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Uma Legião de poemas

 

Julliany Alves Mucury1

jullianymucury@gmail.com

 

Resumo: Este breve estudo busca captar, por meio da obra poética de Renato Russo (1960-1996), publicada nos encartes dos CDs da banda Legião Urbana,  sua produção escrita como memória-presente e registro autobiográfico e confessional de um tempo mutante, crítico, no embalo da mudança da década de 1980 para a de 1990, a fim de delinear seu projeto poético de criação, a partir do qual se torna possível captar a relevância literária de suas canções. As letras compostas por Russo, contextualizadas histórica e culturalmente, serão investigadas a partir de uma leitura transtextual, com a intenção de identificar as fronteiras do sujeito fragmentado e os caminhos cruzados de sua recomposição no tempo-espaço condensado da arte, transmutado em poesia.

Palavras-chave: Renato Russo; Brock; Poesia; Canção; Rock and roll.

 

Abstract: This brief study aims to capture through Renato Russo's (1960-1996) compositions, which were published in the CD booklets of Legiāo Urbana band, his written production as a present memory and an autobiographical and confessional record from a mutant and critical period in the rhythm of the changes from the 1980s to the 1990s. It aims to delineate his poetic project of creation, from which it is possible to capture the literary relevance of his songs. The lyrics composed by Russo, culturally and historically contextualized, will be investigated through a transtextual reading with the intent of identifying the boundaries of the fragmented subject and the crossed paths of his recomposition in the condensed time-space of art transmuted into poetry.

Keywords: Renato Russo; Brock; Poetry; Song; Rock and roll.

 

 

As letras de canção que vencem o desgaste e o silêncio do tempo em uma determinada sociedade são as que conseguem alinhavar o ideário de sua composição com o do contexto em que foram produzidas, especialmente quando consideramos os fenômenos da MPB e do rock brasileiro produzido na década de 1980, conhecido como Brock. Os valores culturais, as relações sociais e a poesia nelas presentes são o suporte para a migração da canção como objeto de estudo no meio acadêmico. Na verdade, a literatura já se faz presente por meio de figuras literárias desde o surgimento da canção popular, o que conduz o início dessa discussão à Idade Média, quando a poesia era ainda cantada. O recuo histórico revela que a arte músico-poética dos trovadores provençais e dos trouvères do norte da França foram importantes manifestações da poesia lírica e por isso as cantigas dos trovadores medievais receberam enorme influência das canções dos mestres de Provença. “As primeiras coleções de poesia da Península Ibérica foram os cancioneiros organizados pela realeza para preservar as tradições orais da poesia cantada” (PERRONE, 1988, p. 15). No Renascimento, houve o descolamento da poesia de seu acompanhamento musical, mas a origem da literatura colonial no Brasil alimenta-se desse veio medieval.

Atravessando as décadas, a poesia e a canção seguiram caminhos que não se assumiam explicitamente, ou não havia a intenção declarada de um autor em transitar pelo mundo literário e musical a um mesmo golpe. No entanto, Perrone (Idem, p. 18) lembra que, no início do Século XX, poetas literários parnasianos como Goulart de Andrade, Hermes Pontes, Olegário Mariano e Álvaro Moreira participaram do cenário da música popular. Orestes Barbosa seria o mais lembrado por suas letras, produzindo nas décadas de 1920 e 1930, e é dele o verso “tu pisavas nos astros distraída”, da canção “Chão de Estrelas”, tomado por Manuel Bandeira como um dos mais belos versos da língua portuguesa2.

