Coração Sanfona: análise de "Tipo um Baião", de Chico Buarque
João de Carvalho1
jocarv1984@yahoo.com.br
Resumo: Neste trabalho analisaremos a canção “Tipo um Baião”, de Chico Buarque, lançada em 2011. Para tal, utilizaremos como base teórica os conceitos de compatibilidade entre letra e melodia formulados por Luiz Tatit. Localizaremos, também, referências intertextuais, como, por exemplo, a que acontece entre esta canção e a obra “Olha pro Céu”, de Luiz Gonzaga.
Palavras-chave: Chico Buarque; Relações entre letra e música; Referências Intertextuais.
Abstract: In this paper we're going to analyse Chico Buarque's song “Tipo um Baião”, released in 2011, using theoretical tools such as Luiz Tatit's concept of lyrics-melody compatibility. Intertextual references will also be pointed out, e.g., the one which occurs between this song and Luiz Gonzaga's “Olha pro céu”.
Keywords: Chico Buarque; Relations between lyrics and music; Intertextual References.
Introdução
O presente artigo apresenta uma análise detalhada da canção “Tipo um Baião”, de Chico Buarque, e evidencia o elevado grau que o artesanato cancional do compositor alcançou em sua mais recente fase criativa.
Para a análise da canção, utilizamo-nos dos conceitos de compatibilidade entre letra e melodia formulados por Luiz Tatit, do conceito de melopeia proposto por Ezra Pound, do estudo de fonologia referente à classificação das consoantes, e de análises harmônicas. Optamos por apresentar a canção momento a momento, evidenciando todos os aspectos significativos que possam despertar a sensibilidade do ouvinte durante a escuta da obra.
Análise
A quarta faixa do álbum Chico, lançado em 2011, pela Biscoito Fino, se inicia com uma introdução composta de movimentos melódicos cromáticos de quatro notas ascendentes que pontuam, na entrada dos dois primeiros compassos, o acorde de Lá menor com as dissonâncias de nona e décima primeira, dissonâncias estas que preparam, respectivamente, a quinta e a tônica dos acordes subsequentes (E7/9- e D7/9). Ao final do segundo compasso da introdução, a voz de Chico Buarque aparece entoando a mesma melodia cromática ascendente, dizendo a primeira frase do texto da canção: “não sei pra que”.
Fig.1 – Análise da introdução
O andamento deste primeiro momento da canção é lento; sua textura é rarefeita, sendo preenchida principalmente nos tempos fortes pelo arranjo instrumental, o que contribui para uma atmosfera de recitativo, em que o cantor pode contar livremente o que for de seu desejo. A figurativização2 da fala é marcante neste primeiro momento (Fig.2):
Fig.2 – Análise de compatibilidade do primeiro fragmento, primeira seção.
Como é típico das canções passionais3, o texto apresenta ao mesmo tempo a situação de um ‘descompasso’ entre os personagens e uma busca por harmonizar esse desequilíbrio, e a composição melódica é pouco reiterativa e tende à lentidão. Desta maneira, o discurso da canção ganha ‘credibilidade’ e o autor apresenta o conflito central de sua trama. O personagem se vê envolvido em uma indesejada “outra história de amor”, porém o motivo desse “não-desejo” nos é ocultado parcialmente; apenas se sugere que a “hora” em que este romance aparece não é conveniente.
Fig.3 – Análise de compatibilidade do segundo fragmento, primeira seção.
Ao contrário do emissor, sua interlocutora não encontra impedimentos para essa “história de amor” e está com vontade de “se jogar de cara num romance assim tipo pra vida inteira”. É interessante perceber como a imprecisão da frase da personagem feminina, captada por quem canta, ou melhor, como a ambiguidade desta frase, causa uma espécie de transtorno no emissor. O manuscrito da letra revela como a imprecisão da fala, ou do canto, é registrada pelo autor4 por meio da supressão da vírgula da última frase, gerando a seguinte dúvida: a vontade é de se jogar de cara em um romance como este, para a vida inteira, ou a vontade é de se jogar de cara, com se fosse para a vida inteira, num romance. Essa dúvida é enfatizada pela terminação da frase de maneira ascendente.
A harmonia que conduz toda essa primeira seção é coerente com os afetos e intenções da canção. O canto sai da tonalidade de Lá menor5, proposta pela introdução, e entra na tonalidade de Si bemol. Chico compõe para essa primeira parte uma harmonia ambígua, rica em empréstimos modais, eixos de mediante e acordes de apogiatura.
