obra. A letra nesse momento frisa, com um sussurro delicado de quem já se deixa descansar nos ombros do amante, “Não por jura, ou promessa / nem perdão ou vaidade / debaixo da condesseira / sua Maria de verdade”. Este momento coincide com a maior reiteração motívica, reforçada pela sua própria repetição integral, e é nitidamente o momento de maior conjunção apresentado pela canção. A tematização é evidente, e os conteúdos da letra também se reiteram e se configuram de maneira enumerativa.

 

 

Fig. 6 – Segundo tema de “Valsa pra Biu Roque”.

 

Um amor rasgado quase em silêncio / Desengasgado / Feito o avesso de um gado preso / E que é sob a condesseira comungado”. O verso final engendra uma imagem alegórica em que os dois cantos se encontram virtualmente sob o luar, “debaixo da condesseira” encantada por pássaros, cigarras, rabecas e bandolins.

 

 

Conclusão

 

Ao longo do texto pudemos notar como a escuta do interdiscurso cancional pode ser reveladora de qualidades estéticas fundamentais para a apreciação de algumas obras. Percebemos, ainda, como a canção de Céu e Beto Villares, partindo de um diálogo explícito com uma gravação específica de um canto da tradição oral, é capaz de re-configurar a concepção sobre a postura da mulher em um relacionamento amoroso. Esse redimensionamento parte, paralelamente, de uma concepção tradicional de afeto para, então, poder ajustá-la a um novo panorama sóciocultural.

 

 

 

 

Referências

 

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.São Paulo: Brasiliense, 1987.

 

_____. Passagens. Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007.

 

BRASIL, Canal. Programa Pelas Tabelas. 10 de julho de 2009. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=FuZDf91yE9g&feature=relmfu. Acesso em 29 de setembro de 2012.

 

KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. In: KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005.

 

TATIT, Luiz. Elementos para a análise da canção popular. Cadernos de Semiótica Aplicada, v. 1, n.2, 2003.

 

_____. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

 

ZAMACOIS, Joaquín. Curso de formas musicales. 4.ed. Barcelona: Editorial Labor, 1979.

 

1 Ator e relações públicas. Possui graduação em Relações Públicas/Bacharel pela UNESP/Bauru (2005), especialização em Comunicação Popular e Comunitária (2007) e mestrado em Comunicação Visual (2011), ambos pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmente é docente do Departamento de Comunicação da UEL, atuando nos cursos de comunicação e artes cênicas.

2 Violonista e compositor. Possui graduação em Música/Licenciatura e especialização em Performance Musical (violão), ambos pela Universidade Estadual de Londrina.

3 Walter Benjamim, em seu projeto inconcluso do livro Passagens (tradução em português de 2007), surge com força a noção de fantasmagoria, que se caracteriza como imagens-fantasmas que não correspondem ao real, mas que são percebidas como real. Benjamin almejava historicizar a imagem da Paris do século XIX, vivendo na própria capital do século XX. Com essa noção de fantasmagoria, o autor alemão questiona de forma enigmática e ambígua o surgimento da modernidade na capital parisiense, e de uma maneira geral toda e qualquer sistematização histórica sobre tempos não vividos, ou melhor, o passado imaginado para melhor compreensão do presente, que guarda em si reminiscências do tempo antigo. Porém, essa imagem assume força de presença objetiva, mesmo sendo uma imagem, uma ilusão, em outros termos, uma produção intelectual ou uma ação da imaginação humana (BENJAMIN, 2007). Siba e Biu Roque nessa canção criam, a partir de uma cantiga de domínio público, certas imagens que nos remetem a um tempo desconhecido. Na experiência de escuta da canção imaginamos um passado não vivido, criando assim imagens-fantasmas. A própria voz de Biu Roque parece fazer essa nossa travessia mais segura, já que a cantiga guarda para si uma memória do cantar materno. É essa nossa acepção ao utilizar o termo para caracterizar a atmosfera fantasmagórica de “Maria, Minha Maria”.

 

4 Alguns autores indicam ainda um outro arquétipo textural: “heterofonia”. Esse conceito não foi apresentado no corpo do texto por se tratar de algo específico da música contemporânea de caráter mais erudito e experimental. Ainda que as barreiras entre erudito e popular sejam reais somente ao olhar desatento, o conceito de heterofonia parece não acrescentar muito às questões do repertório de canções em que estamos inseridos, neste trabalho.

5 A instrumentação e a criação de texturas ficam sob responsabilidade secundária (para a composição do sentido e significado da canção) do arranjador.

6 Esse não é um fenômeno completamente novo. Sempre existiram grandes arranjadores que imprimiram valor estético às canções em que doaram seu talento, porém as fronteiras que separam cancionista, arranjador e produtor musical mostram-se cada vez mais anuviadas.

7 Luiz Tatit tece essa passagem sobre uma citação de José Miguel Wisnik. Essa separação entre “o que é dito” e “como é dito” reflete-se na distinção que a Semiótica Francesa (e, por extensão, a Semiótica da Canção) propõe entre plano da expressão e plano do conteúdo.

8 uma similaridade que revela o dialogismo entre as duas letras das canções estudadas aqui: a mesma estrutura numérica de versos, três quadras com quatro versos cada uma. Outra curiosidade é que as duas canções têm exatamente o mesmo tempo de duração: 2’47’’.

9 Inclusive, como prova dessa tendência temática, os motivos reiterativos que servem de resposta ao primeiro e segundo subperíodos desse trecho apresentam as expressões temáticas da condição (“As quatro luas eu lhe daria (...) / “uma canção eu cantaria”).

10 É conveniente ressaltar, verbos no Futuro do Pretérito.

11 Vale lembrar que tais recorrências ocorrem no início do segundo período do tema nas duas canções.