Considerando esse diálogo desde sua origem (poesia e canção), há uma densa teia de fontes teórico-metodológicas que amparam este breve estudo sob diferentes perspectivas. Assim, pioneiros, como Sílvio Romero e Mário de Andrade, e historiadores, cientistas sociais, especialistas da comunicação, críticos literários e da cultura capturam por uma ótica interdisciplinar esse assunto e fomentam novas correntes críticas, como Augusto de Campos, que publica O Balanço da Bossa (1974), conjunto de textos, na maior parte de sua autoria, que discute a música popular, principalmente, a bossa nova e o tropicalismo, definindo-as. É de Júlio Medaglia, em artigo que faz parte desse conjunto, a conclusão de que as inovações trazidas à MPB pela Bossa Nova. Segundo Medaglia, os protagonistas da BN

 

forjaram a formação de um novo estilo composicional que incorporou todos os recursos musicais conquistados, baseando-se numa temática literária atual e ligada ao meio que lhe deu origem. Sabendo-se que essas composições seriam executadas por pequenos conjuntos e ainda mais comumente cantadas por uma única pessoa com acompanhamento de violão ou pequeno grupo instrumental, desenvolveu-se uma técnica composicional orientada para articulações mais sutis e de detalhe, assim como um vocabulário expressivo que prevê um contato direto e íntimo com o ouvinte (MEDAGLIA apud CAMPOS, 1974, p. 82).

 

Pela força desse “contato direto e íntimo com o ouvinte”, foi iniciada a produção de pesquisas acadêmicas, partindo de diferentes procedimentos teórico-metodológicos, que abordam a letra de canção em conjunto com a melodia, apenas a letra de canção como sistema semiológico autônomo ou ainda que entram no mérito das composições, na tentativa de definir o que de fato há de literário naquilo que molda o cenário musical. Campos (1968) foi o fundador de toda uma corrente de análise iniciada por sua comparação entre Caetano Veloso e Oswald de Andrade, quando traçou paralelos entre a apropriação ou “deglutição”, por parte de Oswald, de ideias literárias europeias para fins nacionais e a inserção, por parte de Caetano, de alguns traços estilísticos do rock para a música tropicalista: “Eles (Caetano e Gil) atingiram um grande refinamento nessa modalidade de melopéia, nessa arte rara que Pound, evocando os trovadores provençais, denomina de ‘motz el som’, isto é, a arte de combinar a palavra e o som” (CAMPOS, 1968, p. 292).

Sob esse ponto de vista, a produção musical brasileira, composta pelos mais diversos gêneros e ritmos, gera uma infinidade de elementos para análises, que se estendem sobre a forma e a composição, e para abordagens atentas ao cruzamento de materiais semióticos, à inovação tecnológica e à influência decisiva dos meios de massificação da música e do próprio mercado musical (gravadoras e afins). Assim, a Música Popular Brasileira (MPB) seria uma das fontes de corpus para análises acadêmicas, por ser um dos gêneros musicais produzidos no país que abarca as mais diversas vertentes.

A década de 1920 assistiu à ascensão do samba. Criado no Brasil e com fortes traços das culturas africanas, logo se tornou o ritmo mais representativo da identidade nacional diante do mundo, galgando, na chegada ao Rio de Janeiro, um novo status ao incorporar elementos de outros ritmos ao seu batuque, como polca, maxixe, lundu, xote, entre outros. Com o avanço das composições e sua introdução nos festejos de carnaval, logo a classe média carioca e as rádios incorporavam esse fenômeno, antes visto com preconceito por sua origem, nos morros.

De seu gene híbrido nasce, posteriormente, nos anos de 1960, a Bossa Nova, incorporando outros gêneros e estilos. O termo bossa remonta de uma composição de Noel Rosa, de 1930, “Coisas nossas”: “O samba, a prontidão / e outras bossas, / são nossas coisas”. Com Vinícius de Moraes e Tom Jobim compondo os mais conhecidos hits do movimento, junto com o talento singular de João Gilberto, que elaborou uma nova “batida” ao violão, bem como um estilo de canto a um mesmo tempo contido e cheio de nuances, o movimento representou o que havia de novo na Música Popular Brasileira até meados dos anos sessenta. O casamento entre poesia e melodia eclodia naturalmente, compositores e intérpretes estavam conscientes de seu movimento, diferenciado, que trazia para o universo musical outro som, unido à poesia:

 

A partir do momento em que Vinícius de Moraes, poeta lírico reconhecido desde a década de 30, migrou do livro para a canção, no final dos anos 1950 e início dos 1960, a fronteira entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de compositores e letristas leitores dos grandes poetas modernos como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Manuel Bandeira, Mário de Andrade ou Cecília Meireles. (WISNIK, 2001, p. 183)