O plano harmônico, assim como o melódico, parece buscar algo, oscilando entre uma perspectiva maior e uma menor da tonalidade de Si bemol, até cadenciar no acorde de sétimo grau do modo menor6.
Os próximos compassos da canção rompem abruptamente com a textura, com o ritmo (harmônico e melódico) e com o próprio centro tonal que havia se estabelecido. Apesar do andamento da música se manter inalterado durante todas as partes da canção, existe uma evidente compressão rítmica7, o que dá a sensação de aceleração da obra.
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Fig.6 – Rompimento rítmico da segunda seção.
Essa compressão rítmica é uma consequência direta da tensão criada momentos antes pela fala imprecisa da personagem feminina. Como já foi descrito, esse desejo ambíguo da interlocutora – ambíguo, seja pela própria natureza do sentimento ou pela ineficiência em sua comunicação – provoca um surto de ansiedade no personagem que canta, causando-lhe uma euforia acompanhada de gagueira8. Essa gagueira, ocasionada pela referida tensão psicológica, é figurativizada pela contração rítmica apontada, e pelos contornos melódicos reiterantes que compõem a seção.
Fig.7 – Análise de compatibilidade da segunda seção: figurativização de gagueira.
Tal como uma gagueira que “enrosca” a mensagem por algumas vezes até que a dispara integralmente, essa nova seção da música tenta dizer algo e por três vezes se frustra. Somente na quarta tentativa vem a frase “correta” (Fig.7), porém cada tentativa frustrada revela muito mais do que somente a ansiedade mencionada anteriormente; ocorre nessa gagueira uma espécie de “ato falho”, em que o autor deixa entrever alguns significados complementares que caracterizam seu estado emocional.
O personagem aqui não sabe algo, porém sabe que não é capaz de saber precisamente pelo motivo de estar vivendo aquele início de romance em que não se pode dizer com certeza sobre quem é o outro, sobre quem é si mesmo e muito menos sobre o que será dos dois. Essas dúvidas, reveladas nas entrelinhas de um ‘ato falho’, finalmente dão lugar à frase “não sei por que somente agora você vem...”. Essa frase reforça que o grande impedimento para a comunhão deste romance se deve ao tempo em que ele demorou a chegar.
O efeito de euforia, e consequente “gagueira”, é refletido também na aceleração do ritmo harmônico da canção. Como a harmonia original da canção é toda rebuscada e preenche todos os ‘espaços dos tempos’9 com acordes de preparação e modulações inusitadas, não fica nítida a aceleração harmônica que ocorre entre a primeira e a segunda parte. Porém, se reduzirmos a harmonia ao papel de simples acompanhamento, e procurarmos quais os acordes básicos que caracterizam os movimentos tonais intrínsecos à melodia, resultará disso um esqueleto harmônico de somente dois acordes. Podemos perceber assim, como nos mostra a Fig.8, que o ritmo harmônico dobra de andamento na segunda parte da canção.
Fig.8 – Re-harmonização simplificada das duas primeiras partes.
Se por um lado, na primeira seção da obra, a harmonia flutuou entre as perspectivas maiores e menores do tom de Si bemol, até cadenciar em um Lá bemol maior, já na segunda seção o compositor “congela” a harmonia nos acordes de Lá menor com sétima e Ré com sétima e nona. Notemos então que a harmonia acelera sua pulsação ao mesmo tempo que amplifica a redundância de seus eixos. Isso reforça nossa percepção de que todos os elementos desse trecho da canção seguem enfatizando a relação estabelecida entre a euforia e a gagueira que se inscrevem na fala do personagem:
Fig.9 – Relações da segunda seção.
Mas a frase que conclui essa “comprimida10” da canção finaliza-se já no território da próxima seção da obra. A palavra “vem” traz consigo uma vírgula em vez de um ponto final, e o que se segue a essa vírgula é uma re-exposição da primeira parte, porém agora transposta meio tom acima e reduzida à duração de quatro compassos.
Fig.10 – Análise de compatibilidade da terceira seção.
A compatibilidade entre letra e música da primeira seção foi inequívoca, pois tínhamos uma melodia e uma harmonia que pareciam “buscar algo” enquanto o texto expunha um conflito amoroso, ou nos termos da semiótica tensiva11, uma disjunção que aspirava a uma conjunção, o que é típico da compatibilidade conhecida por passionalização.
