Circularidade cultural na obra do cancionista Vinícius de Moraes: fragmento e completude em tempos de amor líquido
Sylvia H. Cyntrão1
cyntrao@unb.br
Resumo: Estas reflexões visam a mostrar o texto poético das letras de canções populares como vetor estético de representação do contemporâneo - um produto cultural que trabalha com a transfiguração do real, manipulando um capital simbólico coletivo. A leitura analítica de poemas selecionados do veio cancionista de Vinícius de Moraes permite o desvelamento do sujeito que, criado pela cultura, a ressignifica no processo de tradução contemporânea da tradição cultural. Sendo o 'literário' um espaço diferente das outras atividades sociais, não é possível definir para ele um espaço estável no âmbito da sociedade. Este artigo tenta, no entanto, dar algumas pistas sobre o lugar do amor na obra do poeta, no entre lugar criado pelos deslizamentos constantes de seu 'próprio' estar no cenário artístico.
Palavras-chave: Cultura; canção; poesia contemporânea; Vinícius de Moraes.
Abstract: These reflections aim at showing the poetic text as an aesthetic vector of representation of the contemporary - a cultural product that works with many changes of the Real, manipulating a collective symbolic capital. The analytical reading of Vinicius de Moraes’ lyrics allows us to disclose the being whom, created by culture, re-signifies it in the process of contemporary translation of the cultural tradition. Since Literature is a different space from other social activities, is not possible to define a steady space for it in the scope of the society. This article tries, however, to give some cues as regards the place of love in the work of this poet, today.
Keywords: Culture; lyrics; contemporary poetry;Vinícius de Moraes.
Uma visão especial
Mundividência ou visão de mundo é uma capacidade comum aos seres humanos, mas que apenas em alguns extrapola a interioridade silenciosa ou a superficialidade e se transubstancia em arte. Vinícius de Moraes devotou sua vida a vivê-la de forma poética e a expressar suas vivências de forma artística em várias linguagens: na música, no teatro, no cinema e na literatura. Na literatura encontrou seu lugar entre os maiores artistas brasileiros, com quem manteve vasta interlocução, como Mário de Andrade e Carlos Drummond; e na canção popular dividiu parcerias , como as com Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda, tendo produzido uma obra que cobriu quase meio século (1933 - 1980).
Em um primeiro momento, sua poesia era a própria antítese das proposições revolucionárias da Semana de Arte Moderna 22, relativas ao aproveitamento do cotidiano, ao vigor do coloquial, à reformulação da realidade subjacente. Já anunciava, no entanto, o gênio da expressão lírica amorosa. Passado o primeiro momento, correspondente à fase iconoclasta do Modernismo brasileiro (1922 a 1930), o soneto foi retomado pelo poeta em todas as suas nuances e possibilidades desafiadoras: um máximo de idéias num mínimo de palavras. O soneto foi para Vinícius um desafio e uma escolha em liberdade. Desafio, sobretudo, pelo convite a reformar uma fórmula em princípio esgotada e pela intenção de conciliar liberdade e disciplina.
Ressignificando a lírica, no equilíbrio entre o sentimento romântico, colorido pelos novos valores do século XX e a estrutura clássica, Vinícius de Moraes foi, mantidas as diferenças de texto e contexto, assim como o sonetista português Luís de Camões, um polêmico homem do seu tempo, com preocupações humanistas claras, vistos ambos como malditos , mas festejados simultaneamente, em função de um comportamento transgressor do status quo em nível pessoal e social. Mostraremos por oportuno neste caminho o diálogo entre os dois.
Da primeira fase confessional de sua poética Vinícius trouxe para a segunda, a dos sonetos, a paixão e as reflexões humanas de suas implicações onde a síntese dos contrários é buscada. Pela ótica da cultura popular, como compositor, o já consagrado poeta , nos anos de 1960, impulsionou uma geração inteira de artistas, atuando como compositor na MPB e levando para esta mídia muitas de suas composições clássicas em versos.