 

Com “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, defendida por Elis Regina no I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior (1965), houve uma transição que marcou o fim da Bossa Nova (o que não significa a extinção estética desse estilo) e o início do que se rotularia MPB, que agrega diversas tendências da música brasileira até o início da década de 1980 – época em que surgiu um pop rock nacional renovado. Já não havia mais apenas a “bossa”, mas uma dissidência criativa, que dificulta a definição do que se produz no país por sua diversidade. Daí cunhou-se a sigla MPB de fato, para abarcar a multiplicidade de composições e melodias que permearam a produção musical brasileira a partir da década de 1960.

Dentre os estilos musicais produzidos no país, o rock foi também se transformando ao longo dos anos. As gerações que ouviam Elvis Presley e Bob Dylan, ícones, respectivamente, do rock e do folk / folk-rock nos EUA, assistiram ao desenvolvimento de um tipo de música cada vez mais focada nas letras de protesto, na predileção por um tom ofensivo e libertário, batizado de punk rock. Daí para a influência dessas bandas europeias entranhar-se na juventude brasileira não demorou. As relações políticas e educacionais brasileiras levaram muitas famílias da elite social para o exterior e foi desse contato que se importou direto dos guetos londrinos e adjacências muito desse novo som. Esse tempo e o que se produziu a partir do encontro entre sons modularam um novo estilo musical inconfundível: o “Brock”, termo cunhado por Arthur Dapieve (1996) para delimitar o rock tipicamente brasileiro.

Dentre os expoentes do Brock está Renato Manfredini Junior, o Renato Russo, líder da Legião Urbana, grupo formado inicialmente por Renato, letrista e vocalista, Dado Villa-Lobos, guitarrista, Renato Rocha, baixista, e Marcelo Bonfá, baterista. A Legião Urbana consolida-se no mercado ao longo das décadas de 1980 e 1990, com canções assinadas e interpretadas por Russo, às vezes com co-autoria de Bonfá e Dado, que mesclam com lirismo a escrita autobiográfica de um sujeito capaz de responder pelo momento histórico que o acolhe. A banda lançou, no período de 1984 a 1997, oito álbuns: Legião Urbana (1984), Dois (1986), Que país é este (1987), As quatro estações (1989), V (1991), O descobrimento do Brasil (1993), A Tempestade (1996) e Uma outra estação (lançado depois da morte de Renato Russo, em 1997).

 

Um nove oito zero – A vez/voz do punk

O Brasil da década de 1980 foi marcado por diversos acontecimentos sociais, políticos e econômicos, como o atentado do Riocentro, a revelação dos primeiros casos da AIDS, as Diretas Já, a morte de Tancredo Neves e a criação da nova Constituição Brasileira. Todos esses fatos históricos determinariam uma mudança radical de comportamento e postura crítica, que culminam no período de 1985 em diante, com o fim da ditadura militar no Brasil. Inaugura-se então um novo tempo, da derrocada de um período de horror existencial, em que a inocência dos bailes e do iê-iê-iê fora substituída pela atitude constante de vigilância e por uma truculência autorizada, advinda do Estado, com desaparecimentos injustificados e prisões arbitrárias. Tais fatos ocasionariam a eclosão de bandas e cantores em carreiras solo ligados ao rock, com músicas de protesto e atitudes vanguardistas. Dentro desse estilo musical, o punk ressurge com batidas mais pesadas, caracterizando o hardcore.

Um fenômeno sociocultural explodia, então, no Brasil. A preparação para esse novo terreno acompanhou o lento processo de abertura política; tal abertura seria testada com essa circulação de ideias ligada aos jovens músicos (DAPIEVE, 2000, p. 30). Entre 1971 e 1974, Ney Matogrosso liderava um grupo esteticamente revolucionário, o Secos e Molhados, que conseguiu atingir números de vendas de discos recordes pelo curto tempo de duração do quarteto. Em 1979, os irmãos Venturini davam asas às canções do 14 BIS e, em 1980, Júlio Barroso causava o impensado com o grupo Gang 90 & As Absurdettes. Acontecia uma amplificação significativa no cenário musical brasileiro.