Apesar de termos, na seção C, uma re-exposição variada da melodia e da harmonia da seção A, esta parece se aproximar da conjunção desejada no início da canção. Isso fica claro nos versos “você vem pra enfeitar minha vida” e “diz que será tipo festa sem fim”. Também a harmonia, apesar de ainda manter a relação ambígua entre os modos maior e menor, se apresenta de maneira muito mais estável do que na primeira seção.
Fig.11 – Análise harmônica das seções “A” e “C”.
A passionalização que aqui se desenha, então, é muito menos acentuada do que na primeira parte. Neste momento ela aparece estando a um passo da conjunção esperada desde o início da obra. A modulação abrupta que eleva em meio tom12 o centro harmônico enfatiza ainda mais essa questão, pois gera um corte na atmosfera harmônica que havia se estabelecido e recicla a atenção para novos afetos que possam ser apresentados.
Convém frisar que esse corte possui uma força expressiva notável13, e isso acontece justamente porque ele promove uma ruptura ao retomar algumas características da primeira parte da canção – nos aspectos referentes aos elementos da melodia, ritmo, textura, letra e encadeamento harmônico – e concomitantemente rompe de maneira inusitada com o centro harmônico que havia se estabelecido. Em outras palavras, esse procedimento composicional complexo gera um efeito/afeto de “retorno a um lugar que já não é mais o mesmo”. É como se o narrador, após ter revelado certo descontrole emocional, recuperasse o domínio de sua fala e de seus sentimentos, e começasse, a partir de então, a perceber a potência positiva das coisas, com a esperança de que algo pudesse ser realmente bom nessa “nova história de amor”.
Logo após essa tendência à estabilidade haver se manifestado, o que dura somente quatro compassos, ela reaparece ratificada musicalmente pelos elementos harmônicos, rítmicos e melódicos contidos na seção subsequente. Vejamos como os elementos melódicos se equilibram entre as forças de tematização e passionalização:
Fig.12 – Análise de compatibilidade da quarta seção.
Esse é o primeiro momento da canção em que a melodia se repete integralmente, e ainda, essa melodia que é apresentada aqui possui um ritmo consideravelmente mais regular do que nas seções anteriores, além de se manter no registro mais agudo da tessitura. A condução rítmica do acompanhamento, tal como a rítmica da melodia, também se estabiliza e assume os padrões característicos do baião, o que naturalmente acentua os estímulos somáticos corporais e nos conduz a um estado mais próximo da excitação do /fazer/ temático do que da introspecção do conflito do /ser/ passional. Esses elementos são suficientemente marcantes para considerarmos, ainda que não haja repetição da letra, esta nova parte como o “refrão” da música.
Durante todo o refrão aparecem situações de conflito entre o desejo de se entregar ao amor e o receio dos perigos que ele encerra. Os processos de passionalização e tematização se equilibram de maneira muito particular neste momento da canção, e engendram desta forma este afeto ambíguo ‘de prazer e de dor’.
Depois de oscilar entre os tons de Si bemol maior, Si bemol menor, Si maior e Si menor, a harmonia finalmente encontra estabilidade no tom de Ré maior, que aparece no refrão. Notemos que até mesmo a transição para este novo tom é muito mais tranquila do que as modulações abruptas que ocorreram até aqui, pois a passagem se dá entre os tons de Si menor, última perspectiva tonal que havia se insinuado, e Ré maior, seu terceiro grau – relativo maior.
Apesar do tratamento da harmonia ainda manter as dissonâncias e a sofisticação típicas do estilo composicional de Chico Buarque, podemos perceber que toda esta seção oscila somente entre as funções básicas de afastamento, tensão e repouso. A sequência destas perspectivas tonais básicas, da maneira como é apresentada, configura um padrão de condução da harmonia muito utilizado pelo baião14. Assim, “Tipo um Baião”, além de se inserir de forma orgânica no repertório do cancioneiro brasileiro, parece estabelecer um rico diálogo com a obra de Luiz Gonzaga.
Fig.13 – Re-harmonização simplificada do refrão.
Chama a atenção um curioso diálogo que este refrão estabelece, no âmbito da letra, com a clássica “marcha joanina”15 “Olha Pro Céu”. Os versos “olha praquele balão multicor / que lá no céu vai sumindo”, da canção de Luiz Gonzaga, balizam o refrão de Chico nas expressões “vejo tremeluzir seu vestido através da fogueira” e “o seu vulto a sumir (...) na ladeira”, respectivamente.