Vinícius de Moraes move-se em sua poética entre o espiritual e o carnal, entre a felicidade fugaz e a dor de perdê-la, que vai caracterizar um mundo interior pleno do sofrimento consciente da fugacidade do bem, como retrata em "A felicidade":
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar
A poética modernista de Vinícius - como a dos profundos pensadores da nossa língua de cultura- expressa o âmago das preocupações humanas essenciais, fruto que são do eterno impasse entre a aceitação do real impermanente e a recorrente esperança utópica do perene. Mostrar alguns dos índices de contemporaneidade do veio lírico-amoroso dessa poética que transita do mais erudito ao mais popular, tanto na literatura dita canônica como nas letras de canções que produziu , é a intenção deste artigo. Destaque-se que poemas do autor foram musicados ( entre eles, "Rosa de Hiroxima") e outros ("Soneto da fidelidade" , "Soneto do amor total", ... ) inseridos de propria voz nas gravações de canções com os parceiros: poemas, letras poéticas e melodias em perfeita convivência estética.
Lido a partir do projeto poético brasileiro, e em linha com a nova ordem mundial que se delineia a partir da segunda metade do séc. XX, entendemos o lugar do cancionista como o lugar da descanonização, da desconstrução, da fragmentação, da performance , bem como do seu repensar em bases inclusivas, não dicotômicas. A multiplicidade das diferenças que ganhou espaço nesse processo projetou novas subjetividades que se utilizaram de dispositivos abertos e plurais e das novas sensibilidades já “refinadas para a diferença” , de que fala Lyotard2.
Assim, a palavra e a melodia, na canção, têm funcionado como veículos de intervenção para poetas que, como Vinícius de Moraes , buscaram compreender o lugar do amor romântico na transição de tempos e paradigmas.
Vinícius e Camões: o soneto na canção, ou, um diálogo transversal pela poesia
Encontra-se no “Soneto da fidelidade” toda a tensão que caracteriza o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver” de Camões3, relativo aos contrários de que se nutre o sentimento amoroso, explicitado pelas imagens paradoxais “ferida que dói e não se sente/ contentamento descontente/ dor que desatina sem doer”; idéias que remetem a essa oscilação provocada pelo amor estão presentes nos versos de Vinícius: “e rir meu riso e derramar meu pranto / ao seu pesar ou a seu contentamento”.
No “Soneto da Fidelidade” o poeta procura realizar a síntese sempre procurada, mas nunca consumada, entre o que há de finito e de infinito na vivência do amor. Sempre entre dois pólos - o ideal e o real, o possível e o impossível-, o poeta apresenta dialeticamente o universal comum aos seres que amam, na ampliação de um espaço particular, quando diz: “E assim, quando mais tarde me procure a morte, angústia de quem vive / quem sabe a solidão, fim de quem ama”.
O que podemos perceber, mesmo em uma breve análise comparativa, é que há a permanência de um universo simbólico comum aos dois poetas, um espaço onde semelhantes visões do amor se entrecruzam. Os dois poetas, mesmo nascidos em pátrias diversas e separados no tempo, produziram uma poética que se articula em um universo simbólico comum. A eles vem juntar-se em tempos mais recentes (décadas de 1980 e 90) o compositor Renato Russo, leitor confesso de ambos, e que produzirá a conhecida canção "Monte Castelo", na utilização do Soneto de Camões e sua visão universal unida à epístola de Paulo aos Coríntios, sobre o amor.4
Sobre este tipo de recorrência, Octavio Paz (1995) ressalta a preponderância do tema amoroso nas obras literárias do Ocidente, dizendo-nos que nenhuma das representações líricas do amor alterou em sua essência o arquétipo criado no século XII sobre o amor cortês. É certo que podemos falar em variações, mas o “verdadeiramente assombroso é a continuidade de nossa idéia do amor, não suas mudanças e variações,” nos diz o autor. Assim é que o amor tem sempre aparecido como um sentimento estranho que é simultaneamente uma atração fatal e uma livre escolha.
O poeta e a diversidade de temáticas
A procura do amor, mas também a reflexão sobre problemas ontológicos, a angústia existencial, a universalidade, o finito e o infinito, bem como um engajamento social crítico e o questionamento sobre o fazer poético são os temas sobre os quais Vinícius de Moraes constrói sua obra . Para a letra de "Samba da bênção" o poeta faz convergir vários desses conceitos a um só tempo, quando aproxima os sentimentos de alegria e de tristeza, problematizando ambos:
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
(...)