Após essa base erigida da década de 1970, para consolidar o espírito dessa década e lançar um espaço para as novas bandas que surgiram daí, no verão de 1982, foi erguido um circo na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro, que durou apenas três meses, mas que reuniu o melhor do rock nacional que vinha sendo produzido à época. Era o Circo Voador, e por ele passariam algumas das bandas que fariam parte do Rock in Rio, em 1985. No Brasil, esse período é considerado como a década de ouro do rock: bandas de música pop e de rock and roll, como Legião Urbana, Ultraje a Rigor, Engenheiros do Hawaii, Titãs, RPM, Paralamas do Sucesso, Camisa de Vênus, Blitz, João Penca e seus Miquinhos Amestrados, Inimigos do Rei e Barão Vermelho ascendem no mercado musical, na companhia de Raul Seixas, Rita Lee, Cazuza, Kiko Zambianchi, Leo Jaime e a tríade do Vímana: Lobão, Lulu Santos e Ritchie, que seriam os responsáveis por levar o rock brasileiro da década de 1970 para a de 1980.

Em Brasília, os jovens formavam bandas na mesma velocidade em que se formavam as novas turmas da capital. Os grupos reuniam-se e começavam a ensaiar no Brasília Rádio Center e suas apresentações aconteciam no Centro Comercial Gilberto Salomão. Eram filhos de militares e de diplomatas que se juntavam com os filhos dos servidores públicos convocados para trabalhar na cidade, meninos e meninas que tinham acesso a discos de vinil raros, em um lugar em que não havia rádios que tocassem o rock de que eles gostavam. As novidades vinham com os novos moradores e nasceram nesse contexto as primeiras formações do Aborto Elétrico e o Blitz 64, ambas com integrantes que depois formariam a Legião Urbana, o Capital Inicial e a Plebe Rude.

Dessas bandas, quatro formavam o que ficou conhecido como “quarteto sagrado do rock” da década de 1980 no país, expressão cunhada por Dapieve (2000), todas despontando em 1982: Os Paralamas do Sucesso, cariocas (que se conheceram em Brasília), encabeçados por Herbert Vianna; Titãs, paulistas, uma banda sui generis, tendo em vista os padrões desse período, pois era formada por nove integrantes, liderada por quatro personagens principais: Ciro Pessoa, Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Nando Reis; os cariocas do Barão Vermelho, liderados inicialmente por Cazuza (que depois seguiu em carreira solo) e depois por Frejat; e os brasilienses da Legião Urbana, liderados por Renato Russo.

O ano de 1985 marca o fim do governo de Figueiredo (1979-1985), último presidente ligado à Ditadura, e Tancredo Neves faz a breve e histórica estada do primeiro presidente eleito após os “anos de chumbo” no Brasil. Somente quando Sarney assume o poder (1985-1990) o rock instaura permanentemente uma relação direta com o povo. O seu Plano Cruzado instaurou certa ordem na economia e acendeu o poder aquisitivo das massas, que passaram a ter a possibilidade de consumir mais; dentre os itens que tiveram crescimento vertiginoso de vendas, estavam os LPs. Nesse ano, acontece o recorde de vendas de discos até então no Brasil, e o Dois, da Legião Urbana, por exemplo, atinge a marca de 800 mil cópias vendidas, superado pelo RPM, com seu Rádio Pirata, LP que venderia 2.200.000 cópias. Com Paulo Ricardo no vocal, essa banda, a que mais se aproximou da beatlemania em terra brasilis, mostrava ao Brock uma nova face: a do poder da mídia.

Em 1990, Fernando Collor assume o poder, e o estilo musical sertanejo ganhou força, abrindo espaço para as duplas, e o rock virou inimigo a ser combatido (o discurso dos roqueiros soava mais pró-Lula que Collor). Lobão endossa esse entendimento ao afirmar que na década de 1990 o rock retrocedeu: “temos os mesmos entraves do começo, os mesmos inimigos.” (DAPIEVE, p. 203). Nessa década acontecem duas perdas para o rock brasileiro; em 07 de julho de 1990 morre Cazuza, e em 11 de outubro de 1996, Renato Russo, letristas tidos como poetas na história do Brock. Para Dapieve, Russo seria o meio termo entre Cazuza (coração) e Arnaldo Antunes (cérebro puro).