O encantamento pela luz que o fogo projeta sobre o tecido colorido, e o sutil desamparo de quem fica parado vendo o objeto de contemplação partir... Novamente o conflito entre o desejo e o medo dos perigos de se entregar a ele perpassam todos os níveis de elaboração da obra.
Todas as outras partes da canção mantinham uma narrativa em que era possível imaginar uma conversa real, onde o personagem masculino expõe considerações sobre o relacionamento para o seu par feminino, de maneira clara e linear. Imaginamos durante as três primeiras partes da canção um tempo real, vivido pelos personagens naquele instante. O que acontece no refrão é algo que rompe com a narrativa linear16 dos eventos e instaura uma atmosfera “de sonho”. Logo após a interlocutora dizer que o romance seria “tipo festa sem fim” o enunciador cai em devaneio17 e se perde imaginando-se em duas possíveis “festas sem fim”. Porém, nesse sonho de São João e de Carnaval existe sempre algum impedimento por trás da alegria que caracteriza uma festa. Os versos “vejo tremeluzir seu vestido através da fogueira” e “o seu vulto a sumir, entre mil abadas, na ladeira” trazem dentro de si a ideia da distância física entre os personagens. Simbolicamente, para o enunciador, viver este romance significa conviver para sempre com o sentimento de distância e com a tensão constante do afastamento; do fim. É a contradição que há em viver eternamente o sentimento de que nada é eterno.
Antes de prosseguirmos, convém fazer menção ao belo artesanato “melopaico” da obra. Toda a sonoridade da letra é amarrada através de jogos de aliterações e rimas que costuram e embelezam os significados do texto. Tal como o que ocorre com o aspecto harmônico, que tomaria todo o corpo deste artigo para ser exaltado e analisado, a sonoridade do texto da canção é extremamente rica em estímulos e por si só já valeria todo um estudo detalhado. Ao escutarmos essa canção com a sensibilidade voltada para essas ‘micro-sonoridades’ que engendram a palavra, somos surpreendidos, durante todo o tempo, pela descoberta de verdadeiras preciosidades.
Porém, esse artesanato é típico do estilo do autor e se manifesta na maior parte de suas canções. Logo, para o que estamos nos propondo, seria desnecessário ficar registrando todos os momentos em que ele aparece. Ainda assim, convém apontar ao menos os momentos em que há uma conjunção entre a técnica empregada e o significado que direciona o sentido geral dessa obra em específico.
Tomemos como exemplo o verso “vejo tremeluzir seu vestido através da fogueira”. Este verso parece suscitar na mente de quem o escuta, em decorrência do uso criativo das sonoridades contidas nas palavras e a consequente associação entre estes sons e o que está sendo descrito por meio deles, a imagem de três elementos que se relacionam perfeitamente com a cena descrita. Temos, em primeiro lugar, os estalos produzidos pela fogueira, sugeridos pela associação onomatopaica com os /tr/. Em segundo, a imagem da luz gerada pelo fogo, através da associação com as sibilações do /s/ e do /z/. E em terceiro, a fluidez do movimento da saia associada ao ar que vaza dos dois /v/.
Após esse baião de oito compassos que se manifesta na festa do refrão, existe um retorno completo da estrutura musical que fora apresentada até aqui. Voltamos ao tom de Si bemol, que oscila entre sua perspectiva maior e menor, e ao clima declamatório da rítmica melódica que caracterizou a primeira seção da obra.
O texto desta nova parte inicia-se com uma outra questão que será desenvolvida. Se por um lado, durante toda a primeira parte da canção,18 existiu o desenvolvimento das tensões positivas e negativas que envolvem esse relacionamento, nesta segunda parte o enunciador desenvolve este conflito sob uma outra perspectiva.
O narrador inicia esta nova parte com os versos “Não sei pra que / fui cantar pra você a essa hora / logo você / que ignora o baião”. Com isto, é como se o enunciador dissesse que toda a metáfora que ele teceu no refrão, citando até mesmo Luiz Gonzaga, tivesse sido em vão, pois sua interlocutora ignora as referências que apoiaram simbolicamente seu devaneio e assim fica impossibilitada de compreender os dramas que a afligem. Vale lembrar que, tal como na primeira parte da canção, tudo isso é dito sobre um perfil melódico com tendência passional e que faz brotar a fala dentro do canto. Este efeito, conhecido como figurativização, se dá por causa da rítmica irregular, da confluência dos tonemas e do uso constante de vocativos e expressões que “presentificam” a fala (ex.: “a essa hora”).
