Os Pilares da Música Popular Brasileira e Cabo-Verdiana: Modinha, Lundu e Morna
Fabiana Miraz de Freitas Grecco*
Resumo: Trataremos neste artigo de comparações entre a Morna cabo-verdiana e os gêneros poético-musicais brasileiros do século XVIII, a Modinha e o Lundu. A partir da teoria do musicólogo cabo-verdiano Vasco Martins, presente na obra A Música Tradicional Cabo-Verdiana (1988) delinearemos o percurso que teria sofrido a Morna desde seu primeiro registro no século XVIII, discutindo os possíveis traços em comum entre ela e as cantigas populares brasileiras mencionadas. A obra de Martins demonstra que a Morna é o resultado da adaptação do Lundu e da Modinha brasileiros à sociedade mestiça de Cabo Verde.
Palavras-chave: Música Popular; Cabo Verde; Brasil.
Abstract: In this article, we propose comparisons between Cape-Verdean Morna and Brazilian poetic-musical genres from the eighteenth century, Modinha and Lundu. Stemming from the theory put forward by Cape-Verdean musicologist Vasco Martins in his book A Música Tradicional Cabo-Verdiana (1988), we will outline the path of Morna since its first registers in the eighteenth century, discussing the possible common features between it and the aforementioned Brazilian popular songs. Martin's work demonstrates that Morna is an adaptation of the Lundu and of the Modinha within the Cape-Verdean society.
Keywords: Popular Music; Cape Verde; Brazil.
Introdução
Em seus estudos, o músico cabo-verdiano Vasco Martins procura no Lundu e na Modinha brasileiros do século XVIII, especificamente compostos pelo poeta Domingos Caldas Barbosa, a possível origem da Morna cabo-verdiana. Segundo o pesquisador, determinados elementos dos gêneros poético-musicais brasileiros fizeram-se presentes na constituição da morna, principalmente em seu processo evolutivo.
* Fabiana Miraz de Freitas Grecco é Metre pela UNESP/Assis e doutoranda pela mesma instituição, na área de Literatura Comparada (Literaturas de Língua Portuguesa). Recebeu prêmio e menção honrosa pelo projeto desenvolvido durante os anos 2004/2005, intitulado As Modinhas e os Lundus de Domingos Caldas Barbosa (1740- 1800).
A contribuição exercida por Lundus e Modinhas no processo de evolução da Morna estaria, de acordo com o pesquisador, na figura própria do poeta Domingos Caldas Barbosa. A Modinha e o Lundu de Caldas se tornaram muito populares na corte portuguesa do século XVIII e chegaram até o arquipélago, por meio da marinhagem (MARTINS, 1988, p. 43- 6).
Associando, dessa maneira, a semelhança entre os gêneros, tanto no que se refere ao seu conteúdo poético quanto aos seus traços melódicos e harmônicos, Martins afirma que é muito provável que a Modinha brasileira de Caldas Barbosa, devido ao seu sucesso e grande repercussão nos finais do século XVIII, tivesse influenciado a origem da Morna (finais do século XVIII e início do século XIX), tida pelo pesquisador como “Morna Preliminar”.
De acordo com Martins, Morna e Modinha apresentam, em comum, muitos pontos musicais, como a harmonia e a tonalidade menor, mas, além disso, é identificável, principalmente, o sentimentalismo amoroso presente no texto poético. Em relação a esse conteúdo poético comum entre a Modinha e a Morna, são caracterizados os desgostos, saudades, cuidados e ciúme.
No que diz respeito à Modinha, o gênero surgiu aproximadamente no segundo quartel do século XVIII, e fez parte de uma época marcada por “uma nova sociabilidade urbana” (MORAIS, 2003, p. 81). Apesar de sua origem ser controversa (ora a literatura sobre o tema afirma ser de origem portuguesa, ora brasileira) o gênero poético-musical em questão percorreu os dois territórios, existindo em ambas as versões.
Nascido provavelmente no Rio de Janeiro no ano de 1740, filho de uma negra angolana e de um reinol português, Domingos Caldas Barbosa foi “poeta, Beneficiado, Capelão da Casa da Suplicação e Bacharel pela Universidade de Coimbra” (MORAIS, 2003, p. 63). Sua vida poética iniciou-se, possivelmente, com a publicação de odes e sonetos dedicados a D. José I, pela ocasião da inauguração de sua estátua equestre.
Por meio da proteção oferecida pelos irmãos Vasconcelos, reinóis influentes da corte de D. Maria I, Caldas conseguiu ingressar na Arcádia de Roma com o pseudônimo Lereno Selinuntino. A partir desse momento, funda, juntamente com Belchior Curvo Semedo, a Academia de Belas Letras ou Nova Arcádia. É com o nome árcade que Caldas publica a sua Viola de Lereno (1798- 1826), compilação de suas melhores Modinhas e improvisos, sendo esse o livro de poemas que o fez ser recordado pela posteridade. O poeta faleceu em 1800, em decorrência de uma doença desconhecida, sendo sepultado em Lisboa.
A respeito do aparecimento da primeira Morna, única que serve como testemunho histórico da existência do gênero em Cabo Verde ainda no século XIX, sabe-se que é conhecida pelo título de Brada Maria. Surgida ainda no século XIX, mais ou menos entre os anos de 1870 e 1900, essa Morna coincidiria com a representação “mais antiga no seu contexto moderno” (Idem). Assim, a única Morna datada do século XIX seria já de concepção moderna, com o uso predominante do violão como acompanhamento e estruturada harmônica e melodicamente mais próxima do que se verifica nas Mornas do século XX.
