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A Sereia e a Neo-sereia: Notas Para os Estudos das Poéticas Vocais

Leonardo Davino de Oliveira1

leonardo.davino@gmail.com

 

 

Resumo: Parafraseando Gilberto Gil, na canção tudonada cabe. Ciências sociais, Linguística, Semiótica, Musicologia, Filosofia, História, Antropologia, Comunicação, Letras. Por seu caráter transdisciplinar – não é (só) literatura, não é (só) música, não é (só) técnica vocal – a canção ainda não achou seu lugar dentro da universidade, não é uma disciplina, apesar dos trabalhos e dos empenhos seminais de bravos pesquisadores. Mas, não penso na substituição do rodapé pela cátedra. Longe disso, penso no convívio frutífero de ambos, na colaboração dos pensamentos para se investigar teoricamente as poéticas e as estéticas da canção. Este ensaio posiciona-se nesse meio, e quer contribuir com as possibilidades de audição e leitura nos estudos das Poéticas Vocais.

Palavras-chave: Sereia; Neo-sereia; Poéticas Vocais; Canção.

 

Abstract: Paraphrasing Gilberto Gil, ‘all-nothing’ fits in the song. Social Sciences, Linguistics, Semiotics, Musicology, Philosophy, History, Anthropology, Communication, Arts. Because of its transdisciplinary character – the song is not (only) literature, it is not (only) music, it is not (only) vocal technique – the song has not found its place within the university, it is not a subject, despite the seminal works and endeavors of brave researchers. But, I don't think about the replacement of the footnote for university. Far from it, I think about the fruitful coexistence of both, the collaboration of thoughts to investigate, theoretically, the poetics and the aesthetics of the song. This essay situates itself in this middle-ground, and it wants to contribute with the possibilities of listening and reading in the studies of the Vocals Poetics.

Keyworks: Mermaid; Neo-sereia; Vocals Poetics, Song.

 

 

A voz não é minha. É das sereias.

BETHÂNIA, M. Revista Bravo!, out/2009.

 

1. A sereia

O episódio das sereias, desde o Canto XII da Odisséia de Homero, ocupa um espaço de particular importância, tanto no imaginário popular, quanto na crítica literária e filosófica, destinando-se às diversas apropriações e interpretações afetivas e teóricas. Talvez pela força do mito em si, por sugerir o situar do indivíduo no mundo, a sereia – em grego e em espanhol sirena – é a caixa sonora que canta com seus milhões de canções-beijos-luz o indivíduo fora do útero materno, solto no mundo. Aglutinando palavra, melodia e gestualidade vocal exatas, artifícios indispensáveis à compreensão da imersão do humano na vida, o canto homérico das sereias evocava o passado – a guerra de Tróia, o presente – o retorno à Ítaca, e o futuro – o orgulho e a fama, de Ulisses. O ardiloso personagem torna-se (percebe-se) eu (um alguém no mundo) quando sustentado nas e pelas vozes das sereias. Aliás, a Odisséia, em si, é um canto sustentador do mito, do mais que humano, do sujeito por trás das evidências do real: é uma metacanção do (auto)canto de Ulisses. Para os dicionários, se filhas do rio Aquelóo e da musa Calíope, ou não, as aves do mar e seu gorjeio carregado de sentidos, para quem ouve numa experiência íntima e intransferível, desviam o marinheiro do caminho ordinário, arrastando-o à morte. Encantar o ouvinte é manter-se viva: a sereia se reconhece e se compreende – existe – no reconhecimento e na compreensão que engendra em quem a ouve.

Aérea e aquática, ser marinho alado, construção deslizante e líquida, urgência existencial, ou melhor, cantora da vida, desta busca de sentido diante da proliferação de significantes sem promessa de significado final, e também do estímulo ao pensamento, a sereia precisava do humano para se contrapor em presença no mundo. A isso respondeu a iconografia gestada no imaginário literário e, paralelamente, filosófico. As sereias estavam a serviço do ensinamento de nossas fé e limitação humanas. Elas representavam, estando (nós: ouvintes) distantes de atingir a posição do superhomem nietzschiano, a fama que ainda nos seduz, senão, nos constitui – humanos que somos. É assim que, como anota Peter Sloterdijk, em Esferas I – Burbujas: “El fundamento misterioso de la irresistibilidad de las sirenas está en la circustancia de que, extrañamente sin escrúpulos, jamás interpretan su poprio repertorio, sino solo, y siempre, la musica del pasante” (Sloterdijk, 2003: 439) O canto da sereia conta a nós mesmos a nossa verdade: ficcionalizando-nos – a única forma de roçarmos a verdade (o real), sempre ficcional. A sutileza simbólica aqui, dotada de uma retórica reconhecível no lugar do afeto, encanta para cantar: para revelarmo-nos com nossos atributos de bem e de mal, e das inúmeras possibilidades entre essas duas margens: a tal travessia cantada pelo Riobaldo rosiano.