E o canto continua, dizendo: “Porém você tipo me adora mesmo assim / meio Mané, por fora”. Ou seja, o fato de a personagem feminina “adorar” quem está cantando já serve de justificativa para se continuar cantando, mesmo que isso possa fazer o enunciador parecer “meio Mané”.
Mas, assim como a fala imprecisa da enunciatária, que se utiliza de maneira ‘viciada’ da gíria “tipo”, provocou um ataque inesperado de euforia e ansiedade na primeira parte da canção, esta última frase (que percebemos ser um recorte feito sobre a fala da personagem feminina) também carrega um alto grau de ambiguidade que irá disparar a mesma ‘crise’. Ao dizer “meio Mané, por fora” não podemos saber ao certo qual o sentido da expressão “por fora”, pois esta pode estar atenuando a condição de “Mané” (ele é ‘meio Mané’, mas só por fora, por dentro ele é um cara legal) ou acentuando o mesmo fato (ele é ‘meio Mané’, e ainda é ‘por fora’ do que está acontecendo).
Novamente o enunciador se vê tomado pela mesma crise de euforia que caracterizou a segunda seção da obra. É interessante o fato de que o único trecho da canção em que o autor repete a mesma letra da primeira parte seja o dessa seção – que não possui nenhuma característica de refrão e é extremamente curta e, ao mesmo tempo, difícil de cantar e de decorar19.
A única diferença que surge nesta re-exposição é um sutil re-arranjo da articulação entre as frases. Na primeira parte tínhamos “não sei agora / por que não sei por que somente você”, e na segunda parte temos “não sei agora por que / não sei por que somente você”. Mas, como era de se esperar, essa pequena diferença produz efeitos importantes no significado da passagem.
Na primeira exposição desse “gaguejar”, a ideia gravitava, como já expusemos anteriormente, em torno da questão do “agora”, do não saber naquele momento, e não saber justamente por não saber realmente quem é a pessoa e quem é si mesmo naquele instante. Estas ideias são, sem sombra de dúvida, por natureza, complexas e confusas.
Nesta segunda exposição, as coisas ficam bem mais claras. Os dois “por quês” que se sobrepunham na segunda frase se separam, e desta vez esta segunda frase vem simplesmente para completar o sentido da primeira. Assim, “e agora eu / não sei agora por que / não sei por que somente você / não sei por que somente agora você vem”, ainda que confusa à primeira vista, possui um sentido muito mais preciso do que na parte anterior. No breve instante que dura esta seção é como se o personagem, apesar de manifestar certa dose de euforia, tivesse clareza acerca de suas dúvidas. O enunciador é levado a pensar neste momento sobre por que o amor brota, por que brota justamente por sua interlocutora e por que brota somente neste momento de sua vida em que ele se vê “meio Mané”.
É como se toda a primeira parte da canção, com seus surtos de euforia, ansiedade e devaneio onírico, tivesse servido como uma espécie de terapia que levou o personagem à reflexão e ao consequente aprimoramento da consciência sobre seus sentimentos amorosos.
Esse jogo entre as duas exposições da mesma letra que, ao alterar uma pequena articulação entre as frases, abre portas para outras leituras, foi composto em uma fase próxima à gravação do disco. Podemos afirmar isto, pois, ao consultarmos o manuscrito da letra (Fig. 15) vemos que não há diferenciação no registro gráfico das duas partes. Percebemos, ainda, que a letra pensada originalmente é a que foi utilizada na segunda exposição, ou seja, a que contém a ideia mais clara e precisa.
Fig. 15 – Fragmento do manuscrito original.
A maneira como o compositor deixa a ideia anterior e inicia o trecho em Si maior é riquíssima sobre a ótica (melhor seria dizer “sobre a escuta”) da construção sonora das palavras. Ao compararmos o verso da primeira parte – “Você vem pra enfeitar minha vida” – com o seu correspondente da segunda parte – “Vem para embaralhar os meus dias” –, percebemos como a suavidade, na segunda parte da canção, tomou conta inclusive do som das palavras. O jogo de aliterações da primeira parte se concentrava na sonoridade fricativa das consoantes /v/ e /f/ - “você, vem, vida, enfeitar, festa, fim...” – enquanto nesta segunda parte a sonoridade que se impõe é a das consoantes nasais /m/ e /n/ - “vem, embaralhar, meus, tem, em...”.