A Morna ganha mais popularidade, além de registro e poemas repletos de um lirismo particularmente amoroso, com o poeta Eugénio Tavares. Nascido na ilha Brava em 1867 e morrendo no mesmo local no ano de 1930, Eugénio de Paula Tavares foi jornalista, poeta e trovador. De acordo com Antônio Carlos Oliveira Santos (2007), Tavares desempenhou um importante papel como intelectual no arquipélago, lutando, como “orador e jornalista”, contra os “interesses da elite econômica e administrativa local” (Idem). Suas Mornas são o que mais se destaca na sua produção como escritor/poeta por demonstrar a sintonia entre “as solicitações profundas do seu mundo pessoal” e o “sentimento colectivo” (TAVARES, 1969, p. 11).
Desse modo, Eugénio Tavares, como Caldas Barbosa, teve sua figura erigida juntamente com a construção da história daquele gênero. Ou seja, a sua importância deveu-se, assim como Caldas, ao registro e à composição de cantigas que ressaltavam as características mais particulares da época colonial, como a língua cabo-verdiana e o português brasileiro, que se diferenciavam da língua portuguesa da metrópole e à maneira de expressar o tema amoroso, marcando a diferença entre sua poesia e a poesia portuguesa. Essa nova expressão do amor em poesia também está relacionada ao povo, aos homens e mulheres dotados de uma inconfundível morabeza1.
A Modinha brasileira do século XVIII, especificamente de Domingos Caldas Barbosa, ganha neste estudo uma nova abordagem, não mais voltada ao estudo sobre o exotismo brasileiro ou neoclassicismo, mas centrada na sua infiltração em um ambiente onde raramente foi explorada: a sociedade cabo-verdiana do século XIX. Isso ressalta o encontro cultural entre as colônias portuguesas não somente sob a ótica da colonização portuguesa comum, mas também problematizando o que esse encontro compartilha e renova na formação de uma nova expressão poética e musical.
As Modinhas e os Lundus: Histórias e Fontes
A partir da segunda metade do século XVIII, tanto em Portugal quanto no Brasil, difundiu-se um gênero musical denominado Modinha, cujo nome provém do diminutivo de Moda, sinônimo de Cantigas ou “coplas de versos menores para se cantar” (MORAIS, 2003, p. 32). Tais coplas eram compostas por quatro versos (quadras), com esquema rimático simples como aba e que poderiam ser seguidas de refrão.
O surgimento desse novo gênero coincidiu com o aparecimento de uma nova sociabilidade urbana, advinda do poder econômico das classes médias citadinas, que concorriam, de acordo com Ruy Vieira Nery, com “os circuitos tradicionais da Corte e da Igreja” na aquisição de instrução básica, literatura, música e demais atividades artísticas e culturais, visto que foi um fenômeno que abarcou toda a Europa (NERY, 2000, p. 09). Além de modificar o quadro de aquisição de cultura, antes restrito à Corte e à Igreja, durante o neoclassicismo a concepção de obra de arte também foi infiltrada pela nova realidade, calcada no mercado crescente que demandava maior acessibilidade cultural.
Ainda, o desenvolvimento dessa nova cultura urbana, em Portugal e no Brasil, acresceu-se, segundo Nery, de dois fatores enriquecedores: a circulação comercial de visitantes estrangeiros, com seus costumes, que traziam as modas culturais de diferentes centros da Europa, e a grande quantidade de negros africanos de diversas etnias com suas danças e cantos, estruturando um novo quadro, constituído pela diversidade cultural e por suas interrelações.
O tema das Modinhas é fortemente marcado pelo amor, que não é mais cortês, mas sensual e por muitas vezes erótico. As mulheres nelas retratadas são reais, muitas vezes se faziam presentes nos saraus e assembleias realizadas em casas de campo de condes e marqueses, onde eram costumeiros os improvisos, porém ainda eram disfarçadas pela convenção árcade, assim, recebendo nomes de pastoras (Albena, Amira, entre outros). Já no que diz respeito a sua estrutura musical, na Modinha predomina o compasso binário simples, tonalidade, preferencialmente, de sol maior, com andamentos que variam entre Andante, Allegro e Affectuoso.
Enquanto a Modinha teve, possivelmente, origem nas árias de corte italianas e austríacas, marcando a sua descendência erudita, o Lundu, originou-se, de acordo com Mário de Andrade (1980, p. 06), do batuque africano, que possuía características ritualísticas, de dança aos pares, de umbigadas, e que somente atinge a corte e a burguesia quando perde a sua raiz coreográfica e instrumental, passando a ser cantado. Reforça-se, desse modo, a penetração de uma classe social na outra, de uma cultura na outra, fazendo com que ambos os gêneros coexistissem nos diversos níveis sociais da época. Esse processo de interação social ou intercâmbio verifica-se em Mozart de Araújo: “A Modinha se deslocava de seu ambiente cortesão para se democratizar, enquanto o Lundu se insinuava nos salões reinóis, despindo-se da sua condição de dança chula e lasciva e se tornando canção de gente branca” (Ibidem, p. 13).
Quanto à temática do Lundu, encontra-se na mulata, no cativo ou no moleque, o principal objeto a ser retratado. Todavia, a partir do século XIX, o Lundu é usado como cantiga de sátira à sociedade, como verificadas em “Fora o Regresso”, de José Maurício Nunes Garcia (1844), ou para tratar de temas considerados obscenos, como “A marrequinha de iaiá” de Francisco Manuel da Silva e Paula Brito (1853). A partir dos últimos decênios do século XIX e início do XX, o Lundu infiltra-se no circo, assumindo ainda mais suas características de deboche e irreverência. A veia satírica do Lundu, surgida no século XIX é, para Mário de Andrade e Mozart de Araújo, o que vai torná-lo nacional:
Só nos albores do século XIX o Lundu assumiria o seu caráter definitivo de canção satírica ou de dança sensual, com o qual iria atravessar todo o século. Só nos primeiros anos do século XIX, como observou Mário de Andrade, o Lundu adquiriria no Brasil, foros de nacionalidade (Ibidem, p. 24).