 

 

Renato e seus poemas

Na famosa junção de entrevistas somando 142 minutos, lançadas pelo selo da MTV brasileira, e composta por três encontros com Renato Russo (26 de março de 1993, 30 de março de 1994 e maio de 1994), ele ri da comparação da mídia da letra de “Há tempos” com a estética da poesia de Olavo Bilac, assume a homossexualidade e o mergulho no álcool e nas drogas, louvando a própria recuperação. Nessa exposição, derruba os limites entre a pessoa e a persona, afirmando que as suas letras partem das vivências da banda, de suas próprias vivências e diz não haver mistério, ou glamour, no significado de ser Legião Urbana, de ser Renato Russo. Mais um capítulo elaborado da persona-não-persona criada por Russo.

Nessa mesma entrevista concedida à MTV, logo na primeira resposta ele define a Legião Urbana como um conjunto musical brasileiro, resultado de uma juventude inserida em uma experiência urbana a partir dos anos de 1970. Para ele, o trabalho da Legião incorpora uma série de coisas “bem brasileiras”: um traço romântico muito forte, um traço narrativo muito forte, e a predominância do compasso quatro por quatro. Após revelar essas facetas, declara que eles começaram imitando as bandas inglesas, traço revelado de uma criação inicial afeita à persona que ele desenvolvera e à qual nunca deu cabo de todo. Irritado com a condução das perguntas, Renato, o Russo, diz que as perguntas são difíceis, que a Legião “é só um conjunto de rock”, ponto em que é interpelado pelo jornalista e resolve reconduzir suas respostas. Então se vê um duo autor/persona que define as letras da banda como o diferencial que a fez alcançar o ponto a que chegou, como ícone, referência, por falarem “da gente”, ele declara que até Descobrimento do Brasil as letras falam de coisas que ele e os amigos viveram de fato, o que os tornam reais e sinceros diante do público.

Curioso sobre esse reconhecimento que sua poesia produz, Renato diz que gostaria de saber se Bob Dylan vive o que escreve, por ele mesmo se reconhecer nas composições de Dylan. Tal afirmação conduz o leitor/ouvinte da Legião Urbana a uma confirmação a respeito das intenções do autor, visto que o líder e vocalista da banda afirma ser em si muito do que escreve. Ao comprovar a escrita autoral, ele reforça a identificação do leitor/ouvinte com sua produção, ato que estreita o vínculo entre as intenções do autor e do leitor (ECO, 1990), quando creem que a poesia é um elo entre suas pessoas, embora por vezes representados pela persona. A falta desse limite entre ficção e realidade é que chama o texto à conversa, é ele quem define o ponto de transgressão da veracidade, ou seu disfarce, quando o poeta dialoga com outros textos, traz outras fontes, para revelar seu eu sem se revelar, impondo a segurança da paráfrase a fim do repouso do autor, ressignificado na persona/eu-lírico que se torna o sujeito de todo o reconhecimento.

Truque bem empregado? Ele afirma que Quatro Estações é lírico e lindo em contraponto a Que país é este, o “pesadão”. Que a era Collor e a negatividade não escaparam de seu processo criativo e que, ao mesmo tempo, fala de si, mas para o mundo. Essa sinceridade planejada mostra que Renato era um autor extremamente consciente de sua composição poética e sabia bem como usá-la para atingir o público. Pode-se dizer que o leitor-ideal dele refletia sua visão de mundo: em um mesmo dia há o nascer do sol, o entardecer, o pôr-do-sol e a noite. Seu alvo é este ser que vive as dicotomias e paradoxos de um tour completo pelas fases do dia, da vida. Tal concepção permite a abrangência de público, noção mercadológica que não escapava da visão do autor.