Mesmo seguindo o deslocamento teórico das diferentes interpretações dadas às sereias, que, por vezes, mais reprimem do que permitem o canto sirênico, interessa-me a defesa da sereia como dispositivo operatório agudo para a interpretação das poéticas vocais na era da mobilidade e da reprodutibilidade técnicas, sem que isso promova a defasagem do mito. O empenho está em tornar a sereia um recurso possível à compreensão pertinente daquilo que chamamos canção, em especial à canção feita no mar sonoro latino-americano: festa sirênica. Salvo engano, por aqui, é na canção que a América Latina ensaia, insinua-se. Afinal, não fazemos história, ensaiamos: inventamos uma tradição – as tentativas paranóicas de salvar os chamados “samba de raiz” e o “forró pé-de-serra”, por exemplo, não me deixam mentir. A canção nos realiza porque nela não precisamos existir e sou levando a crer que no Brasil, com nossa reveladora múltipla sonoridade isso é mais acentuado. Ou ao menos é para mim, mergulhado que estou neste ambiente. Por outro lado, proponho restituir à canção popular (palavra cantada), dessa que ouvimos no rádio nos momentos mais variados do dia, uma potência estética desviada ao longo do tempo à palavra escrita; devolver a canção a ela mesma. E a utilização da sereia como figura, claro está, reside na infinidade de verdades – de subjetividades – que sua voz entoa; no incômodo restaurador de forças que sua figura espalha.

 

2. A canção

Quando meu pai chegou à nossa casa – no interior da Paraíba – e colocou o disco de Paulo Sergio para tocar, exatamente na canção “Meu filho Deus que lhe proteja”, achei mórbido. Mais grave foi saber que o cantor havia morrido e que aquela canção era uma montagem feita pelo filho de Paulo Sergio. Alternando o canto do pai feito para a canção “Quero ver você feliz” (“Meu filho Deus que lhe projeta e onde quer que esteja eu rezo por você”), de Paulo Sergio e Carlos Roberto, e o seu próprio canto, o filho do cantor respondia ao pai morto dizendo: “Hoje estou mais crescido, tanto tempo já passou, sempre vou levar comigo tudo que você me ensinou”. Passei dias assombrado com aquele dueto que revelava para mim menino os caminhos que se abriam através das possibilidades tecnológicas à canção popular. Esta é a experiência mais antiga que tenho – logo um dueto entre a vida e a morte – diante do que a canção gravada, mixada, guardada, eletronicamente manipulável podia fazer: remixes, parcerias entre cancionistas que nunca se encontraram pessoalmente, ressurreição dos mortos, numa sentença: produção de presença, construção de sentido – metas complementares da expressão cancional. A canção é sempre uma canção de afirmação da vida, retorno ao paraíso abundante que o útero materno outrora representou, e tem nos cancionistas – neo-sereias – os instrumentos certos para tal empreitada.

É possível perceber, a título de exemplo, no narrador do Marcel Proust de No caminho de Swann uma tentativa feliz de explicitar tamanha experiência estética. A certa altura do livro, o narrador descreve o modo como a sonata de Vinteuil canta Swann: dá-lhe sentido à vida. Para Swann, mergulhado nas ondas sonoras, era “como se ela [Odette – a amada objeto de desejo] tivesse entrado (...) todas as lembranças (...) despertaram e subiram em revoada para lhe cantar perdidamente, sem piedade para com o seu atual infortúnio, os refrãos esquecidos da felicidade” (Proust, 1979: 201) e “Swann percebeu, imóvel em face daquela felicidade revivida, um infeliz que lhe causou piedade porque não o reconheceu logo, tanto que teve de baixar os olhos para que não vissem que estavam cheios de lágrimas. Era ele mesmo” (Proust, 1979: 202). A frase sonora da sonata revelou Swann a ele mesmo, salvou a personagem do nada, pois, como anota o narrador de Proust: “talvez o nada é que seja a verdade e todo o nosso sonho não exista, mas sentimos que então essas frases musicais, essas noções que existem em função do sonho, não há de ser nada, tampouco. Perecemos, mas temos como reféns essas divinas cativas que seguirão a nossa sorte. E a morte com elas tem alguma coisa de menos amargo, de menos inglório, de menos provável, talvez” (Proust, 1979: 204). A vontade de autocanto (cantar-se para permanecer) preside qualquer canção: a canção só é canção na voz de alguém. Tal e qual como ocorre ao indivíduo. Parafraseando o que diz o sujeito da canção “Atenção”, de Arnaldo Antunes, Alice Ruiz e João Bandeira (“Atenção / essa vida contém / cenas explícitas de tédio / nos intervalos da emoção”), penso que a vida contém cenas explícitas de tédio nos intervalos da canção, e a música é o gesto de imersão do homem no homem: é o instante do mais que humano em nós. Instintivamente, intuitivamente.