Quanto ao conteúdo musical, de acordo com Edílson de Lima, o Lundu teria “compasso dominante em 2/4, predominância do modo maior, o fraseado obedece à quadratura construída por fragmentos melódicos curtos, a quase onipresença da síncopa interna (semicolcheia – colcheia – semicolcheia), o esquema formal é variado” (2001, p. 50).
No entanto, os Lundus de Caldas Barbosa se distinguem dos demais (tanto Lundus compostos por portugueses, quanto por brasileiros) pela constante presença do tema amoroso, trocando o teor satírico que marca o gênero, pela graça dos elementos inovadores do falar mestiço da colônia, trabalhando, dessa maneira, o tema do amor a partir do lugar ocupado pelo “moleque”, ou o mestiço.
A Modinha e o Lundu estabelecem-se como resultado multiétnico, multicultural e mestiço das grandes cidades portuguesas e brasileiras do final do século XVIII, fazendo-se presente não só nos salões da corte, como também nos diferentes ambientes onde se encontravam os vários estratos sociais existentes na época: desde a Igreja até a criadagem; é comum a presença da Modinha tanto nos conventos, em momentos restritos, quanto nos teatros, na forma de intermezzos, e nas ruas em forma de serenatas.
No cenário de transformações que se apresentou no último quartel do século XVIII, é que se destaca a figura de Domingos Caldas Barbosa, conhecido como o maior representante dos dois gêneros, como consta no testemunho de seu contemporâneo Antonio Ribeiro dos Santos, decorrente de um relato feito a partir de um sarau realizado na casa da Marquesa de Alorna:
Hoje pelo contrario só se ouvem cantigas amorosas de sospiros, de requebros, de namoros refinados, de guarradices, [...] Esta praga he hoje geral, depois que o Caldas começou de pôr em uzo os seus rimances, e de versejar para mulheres [...] a tafularia do amor, a meiguice do Brazil e em geral a molleza americana, que faz o carater de suas trovas, respiraõ os ares voluptuosos de Paphos, e de Cythera... (Apud, MORAIS, 2003, p. 71).
Nesse cenário de transformações e surgimento de novos modos de ser e agir, a sociedade dos finais dos setecentos pôde ver emergir periódicos musicais, como o Jornal de Modinhas (Portugal, 1796 - 1814), Allgemeine musikalische Zeitung (Leipzig, 1798- 1948), Lyra de Apolo Brazileiro (Rio de Janeiro, 1834-?) dentre outros, que contemplavam essa nova classe e suas exigências. A Modinha, desse modo, “converteu-se num dos ingredientes fundamentais da vida musical portuguesa, que os principais compositores de Ópera e Música Sacra da Corte (...) não desdenhavam de cultivar” (NERY, 2000, p. 15).
Tornando-se um dos gêneros favoritos da prática musical tanto na corte, no teatro, quanto no ambiente doméstico das classes burguesas, restringindo-se mais tarde à educação das moças de “boa família”, as partituras das Modinhas passam a ser impressas em jornais e vendidas como é o caso do Jornal de Modinhas e vendidas ao público. Além disso, a existência de inúmeros manuscritos musicais, encontrados na Biblioteca Nacional em Lisboa confirma a popularidade e aceitação unânime do gênero na época.
No Brasil, a Modinha ganharia um estudo substancioso, no que se refere à união do texto musical (partitura) e do texto literário (poemas), somente com a publicação de Mário de Andrade e as suas Modinhas Imperiais (1932). Nesse estudo, Mário agrupa poetas do período colonial brasileiro (Escola Mineira), enaltecendo Domingos Caldas Barbosa como um “modinheiro contumaz”:
Mas, às vezes os poetas bons também eram musicados. Sem insistir sobre o caso famoso do mulato Caldas Barbosa cuja Modinhação contumaz se tornou de citação obrigada pelo muito que fez babar de gozo os reinóis, pode-se dizer que desde os mestres da Escola Mineira até os fins do Romantismo, todos os nossos poetas ilustres foram melodisados em Modinhas. (ANDRADE, 1930, p. 6).
A publicação de Mário torna-se um marco dos estudos da música e poesia popular, pois traz ao público, sob a forma de documentos (textos e partituras), todo um corpus que comprova a existência do gênero ainda no século XIX. Antes dessa compilação, a Modinha e o Lundu faziam parte da literatura tanto de descrição dos costumes dos tempos coloniais quanto da literatura ficcional, ou melhor, como apresenta José Ramos Tinhorão (2000), Modinhas e Lundus faziam-se presentes nos romances brasileiros, de forma ilustrativa.
De acordo com Mozart de Araújo, Mário de Andrade inaugura o estudo e a compilação do gênero, antes somente recolhido em antologias e coletâneas que privilegiavam o texto literário, pois a ele faltava a parte musical, as partituras, exemplo que podemos observar no Florilégio da Poesia Brasileira, na compilação dos textos poéticos das Modinhas de Caldas Barbosa feito por Francisco Adolfo Varnhagen, ainda no século XIX2. Desse modo, a coleta de Mário tornou-se importante por unir música e poesia em uma mesma compilação:
Até 1930, a bibliografia da Modinha era inexistente no Brasil. Até então, a Modinha era tema literário. Em prosa e verso, muitas páginas de antologia se devem ao luar, ao violão, à serenata, à Modinha. Melo Morais Filho, fanático da Modinha e do Lundu, que ele próprio compunha e cantava se acompanhanando ao violão, deixou um bom número de volumes onde encontramos referências históricas que muito auxiliam a pesquisa sobre esses dois gêneros de canção popular. O que recolhemos, porém, desses trabalhos são mais impressões que conclusões, são mais interpretações líricas que investigação musicológica (ARAÚJO, 1963, p. 07).