Para o jornalista Sérgio Martins, em matéria intitulada “Riqueza de repertório”, publicada na edição 2277, ano 45, nº 28, de 11 de julho de 2012, da revista Veja, há uma “estirpe de letristas do rock que têm o dom de conferir às suas criações inteligência literária e expressividade imagística”. Inclui nesse rol Patti Smith e Bob Dylan, e afirma que essas qualidades “se costumam resumir na palavra ‘poesia’”. O desafio de firmar Renato Russo como um poeta do rock, participante dessa estirpe eleita por Martins, é encontrar em sua produção esses elementos e a partir de suas canções perceber o universo de suas metáforas, encontrar na trama que ele elaborou para expor seus pensamentos e impressões sobre o mundo, os seres, a vida, o eu em si a grande imagem que define sua poesia, seu labor com as palavras, enfim, o que há de estético na sua linguagem.

Atento aos descaminhos da interação com seu público e à proporção do alcance de suas letras, Renato Russo confere às composições da Legião Urbana temas e autores densos para o cenário punk, depois transmutado em pop (“Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus / De Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud” e “O Eduardo sugeriu uma lanchonete / Mas a Mônica queria ver o filme do Godard”). Presente em quase todos os encartes dos álbuns da banda, a frase em latim Urbana Legio omnia vincit (Legião Urbana a tudo vence), adaptação feita por Renato Russo do mote Romana legio omnia vincit (Legião romana a tudo vence), criado pelo imperador romano Júlio César, tornou-se o lema da banda, frase esta que passou de emblema cult a melancólico – no último álbum da banda vê-se um compositor assumidamente vencido diante dos problemas de saúde que lhe ceifam a vida.

Essas interrelações do compositor com a literatura, história, arte e filosofia surgiam em suas letras de canção, às quais Renato Russo impregna com mitologia grega e importantes pensadores e escritores da literatura ocidental como Karl Marx, Sigmund Freud, Lord Byron, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa e com trechos bíblicos. Tais referências imprimem à poética de Russo a intenção clara de fazer uma letra de canção crivada por detalhes que pediam atenção também aos encartes dos álbuns, já que, como atestado por Perrone (1988, p. 15): “as letras impressas são mais que um cartaz que serve de guia para atitudes culturais em mutação, ou mero auxílio para a memorização ou acompanhamento da canção. Existiu um relacionamento simbiótico entre a transmissão sonora e a impressão das letras de canções. O advento do encarte com as letras impressas mudou também a relação entre o autor das canções e seu público, que podia então ter acesso não apenas para decorar as palavras, mas para perceber nuances da composição, enriquecida pelos comentários do autor e pelos sinais gráficos que reforçavam aqui ou ali determinados elementos das canções.

Percebendo o poder do impresso, o autor mais minucioso, como o fora Russo, faz uso de vários recursos para enriquecer sua criação. Por exemplo, ao reinserir/ressignificar o discurso alheio no seu, confere a este um tom transcendental, apelando para o imaginário do leitor/ouvinte, que tem a sensação de já ter encontrado aquele texto antes, reconhecendo-o e abrindo-se às suas verdades e temas universais. Sem atropelo, o autor empírico lança um conteúdo familiar, reestruturado e embalado pelo rock, mas não é ingênuo nesse ato. O que o autor intenta revelar vai além do que ele prega e o leitor “desbasta o texto até achar uma forma que sirva a ele próprio” (ECO, 2005, p. 29), sendo preciso sempre retomar o texto em si, livre de interpretações tendenciosas, para recuperar seu sentido.

Assim, Renato Russo soube captar o mal-estar (que também era o dele) da juventude de um período de transição marcado pela ditadura e por um espaço urbano, o de Brasília, planejado, artificial, povoado por jovens vindos dos mais diferentes pontos do globo e apresentar às massas um texto reflexo delas mesmas. Como compositor/poeta representou bem o entendimento de Octavio Paz acerca do seu papel: “o poeta não se limita a descobrir o presente; desperta o futuro, conduz o presente ao encontro do que vem; cet avenir sera matérialiste. A palavra poética não é menos materialista do que o futuro anuncia: é movimento que gera movimento, ação que transmuta o mundo material.” (PAZ, 2006, p. 98).