Ressalta na sequência o caráter sagrado do fazer artístico, mesmo que popular (o samba) :
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração.
Sobre o fazer poético cito aqui como um de seus mais importantes poemas, “Poética II”5 em que declara que assume a missão de viver o seu próprio tempo para ser capaz de expressá-lo pela via da poesia: "com as lágrimas do tempo/ e a cal do meu dia/fiz o cimento /da minha poesia."
Como poeta com significativas preocupações de cunho social, abre-se em reflexões acerca da exploração do homem pelo homem, e retrata o cotidiano abalado pela violência e pela falta de humanidade trazidos por uma globalização emergente, que o poeta, àquela época, já prenunciava. Um de seu mais importantes poemas de temática social foi performatizado na voz de Ney Matogrosso –concentrado na imagem da rosa, símbolo de amor, mas aqui remetendo a outra imagem de formato semelhante, a do “cogumelo”pós-explosão atômica”- é o celebrado “A rosa de Hiroshima”6: “Mas oh não se esqueçam/ Da rosa da rosa / Da rosa de Hiroshima / A rosa hereditária.”
Esta é a grande força, portanto, da poética de Vinícius, popularizada pela canção : a manifestação em uma linguagem viva e rica de imagens, do casamento de uma visão de mundo humanista e emocional que, versátil, concilia o universal e o pessoal, o coletivo e o individual, ou expõe dialeticamente o conflito entre o absoluto e o relativo que martiriza o homem moderno.
Vinícius e a canção popular brasileira . A migração histórica para a MPB
Como artesão da linguagem, Vinícius criou seu próprio caminho multidiscursivo e, mestre da palavra que nunca menosprezou a inspiração emocional, quando a poesia fechava seus caminhos tradicionais com o advento experimental do Concretismo, migrou definitivamente para a canção popular com Antônio Carlos Jobim, o Tom.
O poeta convidou Tom a musicar o texto da peça Orfeu da Conceição, em 1956, que , filmada pelo cineasta francês Marcel Camus, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Em 1963 Vinicius e Tom compuseram “Garota de Ipanema”, até hoje a música brasileira mais conhecida e possivelmente mais gravada no exterior: “Olha que coisa mais linda mais cheia de graça/ é ela , menina, que vem e que passa/ seu doce balanço, caminho do mar”.
Uma das marcas do poeta foi sua sempre seleta companhia nas composições, como com Carlos Lyra em “Minha namorada”; Chico Buarque de Holanda e Garoto em “Gente humilde”;Baden Powell em “Canto de Ossanha; Edu Lobo, em “Arrastão” , com quem venceu um Festival da Canção e, por último, a profícua parceria com Toquinho, da qual se destaca a histórica “Carta ao Tom” .O poeta escreveu pouquíssimas canções sozinho, sem um parceiro; entre elas está “Pela luz dos olhos teus”: “Quando a luz dos olhos meus/ e a luz dos olhos teus resolvem se encontrar/ Ai , que bom que isso é, meu deus/ que frio que me dá o encontro desse olhar”...Cabe destacar, à parte, suas canções para crianças do disco Arca de Noé, especialmente “A casa”: “Era uma casa muito engraçada/ não tinha teto, não tinha nada/ ninguém podia entrar nela não/ porque na casa não tinha chão” ...
Sob a ótica da recepção pública popular, Vinícius foi consagrado como poeta do amor. Companheiro inspirador de uma geração inteira de cancionistas, intensificado a partir dos anos de 1960, trazendo de volta a expressão poética dos sentimentos amorosos que, com ele, voltaram a permear a poesia dos textos literários e os das canções. Com ele o "lirismo" parou de ficar “envergonhado” , segundo expressão usada por Affonso Romano de Sant’Anna (O Globo, 23/05/2003), e voltou a ocupar de forma ressignificada o angustiante espaço deixado vazio com o esgotamento do veio lírico amoroso de nossa poesia na década de 1960, pós - movimento concretista.