Dentro desse contexto é notável, portanto, o estreito relacionamento entre música e poesia na passagem do século XVIII para o XIX, e essa transição é marcada, na literatura, pelo chamado pré-romantismo. De acordo com Antonio Candido,
Mas vamos agora deixar de lado temas e sentimentos, para pensar em alguns recursos expressivos e em alguns modos de conceber as obras literárias que influíram diretamente na sua difusão junto ao público. Tomemos para isso um exemplo: a aliança entre poesia e música (...) que levou poemas medianos e mesmo medíocres ao nível de canções encantadoras, inclusive, no caso luso-brasileiro, graças à Modinha. (CANDIDO, 2002, p. 91- 92).
Assim sendo, é notável que “no Brasil a Modinha associou-se de maneira durável à poesia erudita” e que essa “aliança foi uma ponte feliz entre Arcadismo e Romantismo, exprimindo traços que irmanam os dois períodos por cima da ruptura estética” (CANDIDO, 2002, p. 92). Além disso, a popularização da Modinha deveu-se à capacidade de improvisar do poeta brasileiro Domingos Caldas Barbosa “que viveu e morreu em Portugal como uma espécie de mensageiro das coisas do Brasil” (Ibidem).
Mornas: Histórias e Fontes
O arquipélago de Cabo Verde foi descoberto no ano de 1460 pelo navegador português Diogo Gomes e pelo genovês António da Nóli. Ao todo são dez ilhas, cujos nomes devem-se às posições que ocupam em relação aos ventos dominantes na região, chamados alíseos: ilha de Barlavento, ao norte, que compreendem Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista, e as ilhas de Sotavento, ao sul, que compreendem Brava, Fogo, Santiago e Maio3.
A população do arquipélago foi formada a partir da mestiçagem, a princípio, dos colonizadores portugueses (cristãos e judeus) e escravos negros de diversas partes da África, vindos principalmente da costa da Guiné, como consta na Pequena Monografia da Agência Geral do Ultramar, 1970: “portugueses (...) goeses, mas principalmente africanos da costa da Guiné (...) viriam a constituir a actual população cabo-verdiana” (p. 22). Todavia, cada uma das dez ilhas que compõem Cabo Verde, distinguem-se no que diz respeito aos aspectos populacionais, políticos e econômicos, de acordo com Leila Leite Hernandez,
É preciso registrar com clareza, dadas a insularidade e a consequente dispersão geográfica, que são reconhecidas as distinções que marcam o desenvolvimento de Santiago em relação às demais ilhas, as quais, povoadas mais tardiamente e em momentos diferentes, apresentam peculiaridades quanto à forma de ocupação da terra – aí incluindo-se a propriedade da terra, as relações de trabalho e as atividades econômicas – e à própria composição social de cada uma delas. Contudo, cumpre reconhecer que as ilhas também possuem um conjunto de relações comuns que as une; são relações de complementaridade e, por vezes, de reciprocidade, o que lhes permite ser identificadas como partes articuladas de um complexo único de análise. É o que ocorre de forma nítida e significativa entre as ilhas de Santiago e do Fogo (HERNANDEZ, 2002, p. 26-27).
A Morna, canção popular cabo-verdiana, é considerada um fator de identificação entre as ilhas e de união do povo cabo-verdiano. Surgida provavelmente entre os séculos XVIII e XIX, a Morna está presente em todas as ilhas que formam o arquipélago, porém, de acordo com Eugénio Tavares (1932, p. 17), ela seria originária da ilha de Boa Vista.
A língua da Morna é a língua cabo-verdiana, entretanto, não deixa de existir também em língua portuguesa, em quantidade inexpressiva. Por ter sido objeto de estudo e devoção de alguns dos grandes poetas cabo-verdianos como Eugénio Tavares e Pedro Cardoso, por exemplo, a Morna apresenta um lirismo refinado em seus versos, que demonstra a “fragilidade entre a cultura popular e a erudita” (DIAS, 2004, p. 22).
A língua cabo-verdiana, definida por Pedro Cardoso como um amálgama da língua portuguesa da época dos descobrimentos com os diversos dialetos africanos, é revista por Manuel Ferreira, que por sua vez parafraseia Eugénio Tavares, como sendo uma língua criada a partir da língua portuguesa, e que por ter sido “enriquecida” pela mistura, é uma das “transformações felizes” do português:
Temos, portanto, que reagindo o dialecto crioulo de Cabo Verde à absorção por parte da língua mãe se deixa, entretanto, penetrar (forma de enriquecimento) da fortuna vária a que a língua portuguesa está sujeita, como sistemas vivos e dinâmicos que são; e daí que, mantendo os léxicos entre si uma semelhança de estrutura geral são, todavia, diferentes, o que confere ao dialecto uma soberania regional de alto significado étnico e social. O dialecto cabo-verdiano (...) constitui a documentação de uma das transformações felizes da língua portuguesa entre os povos coloniais (FERREIRA, 1973, p. 52).
Devido à importância da língua cabo-verdiana na representação da sensibilidade do povo ilhéu transmitida pela Morna, podemos dizer que acontece com esse gênero o que Ezra Pound (1976), diz ser, em poesia, a melopéia,
na qual as palavras estão carregadas, acima e além de seu significado comum, de alguma qualidade musical que dirige o propósito ou tendência desse significado. (...) A melopéia pode ser apreciada pelo estrangeiro de ouvido sensível, ainda que ignorante da língua em que o poema foi escrito. É praticamente impossível transferi-la ou traduzi-la de uma língua para a outra, a não ser talvez por algum divino acidente, e meio verso de cada vez (POUND, p. 38).