A rítmica da nova parte também sofre modificações consideráveis na organização de suas dez sílabas melódicas. Temos a sensação de que esta nova melodia fica ‘flutuando’ nos dois primeiros momentos, para só em seguida adentrar no emaranhado das notas mais graves da frase. Isso se deve ao fato de que as sílabas /pa/ e /ba/ insistem na nota fá#, além de reterem o fluxo temporal através do uso de notas mais longas, o que, consequentemente, acentua o caráter passional do fragmento.
É interessante notar como, utilizando exatamente as mesmas notas, o compositor recria a melodia, apresentando inclusive uma outra perspectiva harmônica. A nota acentuada no início da frase da primeira parte é o mi, justamente a terça do acorde utilizado naquele momento (C#m). Já na segunda parte, a frase se inicia um tempo antes de sua correspondente anterior e a nota evidenciada – pelo fato de se encontrar na ‘cabeça do tempo’ e por possuir maior duração – é o fá#, que tem a função de apogiatura para o próximo acorde (F#7/13) e aparece insistentemente por três vezes seguidas, considerando que este fá# era a última nota da frase anterior e aparece duas vezes no fragmento analisado.
Fig. 16 – Análise melódico/prosódica.
Não é difícil imaginar o próprio sentido da frase ecoando na estrutura das sílabas “vem para em-bara(...)”, que são nitidamente reforçadas pelo recorte rítmico empregado. Desta maneira, o verso “vem para embaralhar os meus dias” tem o poder de recriar a própria situação descrita por meio de sua sonoridade.
Toda esta segunda parte da canção reproduz os jogos de compatibilidade que foram traçados até o refrão. Os versos “diz que será / tipo festa sem fim”, que antecederam o refrão na parte anterior, se correspondem diretamente com os versos “e ainda tem / em saraus ao luar”. Na primeira parte, a melodia não deixa que o texto pontue conclusivamente e o lança ao devaneio do refrão. Porém, na segunda parte, o texto realmente não pontua e o enunciador começa a explicar de maneira consciente seus sentimentos para a personagem feminina. A imagem de “saraus ao luar” se relaciona com a de “festa sem fim”, porém evoca um maior grau de romantismo. Este romantismo leva o personagem a ‘entregar seu coração’ para sua interlocutora.
Todo o subjetivismo dos sentimentos do enunciador foi revelado por meio de uma rede de imagens e símbolos, que brotaram de maneira inconsciente durante o refrão da primeira parte. Nesta segunda parte o autor, já consciente de seus afetos, tenta explicar-se, e para isto usa novamente um raciocínio simbólico e imagético.
O novo refrão traz os versos “meu coração / que você sem pensar / ora brinca de inflar / ora esmaga // igual que nem / fole de acordeão / tipo assim num baião / do Gonzaga.”. Quando a melodia se repete dentro do refrão é ‘natural’ que, no âmbito da letra, se reinicie um outro raciocínio de forma complementar, onde haja um outro exemplo daquilo que se está querendo dizer. É justamente isso que acontece no primeiro refrão da canção, onde cada uma das exposições da melodia traz a descrição de uma festa – São João e Carnaval.
No segundo refrão, acontece algo diferente: a expressão “igual que nem” articula as ideias de modo a costurar as duas frases, e obtém uma continuação linear do mesmo raciocínio20.
Esse extrapolar o limite da melodia, que o texto do segundo refrão realiza, funciona como um agente de tensão expressiva, conferindo ‘certo ar de urgência’ para o que se tem a dizer. Temos a sensação de que as últimas considerações pertencem à fala de alguém que precisa dizer algo, precisa se fazer entender, e para isso tenta barganhar um último fôlego de atenção de seu interlocutor.
Na composição de Chico Buarque, o segundo refrão se inicia com os versos “meu coração / que você sem pensar / ora brinca de inflar / ora esmaga”. A imagem de “dar o coração” como metáfora de se entregar ao amor aparece também contida na letra de “Olha pro Céu” na forma dos versos “foi numa noite / igual a esta / que tu me deste / o teu coração”. A segunda estrofe da canção do compositor carioca vem para explicar melhor esta metáfora do coração que infla e esmaga, e diz “igual, que nem / fole de acordeão / tipo assim num baião / do Gonzaga21”. Aparece aqui, finalmente, a referência explícita à obra do compositor pernambucano, mas, ainda nos detendo ao eco concreto dessa referência, podemos encontrar os versos “havia balões no ar / xote e baião no salão” e mesma espécie de elemento metalinguístico ao citar o “baião” que aparece na própria letra da canção de Chico Buarque.