Eros -ontem e hoje
Para encaminhar a compreensão de alguns sentidos da poética de Vinícius é imprescindível citar um breve olhar 'autorizado' sobre sua persona. Dele disse Drummond em depoimento a Otto Lara Rezende (MORAES, 1967, Prefácio.) “Vinícius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão, quer dizer, da poesia em estado natural. Foi o único de nós que teve vida de poeta. Eu queria ter sido Vinícius de Moraes”. De fato, a vida do poeta -a partir de sua presença pública- pode ser definida sumariamente como uma vida dedicada a buscar o estado de apaixonamento.
Marcus Vinícius de Melo Moraes é poeta normalmente situado pela crítica literária acadêmica entre os primeiros modernistas e a “geração de 45". Embora poeta de altitude e originalidade, grande parte de sua popularidade decorreu das diversas situações amorosas por ele experimentadas e divulgadas. A temática do amor é definitivamente -em lato e stricto sensu- sua marca maior.
Poeta do amor ora platonizado e universalizante, ora intenso e erótico, ou concreto e carnal, Vinícius canta a mulher amada em imagens que retratam toda a sensualidade com que vê o amor consubstanciado, como em “Soneto do amor total”7 nos versos que cito : “e de amar assim muito e amiúde/ é que um dia em teu corpo de repente/ hei de morrer de amar mais do que pude.”
Tais versos propiciam a reflexão sobre os deslizamentos de sentido que a relação amorosa sofre na difícil integração do desejo dos indivíduos na ordem social, começando por ressaltar que as imagens míticas do amor-paixão constituem inscrições simbólicas na cultura e nela circulam permeadas pela força de representação da problemática humano-existencial. O eu poético deixa-se manifestar com toda a carga de sentimentos pessoais e individuais, num mundo em que a hegemonia masculina racional se envergonha de expressar emoção.
Embora os psicanalistas usem a palavra 'Eros' para designar pulsão de vida, contra 'Tanatos', pulsão de morte , concordamos com Comte-Sponville (2011) quando lembra que 'Eros' para os gregos era muito mais do que uma 'pulsão' . O deus da mitologia era o deus da paixão amorosa e uma paixão não é somente um impulso, mas algo tão sério e forte o suficiente para nos fazer conhecer o primordial e o essencial de nós mesmos. Esse é o potencial de Eros, percebido na poética de Vinícius:
Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu (...)
Assim, temos uma tradição conceitual que remonta há milênios e que identifica o modo pelo qual a ânsia de integralizar o ser com 'um outro' pode se realizar:
Não há mal pior
Do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão (...)
Esse modo de intersubjetividade depende, é certo, dos valores dos grupos sociais para se manifestar e se transformar em prática mediada pelo corpo. Interessa-nos em O Banquete (2011), de Platão, como Diotima descreve a Sócrates quem é
'Eros':
"- O que é Eros?(...)
-Um gênio (daimon), um grande gênio, caro Sócrates: pois tudo o que é gênio medeia entre Deus e o ser mortal."
Ou seja, o amor -paixão , o sentimento erotizado, que se inicia naturalmente no ato sexual, é aquele que nasce na vontade do homem e é capaz de levá-lo aos 'céus'. Em sua obra o filósofo desenvolve o conceito de que o amor é um princípio cósmico, uma escada com sete degraus que podem levar os amantes a realidades superiores do universo. Assim, fixar-se no caráter físico deste encontro consiste em permanecer somente no primeiro degrau de uma escada que poderia levar o casal a dimensões muito mais amplas. A proposta é conhecer o universo que habita o outro
( e o próprio Universo 'no' parceiro) cada vez mais, e assim autotranscender-se, desvelando outras dimensões do prazer que apenas começam pelo ato sexual.
Em que medida , após milênios, as relações amorosas mantiveram as verdades ou os enganos dessa perspectiva e em que medida dela se afastaram? A Antiguidade havia reservado a essa experiência um lugar marginal na biografia de seus indivíduos, reforçada pelo moralismo político-religioso pós-cristão, até a formação da indústria da cultura, a partir do século XIX, simultânea ao desenvolvimento da sociedade burguesa. A partir daí, diversas visões de mundo foram inaugurando um novo lugar para a parceria amorosa, em linha com as transformações sociais. Para Hobsbawm (1995), o século XX termina em 1990 com o fim da polarização da guerra fria e com o chamado fim das utopias, obrigando a um novo posicionamento das subjetividades. Segundo o historiador, os últimos 20 anos configurariam -de fato- uma nova era, já 'pós' moderna, com transformações significativas para as relações entre os seres.