Assim, a tradução das Mornas resulta, de algum modo, em perda do sentido original. A escrita em língua cabo-verdiana contém, de acordo com Eugénio Tavares, o sentimento que mais caracteriza o espírito cabo-verdiano: o amor, pois “o amor é o espírito imortal da vida, a harpa invisível e santa que canta sobre a terra e sobre o mar a eterna canção do pranto e do sorriso” (Ibid, p. 11).
Ainda nesse sentido, vale reproduzir o que Manuel Ferreira diz sobre a linguagem da Morna e o que ela representa para o cabo-verdiano:
na Morna, que não “possui equivalente em português”, considerada nos seus três elementos (poesia, música e dança), que o Cabo-Verdiano encontra o pólo por excelência do seu génio artístico. Nela encontra todas as possibilidades de escape emocional e todos os caminhos do sonho e da fantasia” (FERREIRA, 1985, p. 90).
No entanto, em relação à sua origem, a inexistência de documentação necessária para se provar a possível presença da Morna ainda nos séculos XVII e XVIII, dificulta os estudos que pretendem estabelecer uma fixação para o momento do nascimento do gênero. O fato é marcado por Eugénio Tavares como sendo descaso4 dos governantes para com o folclore e também para com a literatura de Cabo Verde, remetendo ao desprezo dos governantes coloniais:
O folclore destas ilhas não mereceu, nos tempos atraz, cuidados de ser grafado. Pode-se dizer, sem grandes receios de errar, que, nestas ilhas manifestações literárias imereceram sempre a atenção da gente alçapremada às eminências burocráticas, dos que se prezavam e se verticalizavam num aprumo muito de considerar, evitando, cuidadosamente, qualquer convívio com vulgares fazedores de versos... (TAVARES, 1969, p. 18).
Apesar de os estudiosos do gênero, como Vasco Martins e Manuel Ferreira datarem a Morna do final do século XVIII, por faltarem testemunhos históricos, considera-se as primeiras aparições de textos escritos em língua cabo-verdiana nas ilhas com data dos finais do século XIX, resumindo-se em canções populares, ora Mornas ora finaçons, sendo estas líricas ou satíricas. De acordo com Eugénio Tavares, a primeira Morna registrada é de origem boavistense, intitulada Brada Maria, data do final do século XIX e seria a mais antiga que se conhece no Arquipélago.
Decorrente da falta de documentação que comprovasse uma data ou mesmo que fosse capaz de demonstrar qualquer traço da presença de determinados elementos culturais dos países envolvidos na colonização das ilhas na formação do gênero, a origem da Morna é incerta e propicia abertura a diversos vieses, ora partindo da origem na língua francesa, ora inglesa e portuguesa. Todavia, como enfatiza Manuel Ferreira, a Morna
se plasmou na alma crioula e tão de pronto responde aos apelos emocionais do Cabo Verdeano que se nos impõe como criação genuína, embora, como é evidente, lá na sua remota origem possa ter recebido influências várias. (IbidI, 1973, p. 170).
Descobrir a sua origem, tanto no que diz respeito ao momento histórico em que surgiu quanto às adaptações realizadas na sua formação, portanto, é uma tarefa árdua e que pode variar de acordo com cada hipótese já traçada, mas que ainda instiga muitos pesquisadores. Desse modo, pesquisar sobre a origem da Morna é assim como diz Simone Caputo Gomes:
tarefa complexa, que tem envolvido músicos, intelectuais e o cabo-verdiano mais humilde. Alguns destacam-lhe a melancolia da tonalidade menor, base técnico-musical do fado. Eugénio Tavares, por exemplo, compunha suas Mornas numa guitarra portuguesa, que foi sendo aos poucos substituída pelo violão, instrumento mornista por excelência, com seus baixos corridos e acordes de transição. As semelhanças entre fado e Morna podem ser atribuídas ainda à forma musical (africana) originária daquele, o Lundum, assimilado no Brasil e que persiste em Cabo Verde na Ilha da Boavista. Outros, como António Aurélio Gonçalves, buscam a origem da Morna numa melopéia feminina, das cantadeiras, com solista e coro. Vasco Martins ressalva que as origens podem ser nubladas, mas assevera que, “se a Morna evoluiu, deveu-se a influências brasileiras”, especialmente da Modinha, na Ilha da Boavista. Da forma primordial (mais sincopada) à forma de hoje, a viagem da Morna culminou com a sua eleição como canção popular do arquipélago (GOMES, 2008, p. 149).
Uma das hipóteses mais recorrentes quanto à origem da Morna, portanto, é a derivação dos gêneros pilares da música popular brasileira: a Modinha e o Lundu. A semelhança remete tanto ao lirismo de tema acentuadamente amoroso e sentimental quanto as suas características musicais, na sua “invenção melódica popular” (FERREIRA, 1973, p. 203).
Os registros da Morna encontrados no início do século XX, mais acessíveis ao pesquisador5, datam precisamente do ano de 1910. Publicado pela Imprensa Commercial, em Lisboa, o livro de José Bernardo Alfama, intitulado Canções Crioulas e Músicas Populares de Cabo Verde, trata-se de uma compilação de Mornas, as mais conhecidas de Cabo Verde na época. Na “Advertência” do livro, deparamo-nos com a comparação feita pelo autor entre a palavra “morno” e a canção popular Morna. O significado do adjetivo pretendia dar conta das características e da origem do nome daquele gênero poético-musical: “Sem tirar o tic popular – antes procurando imprimir-lhe o morno sabor (seja permitido o termo, visto que se trata de Mornas)... (ALFAMA, 1910, p. 06).