Toda a confusão afetiva do personagem de “Tipo um Baião” se vê revelada através de um intrincado jogo de metáforas sobrepostas. O sentimento de se entregar ao amor, traduzido pelo ato de dar o coração, e este coração que se transforma em fole de sanfona, traduzindo a ambiguidade “bipolar” de sua entrega, ora feliz, ora angustiada. De maneira muito mais direta, acontece algo parecido em “e no terreiro / o teu olhar / que incendiou meu coração” (de “Olha pro Céu”), onde o próprio coração sofre consequências físicas que metaforizam seu ‘estado passional’.
O cenário que desperta este ‘incêndio no coração’ do personagem de “Olha pro Céu” é o “terreiro”, o lugar destinado à fogueira e às danças da festa de São João. Nesta canção o personagem se vê completamente envolvido pelo olhar sedutor que sua interlocutora lhe lança. Aqui existe a entrega completa ao desejo, sem resistência ou freios. Na canção de Chico Buarque este mesmo cenário é o palco de seu conflito, de sua entrega resguardada.
É interessante lembrarmos que a sétima faixa desse mesmo disco de Chico Buarque traz a canção “Sou Eu”, parceria sua com Ivan Lins, em que o personagem assiste a uma moça que dança de maneira sedutora, envolvendo todos “do salão” com seu charme e seus encantos. Porém, o personagem dessa canção não está no meio da dança, e sim assiste a dança de fora, ‘por fora’; mesmo assim, gaba-se, ao final da festa, de levar a moça para casa. Esse assistir ‘meio por fora’ da cena é justamente o que acontece na canção que estamos estudando. A dança e a festa, que aparecem como estopins para a paixão ardente em “Olha pro Céu”, são também estopins que despertam essa espécie de paixão ambivalente, que caracteriza o novo romance do personagem de Chico Buarque.
Mas, por que esse personagem assiste a tudo de longe?
Uma das ‘graças’ da canção é justamente o registrar, atualizar e redimensionar as expressões coloquiais. “Tipo” é uma expressão do nosso tempo, que não diz o que é a coisa, mas sim com o que ela se parece. Ao longo da canção, este termo vem à tona por cinco vezes, e quatro delas são através da referência à fala da personagem feminina. Por outro lado, a única vez que o enamorado enunciador utiliza-se da expressão “tipo assim”, como não sendo um recorte da voz feminina, é ao traduzir sua própria expressão para o vocabulário de sua interlocutora. É como se, ao utilizar-se da arcaica expressão coloquial “igual que nem”, o personagem percebesse a distância linguística que os separam, seu estar “por fora”, e resolvesse encurtar essa distância, aproximando-se de sua ‘pequena’ ao traduzir-se para o ‘idioma corrente’ na gíria “tipo assim”.
Fica claro, somente pelo uso dos coloquialismos22 e dispensando qualquer referência da recente biografia de Chico, que temos um romance entre um senhor e uma jovem, e que a distância que se materializa através das metáforas contidas nos refrões da canção é uma consequência da distância de gerações que separa o casal.
As principais estruturas narrativas da articulação entre texto e música já foram apresentadas, e o que se segue agora é uma re-exposição de partes anteriores da canção23, onde mais algumas vezes ocorre o processo de dilatação e compressão rítmica.
A própria metáfora do coração que é esmagado e inflado metaforiza também a relação rítmica da macro-estrutura sonora:
A própria canção é o acordeão que é o coração que toca um baião!
Referências
Bastidores: site de divulgação do disco Chico. Disponível em: www.chicobastidores.com.br. Acesso em 16 de abril 2012.
BUARQUE, Chico: COLEÇÕES, Abril. Carioca / Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2010. 48 p.: il.; 14 cm. + CD – (Coleção Chico Buarque; v. 18).
CAMPOS, Augusto. O Anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
ECHEVERRIA, Regina. Gonzaguinha, Gonzagão. São Paulo: Ediouro, 2006.
POUND, Ezra. Abc da literatura. Trad. 2ª ed. Augusto de Campos. São Paulo: Cultrix, 1973.
TATIT, Luiz. Elementos para a análise da canção popular. Cadernos de Semiótica Aplicada, Vol. 1, n°2, 2003.
WISNIK, José Miguel. Sem Receita. São Paulo: Publifolha, 2004.
ZAMACOIS, Joaquín. Curso de formas musicales. 4ªed. Barcelona: Editorial Labor, 1979.
LOUREIRO, Mário C. A. Comunicação Visual: o corte como substrato da composição e seus efeitos na forma e no movimento. 2004. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
1 Violonista e compositor. Possui graduação em Música/Licenciatura e especialização em Performance Musical (violão), ambos pela Universidade Estadual de Londrina.