Como sabemos, tais mudanças se iniciaram há cerca de 500 anos com as descobertas científicas que tiraram do planeta Terra a posição de centro do universo, mas foi o século XX que realmente reconfigurou o valor das relações amorosas.
O descentramento do sujeito cartesiano que se voltou para a razão lógica tem como fundamentos varias revoluções do pensamento, tais como a descoberta do inconsciente por Sigmund Freud, no início do século XX , trazendo a ideia de que a identidade não é algo inato, mas passível de construções durante a vida . Também os movimentos de afirmação da mulher fomentados na primeira década daquele século, culminovearam nos anos de 1960 com a politização da subjetividade (Hall, 1998), agregando outros movimentos determinantes de uma nova face do mundo, moldada pela 'política das identidades' (a dos negros, a dos homossexuais, a dos os antibelicistas, a dos ecologistas).
Essa perda de um sentido de 'si' estável , pela possibilidade de vários 'pertencimentos' identitários (as identidades podem se superpor), em que pese ser uma grande conquista individual e social-coletiva, por um lado, também traz o ônus do provisório e do variável. Traz a crise da confiança: afinal, quem é o 'outro'?
Vinícius de Moraes não só antecipou a crise pós-moderna como apontou , sobretudo nas letras de suas canções, para esta nova configuração de traço libertário das relações entre os amantes.
Em tempos de Narciso
Instaura-se neste 'novo tempo', a partir da segunda metade do século XX, o símbolo do Narciso, imagem mitológica do amor de si. É o início do homo psychologicus e o fim do homo politicus, segundo Lipovetsky (1982). O sujeito contemporâneo parece que empenha-se mais em realizar-se de modo contínuo na vida íntima do que em triunfar na vida ( ser sempre jovem, em vez de construir o novo...). A antiga unidade social e psicológica do casal é, então, suplantada pela lógica narcisística: dois seres autônomos que não estão dispostos a sacrificar sua identidade (com as 'vantagens' de deslizamentos contextuais) e sua independência. A pista de um nova atitude feminina (e da abertura de uma nova consciência masculina) foi dada nos versos de "Regra três".
Tantas você fez que ela cansou
Porque você, rapaz,
Abusou da regra três
Onde menos vale mais
Da primeira vez ela chorou
Mas resolveu ficar
É que os momentos felizes
Tinham deixado raízes no seu penar
Depois perdeu a esperança
Porque o perdão também cansa de perdoar (...)
O perdão, historicamente pedido pelos homens e oferecido pelas mulheres na relação, é agora condicionado: 'o perdão também cansa'.
Um novo modus de encontro aponta, portanto, para a diminuição sensível das questões acerca das diferenças de sexos e seus papeis em uma relação. Papeis tradicionalmente concebidos como referentes de masculinidade ou de feminilidade são coexistentes e passíveis de serem trocados em combinações viáveis, no cotidiano da cumplicidade pela semelhança. Tais papeis podem ser constantemente re-negociados, de acordo com as demandas emocionais, como em "Desalento":
Sim, vai e diz
Diz assim
Que eu chorei
Que eu morri
De arrependimento
Que o meu desalento
Já não tem mais fim (...)
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
É pra ela voltar
O apelo 'por amor/ por favor' representa a necessidade de reviver o encontro amoroso. "Desalento" termina também com um indicador de urgência, nos versos 'Corre e diz a ela/ Que eu entrego os pontos'.