Em 1932, é publicado o livro Mornas – Cantigas Crioulas de Eugénio Tavares, já consagrado como um dos maiores poetas da língua cabo-verdiana. Nessa obra estão publicadas Mornas de “inimitável manancial poético” (MARTINS, 1989, p. 57) e que, enfim, eleva aquele gênero popular ao patamar de “expressão da alma cabo-verdiana” (FERREIRA,1973, 169), além de um estudo a respeito da origem da Morna na Ilha da Boavista. Ainda, a respeito da publicação de Mornas de Eugénio, discorre Luís Manuel de Sousa Peixeira:
Em 1933, Eugénio Tavares, em “Mornas [e] Cantigas Crioulas”, traria um contributo precioso para o estudo das origens da Morna e da sua adaptação às feições psíquicas do povo das diferentes ilhas; assim, se afirmava a origem caboverdiana da Morna e se tentava traçar o seu percurso pelo Arquipélago (Apud: RODRIGUES-SOBRINHO, 2010, p. 149).
Eugénio Tavares, ao mesmo tempo em que ocupava o lugar de intelectual cabo-verdiano, preocupado com as questões referentes à cultura de seu país, desempenhava papel de divulgador da língua nativa, ora falando sobre as questões urgentes da sociedade cabo-verdiana, ora sobre a cultura e a literatura, em publicações dispersas em jornais e revistas (“Cartas Cabo-verdianas”, “Almanaque Luso-Africano”, “Almanaque Lembranças”, “Jornal Voz de Cabo Verde”, “Jornal Popular”, “Revista de Cabo Verde”, “Revista Polichinelo”, “Revista Manduco”, “Revista Futuro de Cabo Verde”). Atuava também como compositor de Mornas em língua crioula, tanto como poeta ao gosto camoniano, escrevendo também em língua portuguesa, atingindo diversos e diferentes públicos.
A Morna de Eugénio apresenta um amalgama das tradições populares com a literatura, amparado pela educação clássica portuguesa. Todavia, em relação ao conteúdo, a sua Morna não expressa os problemas sociais tão caros ao seu povo, mas revela o quotidiano, e é, segundo Benilde Caniatto, “mensageira do crechéu, da morabeza e da saudade”6 (2005, p. 75).
Se a característica principal do cabo-verdiano é a morabeza, o ser amorável, que também é triste, saudosista e melancólico, a Morna é a configuração dessas características psicológicas do povo ilhéu. Com isso, Eugénio Tavares, seu representante máximo, ao escrever as suas Mornas que realizam essa identificação, estabelece e reforça no gênero critérios como os de simplicidade formal/ estrutural, inocência referente a temas que evidenciam a morabeza, a saudade, (e) o drama da partida.
Modinha, Lundu e Morna: Estudos e Comparações
Nos estudos sobre as possíveis origens da Morna, é comum encontrarmos a relação triangular entre Lundu- Modinha- Morna. Para entendermos essa relação, tomaremos como base o estudo de Vasco Martins, A Música Tradicional Cabo-Verdiana I: A Morna (1988). O Lundu, de acordo com Vasco Martins e alguns pesquisadores, seria o ponto de partida para o desenvolvimento da Morna. Nessa obra, Martins segue o caminho do Lundu na Ilha da Boa Vista, para descobrir o possível nascimento da Morna, encontrando em Augusto Casimiro, Ilhas Crioulas, 1935, uma referência que aponta para um antepassado da Morna:
Antes da Morna, e revivendo num ou noutro ponto do arquipélago, como antepassado, cantou-se e dançou-se o Lundum, irmão do vira, e a chama-rita, dança de roda, braços ao alto, em ondas harmoniosas e animadas. (Apud. MARTINS, 1988, p. 40).
Vendo uma possibilidade para desenvolver os estudos sobre a origem da Morna ou, para citar as suas próprias palavras, “um rumo mais ou menos científico ou pelo menos com essa possibilidade” (Ibidem), Martins partiu à busca do Lundum em Cabo Verde. Deparou-se, assim, como um Lundum, ainda ativo, mas que se encontra somente na Ilha da Boa Vista, tendo em Noel Fortes um representante do gênero e seu grande impulsionador.
Todavia, Martins, após rigorosas buscas e coletas sistemáticas, conclui que hoje o Lundum ou landu, como é chamado naquela ilha, é utilizado para cerimônias matrimoniais, fato também mencionado por António Germano Lima em artigo intitulado O Landú:
o canto-dança landú da Ilha da Boavista é uma representação simbólica, de origem ritualista, através da qual os dançantes, a anteceder a primeira noite de núpcias, transportam-se sugestivamente para um jogo sexual, como que a provar para toda a comunidade a virilidade do homem e a fertilidade da mulher (...) Na Boavista, a dança do Landú (badjâ landú) representa um dos pontos mais altos das cerimônias do casamento e o momento mais esperado do baile cerimonial. (LIMA, 2002, p. 179).
No entanto, Martins realizou algumas experiências musicais com os músicos mais antigos e experientes da ilha seguindo o caminho das estruturas musicais do Lundu até a Morna, que propunha “uma lógica dialética de evolução ou pelo menos de transformação rítmica e de acordes”. Tal experiência, realizada por Martins e os músicos boavistenses, trouxe um resultado espantoso: “Um ‘ritenuto’ feito espontâneo pelo próprio músico produziu o esqueleto rítmico e harmónico da Morna, pelo menos a Morna essencial ou primordial” (Ibidem). Assim, Martins conclui que:
Esta experiência, apesar de surpreendente, justificou uma idéia importante: que, de facto, do Lundum até à Morna, havia só o fosso da imaginação musical de um povo, da sua faculdade de dramatização (através da tonalidade menor, mais propícia para um pensamento expressivo relativo à Morna) e, sem dúvida, a diminuição do andamento. (Ibidem).