A poesia de Renato Russo compõe um projeto poético-musical que visa bordar sobre um tecido cultural consagrado, mediante releituras de obras literárias, da mitologia grega, da herança judaico-cristã, enfim, um novelo cultural já absorvido, que desencadeia um processo de significação a partir do emaranhado das linhas que suas letras apresentam. Há como perfilar um eixo temático no conjunto de sua trajetória poética, pois que questões sobre ética, sentimento amoroso, política e humanidade são recorrentes, tendo a perspectiva social como base. Segundo depoimentos do autor (ASSAD, 2000, p. 28), esses elementos encontram-se materializados em uma linguagem simples, possibilitando um contato maior com seu público.

Contudo, Renato Russo não se via como um poeta (um elemento de performance que também o auxilia no seu processo de aproximação com o público), conforme declarou em entrevista de 23 de janeiro de 1988, para o repórter Luiz Carlos Mansur, do Jornal do Brasil: “(...) Me vejo mais como um letrista mesmo. Eu escrevo alguma poesia em casa, mas essas eu não tenho coragem de mostrar” (DAPIEVE, 2000, p. 80). Ele foi o eixo de um grupo social arrematado por novas tendências de música e comportamento, ainda em formação, que levou às bandas primordiais no cenário do rock nacional e tem relevante papel na consolidação do intertexto poema-canção-cultura na composição de letras como “Eduardo e Mônica”, “Faroeste Caboclo”, “Monte Castelo”, “Geração Coca-cola”, “O teatro dos vampiros”, “Será”, “Tempo Perdido”, dentre tantas outras.

Bachelard (2003, p. 223) cita o trecho de uma carta que Rilke escreveu para Clara Rilke, no qual ele reflete sobre a obra de arte e esse momento de criação: “As obras de arte nascem sempre de quem afrontou o perigo, de quem foi até o extremo de uma experiência, até o ponto que nenhum ser humano pode ultrapassar. Quanto mais longe a levamos, mais nossa, mais pessoal, mais única se torna uma vida”. Rilke provoca a sensação de que a berlinda é o ponto máximo da criação; nessa leitura da ousadia enriquecedora, o poeta ecoa o entendimento de que a ruptura é necessária para a criação de algo novo, único. O autor define como consciência da inquietação do ser uma das fibras de se viver realmente uma imagem poética. Assim é o sentido da interpretação das obras de Renato Russo em sua jornada composicional ao longo de todos os poemas que escreveu, e é com esse espírito que se deve perscrutá-los, a fim de perceber a imagem que esse conjunto evoca e com que temas o poeta erguia o totem de suas inquietações.

 

Referências

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_____. Interpretação e superinterpretação. Tradução Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2.ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

_____. A letra e a voz: A “literatura” medieval. Tradução: Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

Discografia

LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. Emi-Odeon Brasil, 1985.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. Dois. Emi-Odeon Brasil, 1986.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. Que país é este – 1978/1987. Emi-Odeon Brasil, 1987.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. As quatro estações. Emi-Odeon Brasil, 1989.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. V. Emi-Odeon Brasil, 1991.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. Música para acampamentos. Emi-Odeon Brasil, 1992.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. O descobrimento do Brasil. Emi-Odeon Brasil, 1993.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. A tempestade ou O livro dos dias. Emi-Odeon Brasil, 1996.

­­­­­­­­­­­­­­­­_____. Uma outra estação. Emi-Odeon Brasil, 1997.

1 Doutoranda em literatura pelo Programa de Pós-graduação do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, com tese que busca legitimar Renato Russo como um poeta valoroso do rock and roll e da literatura no Brasil, além de singular performer e vocalista da banda Legião Urbana.

2 Esse reconhecimento de Bandeira acerca dos versos de Orestes Barbosa já se tornou emblemático e é aqui registrado pela importância desse aval como um dos alicerces para ressignificar a relação poesia e canção em nossa MPB. Tal memória foi também colhida no livro de Charles Perrone (1988).