Entre o fragmento e a completude
A influência dos padrões culturais no mundo moderno transfere o sentimento amoroso do seu lugar idealizado para outro que envolve vários conceitos como o corpo, a intimidade e o próprio reconhecimento que o indivíduo faz de si, “o que era considerado imutável é agora encarado como uma construção cultural, sujeita a variações tanto no tempo como no espaço. Isso é possível pelo enfoque básico da análise das estruturas, ou seja, as mudanças ocorridas em nível social, econômico, geográfico e antropológico de longo prazo”. Segundo Lázaro (1996), somente descobriremos uma nova faceta do amor por trás das paredes do mundo privado, quando revelarmos o desejo latente de experimentar o eu intensamente através do jogo amoroso, o que só será possível quando esse eu conseguir desvincular-se das amarras sociais que fornecem ao indivíduo sua posição no mundo. Os versos de "Deixa" apresentam este posicionamento :
Deixa
Fale quem quiser falar, meu bem
Deixa
Deixa o coração falar também
Porque ele tem razão demais
Quando se queixa
Então a gente
Deixa, deixa, deixa, deixa
Na canção percebem-se as marcas dessa transformação com questionamentos diante da própria individualidade e da atitude do outro –o que inclui a sexualidade. O contexto embutido nos sentidos é o do momento de transição pelo qual as relações amorosas passaram a partir da década de 1960. Segundo Giddens (1993) as ideias de amor romântico exerceram a principal função de alterar os laços familiares. A sexualidade torna-se totalmente “uma qualidade dos indivíduos e de suas relações mútuas”. O amor aqui representado em Vinícius aponta para a ideia do “amor confluente” de Giddens , para o qual o mais importante é o “relacionamento especial” no tempo presente:
Ninguém vive mais do que uma vez
Deixa
Diz que sim pra não dizer talvez
Deixa
A paixão também existe
Deixa
Não me deixes ficar triste
O amor romântico há muito tempo tem mostrado uma qualidade igualitária, intrínseca à ideia de que um relacionamento pode derivar muito mais do envolvimento emocional de duas pessoas do que de critérios sociais externos. [...] O amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento emocionais [...]. A partir daí o amor só se desenvolve pois a intimidade e a vulnerabilidade agora são escolhas e não imposições. Uma letra muito significativa desse tipo de relação é "Minha namorada", em que o poeta apela ao 'querer' da mulher que lhe interessa....
Se você quer ser minha namorada
Ai que linda namorada
Você poderia ser.
E -romanticamente- abre a possibilidade do encontro existencial maior
(...)E se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
O eu-lírico interpela a amada e considera possibilidade de não poder oferecer-lhe o melhor...
Você tem que vir comigo
Em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você
Com o sentimento de exclusividade, próprio dos apaixonados, prossegue em seu apelo:
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
E os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem de ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois
O sentimento presente na canção remete ao conceito de que o amor é capaz de elevar o sujeito , como demonstram as imagens 'estrela derradeira'/ 'infinito'. Amar, nesse sentido, é libertar-se .Os poemas contemporâneos – e considero as letras das canções como representantes legítimas do projeto poético brasileiro- convivem num espaço de discursos diferenciados e plurais em que o tema do amor amplia-se para configurar as questões existenciais que implicam a relação do sujeito com o “outro”, conformando sua identidade.
Ou seja, apesar de estilhaçado e confuso pela velocidade e urgência das transformações de seu tempo, o eu poético não perdeu a preocupação de ampliar o conhecimento de sua condição existencial. Ele se volta às questões internas, em busca da unicidade física e da completude universal. Portanto, estamos diante de um aparente paradoxo: de um lado, o anunciado fragmento pós-moderno , vivenciado na prática de suas relações amorosas por Vinícius (com seus diversos – nove - casamentos); de outro, a busca de reintegração do ser, na relação amorosa (a necessidade , justamente de...casar-se sempre). A literatura espelha, assim, este indivíduo transitório, (sobre)vivente em um mundo líquido, fragilizado pela suspensão das antigas certezas (família, religião, pátria) que serviam de alicerce , mas também de barreira confortável (pois indutora de comodismo) para sua constituição.
Conclusões
Concluo lembrando alguns versos do poema “O dia da criação” , dos que melhor retratam a amplitude da especial mundividência do poeta. Nele , apresenta-se o grande happening da vida; o que acontece na passagem do tempo dos relógios. A multiplicidade das ações é simultânea e estas aparecem em pares opostos retratando a dialética existencial a que estão sujeitos homens e mulheres, entre casamentos e divórcios, discordâncias e esperanças . O eu-lírico compõe na cena do poema o espetáculo da vida em movimento, espetáculo que, segundo nos dizem as imagens, é sempre renovado pelo tempo que passa.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas como o mar(...)