Mas as incidências da presença brasileira nas pesquisas de Martins não se encontram somente na execução musical do Lundu, como também na performance da dança. Nas recolhas de testemunhos e de busca pelas referências da memória coletiva do povo cabo-verdiano, o pesquisador relata que o mais conhecido dançarino do Lundu da ilha da Boavista teve um professor brasileiro:
José Brito Dias (Monquito), homem já velho mas com uma dinâmica invejável (...) quando quer e sente a necessidade de dançar, dança o Lundum, para que os (...) mais jovens, aprendam, perdurando, assim, em tradição oral inconsciente, o traço de uma forma musical que já foi muito popular (...) No entanto, foi um brasileiro que lhe ensinou a melhor dançar o Landu (...) ensinou o jovem Monquito, que tinha 7 ou 8 anos, um Landu mais sofisticado. (Ibidem).
Para Martins, a presença do Lundu na formação da Morna é indiscutível, porém, com o atrofiamento desse gênero em Cabo Verde (passou a se executado somente em casamentos), resume-se a “só um traço melódico” (Ibidem, p. 50). Assim, a Morna teria sua origem no Lundu e sua evolução a partir da Modinha, ou seja:
O Landú atrofiou-se, chamemos-lhe, assim, e hoje em dia resume-se a um só traço melódico, como foi apontado (...) A harmonia seria simples e essencial, baseada na tónica e dominante. Esta Morna Primordial perdeu-se, é claro, com a evolução constante da Morna posterior, evolução essa devida talvez à Modinha (Ibidem).
Dessa forma, Martins estabelece que a Morna, na sua origem (Morna Primordial) seria derivada do Lundu, sua estrutura básica teria se formado a partir dele. No entanto, quanto à sua evolução e ao desenvolvimento de temáticas, (visto que o Lundu apresentava temática única de música específica para casamentos), estaria a Morna mais próxima da Modinha Brasileira, pois:
A Modinha adapta-se à idiossincrasia cabo-verdiana, generalizada por uma aptidão à melancolia, à saudade, à realidade de uma existência que, embora diversas vezes saudável, era impregnada por uma tristeza inerente à personalidade do cabo-verdiano (Ibidem, p. 51).
A Morna, de acordo com Martins teria, então, origem e evolução a partir das canções brasileiras tidas, por Mozart de Araújo como os “pilares da música popular brasileira: a Modinha e o Lundu” (ARAUJO, 1963). Apesar de obscura, a origem da Morna, segundo o pesquisador, estaria associada a esses dois gêneros, pois, além dos fatores históricos, existem aproximações em relação aos seus aspectos formais (melodia, harmonia, síncope), a semelhança entre o conteúdo poético e, ainda, na origem da palavra Morna:
Assim, e cronologicamente, é a Modinha a forma musical que poderá ter influenciado a Morna nos seus primórdios. A palavra Modinha, que é o diminutivo de Moda – canção popular tradicional - , poderá, sem grandes esforços, adaptar-se a uma caracterização definida pela palavra cabo-verdiana Morna através de uma versatilidade imaginativa muito comum às ilhas de Cabo Verde. (...) A Modinha que deve ter viajado para Cabo Verde através das tripulações dos diversos navios que fundeavam nos portos, foi assimilada rapidamente pelos músicos autóctones, já que existia uma forma primordial provinda, como se disse, do Landu. (Ibidem, p. 50- 51).
A simplicidade das Modinhas brasileiras teria influenciado, concretamente, a Morna em sua formação, que, apesar de apresentar considerável complexidade, no que se refere ao seu “esqueleto”, revela uma estrutura baseada na “música erudita européia” (Ibidem, p. 17). No entanto, vale ressaltar que Martins enfatiza que a Morna de que fala quando a compara à Modinha brasileira e à temática amorosa, é especificamente a Morna Bravense de Eugénio Tavares: “Este conteúdo poético, como se pode notar de forma generalizada, é muito semelhante à Morna “bravense” do princípio deste século, sobretudo em Eugénio Tavares (Ibidem, p. 51).
Manuel Ferreira em A Aventura Crioula, 1973, expõe a opinião de Lopes Graça, o qual admite na Morna a presença da Modinha portuguesa, e não brasileira, fato que pode ser explicado pelo fato de o pesquisador não ter-se dedicado à busca pela origem da Morna, assim, não percebendo que o grande divulgador do gênero em Portugal fora Caldas Babosa, que dominou durante o século XVIII o cenário poético-musical português:
Lopes Graça, em conversa recente e cuidadosamente ressalvando o facto de ainda não lhe ter sido dado o ensejo de estudar o assunto, deixando no entanto a esperança de que o venha a fazer, confessou-nos ser impressão sua de que a origem da Morna estaria nas Modinhas portuguesas do século XVIII. (FERREIRA, 1973, p. 202).
De acordo com Fausto Duarte, na conferência de abertura da 1ª Exposição Colonial Portuguesa, de 1934, a semelhança entre os gêneros, verifica-se na “vibração de certas Modinhas ingênuas das caboclas do Brasil, que se verificam nos gestos coleantes, na flexibilidade dos rins e no maneio das ancas (DUARTE, 1934, p. 14). Por sua vez, o estudioso brasileiro Osvaldo de Sousa, propõe que a origem da Morna aproxima-se da invenção popular da Modinha brasileira, agora não do século XVIII, mas sim do século XIX, período no qual o romantismo já teria sido completamente introduzido no texto da Modinha.