2 As expressões ‘figurativização’, ‘passionalização’ e ‘tematização’, que aparecem no decorrer deste texto, referem-se aos conceitos de compatibilidade entre letra e melodia. Para maiores esclarecimentos ver (TATIT, 2003).
3 Ver: TATIT, 2003.
4 A letra, que aparece digitalizada no encarte do CD e no próprio site do álbum, traz uma articulação dos versos diferente da do manuscrito disponível no mesmo site. Tal reorganização dissolve a ambiguidade sugerida pela canção quando se a escuta.
5 A cadência da introdução apresenta o quarto grau maior com sétima (D7/9), caracterizando um acorde da dominante. Esse é um dado interessante, pois tal utilização para a harmonia tradicional é relativamente complexa, porém soa fluida e corriqueira justamente pelo seu uso na música norte-americana (no blues e no jazz). O interessante é justamente que a faixa anterior do disco, “Essa Pequena”, é um blues (ou um “tipo blues”) em lá maior.
6 Lá bemol com sétima maior (Ab7M), que rapidamente dá lugar a um sétimo grau de lá menor (G#7/5-).
7 Segundo ZAMACOIS (1979, p. 37), existe contração rítmica quando “El ritmo de um grupo de notas se contrae por reducción de sus valores”.
8 Tomamos esta expressão por empréstimo da fonoaudiologia, e aqui a utilizamos com o sentido de sintoma de um distúrbio na fluência da fala, e não como patologia crônica.
9 Ritmo harmônico em semínimas.
10 Utilizo esta expressão principalmente para não incorrer no erro de pensar em aceleração quando não há mudança de pulso, e assim me aproximo da expressão de Zamacois (contracción). Mas ainda podemos compreender que a expressão “comprimida” abarca e traduz a relação entre a pouca duração desta parte (um terço da anterior) e a grande quantidade de significados contidos nela.
11 Mais uma referência ao trabalho de Tatit (2003).
12Trata-se de uma modulação de meio tom, considerando que a seção B ainda representa uma região do tom de Si b. Tal perspectiva de interpretação harmônica fica clara na re-harmonização da Fig. 8.
13 Conf. Classificação de cortes de Loureiro (2004).
14 Basta lembrarmos da canção “Sabiá” (Luiz Gonzaga, 1951), onde a temos a primeira parte em modo menor e a segunda seção iniciando-se no primeiro grau maior com sétima da dominante.
15 Cf. ECHEVERRIA (2006, p. 318).
16 Este rompimento com a linearidade se dá através da sobreposição repentina das imagens da festa de São João e de Carnaval, que ocorrem, como todos sabem, em diferentes épocas do ano.
17 Novamente a expressão “tipo” utilizada pala interlocutora provoca reações de caráter conflituoso/afetivo no enunciador.
18 Compreendendo como primeira parte as quatro primeiras seções da canção.
19 Difícil de decorar apesar, e justamente por isto, de ser a parte com o texto mais repetitivo. A ironia é que a própria parte que consideraremos como ‘refrão’ virá com textos diversos em suas duas exposições.
20 Como exemplo, basta imaginarmos o contrário: se o compositor tivesse utilizado a forma de compatibilidade ‘natural’ (tematização), e procedesse da mesma maneira que no primeiro refrão, teríamos algo parecido com o efeito contido na articulação das estrofes “meu coração / que você sem pensar / ora brinca de inflar / ora esmaga // é um coração / fole de acordeão / tipo assim num baião / do Gonzaga”.
21 Além dos paralelos citados, convém fazer menção à proximidade que existe entre “pois era noite de São João” e “é São João”, entre “igual a esta” e “igual, que nem”, e entre “havia balões no ar” e “em saraus ao luar”, versos extraídos respectivamente de “Olha pro Céu” e “Tipo um Baião”.
22 Existem outros indícios que revelam essa diferença etária, tais como as constantes reclamações sobre o inconveniente “atraso” que este romance teve ao surgir, ou a diferença entre os raciocínios dos dois: ela é sempre rápida, direta e pouco consequente, e ele, em contrapartida, sempre tecendo longos e circulares raciocínios, porém precisos e consequentes.
23 Existem algumas alterações no arranjo que valorizam ainda mais a obra. Exemplo disto é o lindíssimo contracanto realizado pelo coro na reexposição seguida dos dois refrões; louros ao Luiz Cláudio Ramos.