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado (...)
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância (...)
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva de domingo
Porque hoje é sábado .(...)
Este é o poeta que teve 'peito de remador' (a imagem está no poema "Para viver um grande amor") e empreendeu sua vida investigando as possibilidades amorosas. Para a sorte da literatura brasileira , des-cristalizou em seus versos a chama que as instituições sociais e religiosas tentam explicar e regular, sem sucesso. Segundo o poeta (no mesmo texto) "É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor."
É no entanto na letra de "O que é que tem sentido nesta vida", da canção não tão conhecida do poeta, que o sentido de sua procura é explicitado e intensificado a partir no verso 'eu só acredito em liberdade'...para buscar 'um' (não 'o') grande amor.
Há quem creia em ter status
Sair em fotos e fatos
Ter ações ao portador
Eu só acredito em liberdade
E estar sempre com saudade
De viver um grande amor.
***
Referências
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SANT’ANNA, Affonso Romano de. Canto e Palavra. Belo Horizonte: Edições MP, 1965.
TODA A DISCOGRAFIA no portal oficial administrado por Suzana de Moraes: |
http://www.viniciusdemoraes.com.br/site/
1 Universidade de Brasília. Departamento de Teoria literária e Literaturas. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Performance Poéticas Contemporâneas: Vivoverso (CNPq). Autora de vários artigos e promotora de eventos com foco na canção popular. Organizadora dos livros Poesia: o lugar do contemporâneo (Brasília: Editora do TEL, 2009) e Poesia: olhares e lugares, com textos de Affonso Romano de Sant'Anna e José Castello, entre outros escritores com obra de igual relevância para a compreensão da literatura contemporânea (Brasília: Editora do TEL, 2011, com encarte do cd Só Ela.) http://vivoverso.blogspot.com.
2 LYOTARD, Jean François.O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa, 1989.
3 Amor é um fogo que arde sem se ver;/É ferida que dói e não se sente;/É um contentamento descontente;/É dor que desatina sem doer;/É um não querer mais que bem querer;/É um andar solitário entre a gente;/É nunca contentar-se de contente;/É um cuidar que ganha em se perder;/É querer estar preso por vontade;/É servir a quem vence, o vencedor;/É ter com que nos mata, lealdade./Mas como causar pode seu favor/Nos corações humanos amizade,/Se tão contrário a si é o mesmo amor?
4 Ainda que eu falasse/A língua dos homens/E falasse a língua dos anjos,/Sem amor eu nada seria.//É só o amor! É só o amor/Que conhece o que é verdade./O amor é bom, não quer o mal,/Não sente inveja ou se envaidece.//O amor é o fogo que arde sem se ver;/É ferida que dói e não se sente;/É um contentamento descontente;/É dor que desatina sem doer.(...) (Do álbum As quatro estações, de 1989).
5 “Poética II”
Com as lágrimas do tempo/ E a cal do meu dia/ Eu fiz o cimento/ Da minha poesia/ E na perspectiva /Da vida futura/ Ergueu em carne viva/ Sua arquitetura/ Não sei bem se é casa/ Se é torre ou se é templo/ (um templo de Deus)/ Mas é grande e é clara/ Pertence ao seu tempo/ Entrai, irmãos meus.
6 “A rosa de Hiroshima”
Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas /Pensem nas meninas /Cegas inexatas/ Pensem nas mulheres/Rotas alteradas /Pensem nas feridas/ Como rosas cálidas/ Mas oh não se esqueçam/ Da rosa da rosa /Da rosa de Hiroshima /A rosa hereditária /A rosa radioativa/Estúpida e inválida /A rosa com cirrose/ A anti-rosa atômica/ Sem cor sem perfume/ Sem rosa sem nada.
7 “Soneto do amor total”
Amo-te tanto, meu amor..não cante/ O humano coração com mais verdade/ Amo-te como amigo e como amante/ Numa sempre diversa realidade(...)/ amo-te como um bicho, simplesmente/ de um amor sem mistério e sem virtude/ com um desejo maciço e permanente/ e de amar assim muito e amiúde/é que um dia em teu corpo de repente/ hei de morrer de amar mais do que pude.