Manuel Ferreira conclui que, apesar do que ocorre com as semelhanças das cantigas brasileira e cabo-verdiana, esse é um fenômeno de paralelismo ou de difusão de um centro comum: a união nas colônias de Portugal e África:
A verdade é que se influência ocorreu, e tudo se encaminha para chegarmos a tal conclusão, a deveremos ir buscar à Modinha portuguesa do século XVIII e não à Modinha brasileira do século XIX. É uma tendência apetecível em que muitos resvalam, esta de se ser tentado a responsabilizar o Brasil por fenômenos de aculturação ocorridos em Cabo Verde similares de outros observados nas terras de Vera Cruz. A verdade é que, por via de regra, estaremos diante de um fenômeno de paralelismo ou mais vulgarmente de difusão de um centro comum: Portugal ou África ou, simplesmente, ambos, de onde partiriam os colonos. (Idem, p. 203).
Ainda, lembrando as mais recentes considerações quanto às semelhanças entre Modinha e Morna, no tocante à simplicidade, temos em Percursos pela África e por Macau (2005) de Benilde Caniato outro exemplo:
Fausto Duarte viu semelhança entre a Morna e a “vibração de certas Modinhas ingênuas de caboclos do Brasil”, opinião reforçada pelo folclorista Oswaldo de Sousa. A propósito da Modinha, o nosso Mário de Andrade nota que é necessário considerar a reciprocidade de influências. O Brasil deu musicalmente muito a Portugal, inclusive o fado. “Provavelmente lhe demos a Modinha também”, diz ele. E acrescenta que a Modinha brasileira, como era chamada em Portugal, preferida de viajantes como de reinóis, alcançou muito sucesso em Portugal. A musicóloga Oneida Alvarenga observa ser a Modinha brasileira de origem estrangeira, aqui aculturada. Acrescenta ser a música de recursos simples ou mesmo rudimentares, já conhecida da corte de Lisboa em 1775. Nesta simplicidade assemelha-se à Morna (CANIATO, 2005, p. 72).
Após a independência de Cabo Verde, portanto, a Morna receberia novas abordagens, como é o caso da escritura de autoria feminina. Na obra intitulada Mornas eram as noites (1994), que reúne os contos da escritora e poeta Dina Salústio (1º Prémio de Literatura Infanto-juvenil de Cabo Verde e 3º Prémio em Literatura Infanto-Juvenil dos PALOP), Simone Caputo Gomes flagra uma nova leitura do gênero, distante da visão masculina e que entra em contraponto aos conceitos de arte, cultura e beleza clássicas, antes vistos no conto de Manuel Lopes:
Entendendo a Morna como música de identidade, o título do livro, “Mornas eram as noites”, (...) aliando identidade nacional e identidade de gênero. Vale lembrar que a Morna denominada “preliminar” era cantada apenas por mulheres, com solista e coro femininos.
O metaconto “Álcool na Noite”, ao focalizar o tema do vício das mulheres com lentes também femininas, revisita a estrutura musical da Morna preliminar. (GOMES, 2008, p. 154- 155).
Assim, o modo de cantar a Morna preliminar, aquela que, segundo Vasco Martins (1988), tinha em sua evolução reminiscências das Modinhas brasileiras, se compunha de duas vozes femininas e um instrumento de cordas (guitarra portuguesa ou viola) é representado no conto de Dina Salústio. No meta-conto, Álcool na Noite, a autora resgata, de acordo com Simone C. Gomes, esse momento de audição de uma Morna, ecoando a sua forma preliminar:
De lá das bandas do cemitério uma voz canta uma Morna. Tudo normal se a voz não parecesse sair dos intestinos de algum bicho em vez de uma garganta humana, por muito desafinada que fosse. Era uma mulher, reconheci com mais cuidado. Aliás, eram as vozes de duas mulheres. A segunda faz coro com obscenidades e a desarmonia, o desleixo transparecido e o despudor agridem os ouvidos. [...] Retomam a Morna interrompida. Ó mar, Ó mar! (SALÚSTIO, 1999, p. 56- 57).
Considerações Finais
Traçando um panorama referente à origem da Morna como derivação do Lundu e da Modinha brasileiros e tomando como base o estudo do maestro e musicólogo cabo-verdiano Vasco Martins, pudemos visualizar o caminho percorrido pela Morna, e quais foram os elementos dos gêneros brasileiros que participaram da sua construção. Desse modo, é possível acreditar que o Lundu, contribuiu para a sua estruturação musical (“Morna preliminar”), para formar o esqueleto da Morna (“fase de gestação”), ao passo que a Modinha contribuiu, com maior força, em seu desenvolvimento, com uma temática mais versátil, mas vincada na “dramatização de sentimentos”, na qual o amor prevalece como tema central, mas abrindo um leque de possibilidades para representá-lo.
Referências
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1 Na língua crioula significa amorosidade.
2 Ver Referências Bibliográficas.
3 Ver CANIATO, Benilde Justo. Língua de Cultura em Cabo Verde. In: _____________. Percursos pela África e por Macau. Cotia: Ateliê Editorial, 2005.
4 A esse respeito, o advogado, editor, diretor e proprietário do jornal O Eco de Cabo Verde, escreveu no dia 15 de julho de 1933, sobre o “Cabo Verde desprezado”: “Há algum tempo a esta parte, com certa insistência, Cabo Verde tem sido votado ao ostracismo, esquecido, omitido, não sabemos com que propósito, quando se têm feito na Imprensa referências às Colônias Portuguesas, como se se ele não fizesse parte integrante das mesmas, ocupando galhardamente entre os seus irmãos o lugar que lhe compete, há mais de quatro séculos” (PINA, 1933, p. 01).
5 As publicações mais antigas que encontramos sobre a morna na Biblioteca Nacional, em Lisboa, foram a publicação de José Bernardo Alfama (1910), que foi adquirida mediante cópia do original, assim como a primeira edição de Mornas - Cantigas Crioulas (1ª Edição de 1932) de Eugénio Tavares.
6 Respectivamente amor e amorosidade.