Reconheço que Proust esteja tratando apenas da música, enquanto o esforço aqui tem como objeto a canção. Não quero fazer confusão entre as duas instâncias. Até porque, ao que tudo indica, há mais prestígio social em ser musicista e/ou “letrado”. A trinca está em ser cancionista. Porém, se a música é pura sensação, e a canção – pela palavra – direciona os sentidos como o narrador de No caminho de Swann quer fazer crer, quando observa que “a supressão das palavras humanas, longe de deixar ali [no momento da audição de Swann] reinar a fantasia, como se poderia crer, a tinha eliminado: jamais a linguagem falada foi tão inflexivelmente fatal, jamais conheceu a tal ponto a pertinência das perguntas, a evidência das respostas” ((Proust, 1979: 205), o que dizer de Riobaldo, de Grande sertão: veredas, e sua relação com a canção de um certo Siruiz?

Encontro semelhanças nos dois registros literários. Salvo engano, há, em ambos, e no caso de Guimarães Rosa, sendo o livro narrado em primeira pessoa, mesmo mediado pelo “doutor”, isso fica mais evidente, a sugestão de que a linguagem sonora mantém a lucidez das personagens. Uma lucidez que não se contrapõe à loucura, pelo contrário, agrega-se a esta na fixação do sujeito no mundo. “Aquilo molhou minha ideia”, diz Riobaldo ao referir-se à cantiga de Siruiz, para completar: “O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feitos bichos e árvores, refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz” (Rosa, 2001: 138). Ou seja, a memória afetiva do jagunço é quase toda pautada por sons. E é a cantiga de Siruiz, ouvida uma única vez, reaparecendo em momentos pontuais do livro, que distingue Riobaldo. A ponto de ele se questionar, quando percebe, diante das lutas, que está esquecendo-se da (sua) canção: “no peso ruim do meu corpo, eu ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz? Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no não-acontecido nos passados” (Rosa, 2001: 332). A canção salva Riobaldo. Perder a canção é desassemelhar-se de si e ele, para manter-se vivo, precisa compor, com os restos de lembrança, seu autocanto: sua metacanção, seu reposicionamento na vida – no curso das horas.

Deste modo, as metacanções – canções que se auto-cantam, auto-referem –, irmãs da metalinguagem e da metaficção, são o festim da vida. Perscrutando o que é cantar, elas têm como procedimento básico a tentativa de investigar além do sensível: elas fazem perguntas para as quais não há respostas prontas e/ou simples. A metacanção quer ter acesso ao lugar aonde só se chega através da própria canção. Ela desdobra-se para dentro (intratextualidades) e para fora (intertextualidades) de si, na busca de cumprir seu intento fadado ao fracasso: a autodefinição. Quando a voz gestualiza “essa canção é só pra dizer e diz” (“Você é linda”, de Caetano Veloso), “olha aqui, presta atenção, essa é a nossa canção” (“Nossa canção”, de Luiz Ayrão), “essa canção é mais que uma canção de amor” (“Iolanda”, de Pablo Milanês, na versão de Chico Buarque), ou ainda, entre tantos outros exemplos, “Isso é somente uma canção” (“Apenas um rapaz latino-americano”, de Belchior), ela revela a canção para si mesma: a canção não esconde para si, nem para o ouvinte, que ela é canção: uma verdade estética – a única verdade possível.

A profusão de metacanções no Brasil é sintoma de nosso recuo na instrumentalidade classificatória, na ausência de uma única definição para o fenômeno da brasilidade. Por aqui, suspendendo o juízo, a metacanção pensa a própria canção e, de viés, o país e sua indefinição histórica. A canção na América Latina – e aqui o Brasil é a América Latina – já é, por si, metacanção, isto é, coloca o país diante do espelho, tencionando seus signos e símbolos: oferecendo um nível elevado de possibilidades denotativas – de filigranas (partes) que, em si, contém a verdade (o todo) sempre prismática, perspectivizada – líquida: água que se molda (adapta) aos sentidos novos, de novo, circularmente. Toda tentativa de decifração do Brasil implica aceitar o convite sedutor à audição do canto de suas neo-sereias. São elas que, no dia-a-dia, cantam o que somos, ensaiando representações – estetizadas e/ou artificializadas – de nós mesmos. É esta relação circular de interdependência coletiva, de apropriação individual, de releitura das certezas e de consumo rápido e frágil, engendrada pelas canções, o que melhor constitui – como logo pretendo mostrar – a neo-sereia. Como já sugeri, a profusão de metacanções bastaria para assinalar nela – na sereia moderna – a instância neosirênica. Vejamos três características que identifico no gesto do nosso cancionista e que podem servir como mecanismos de aproximação com ele.

 

a) Neo-sereia, o cancionista moderno é ouvinte de canção

Quando, em “A canção” (Les Pops, 2010), de Rodrigo Bittencourt, o sujeito canta (cita), evocando a memória afetiva e sonora do ouvinte, “Canção de protesto”, de Caetano Veloso, a sua [do sujeito cancional] condição de ouvinte se apresenta como um mecanismo indispensável à sua posição de cancionista: ser ouvinte é um pré-requisito realçado pelo discurso do sujeito que fala e manifesta-se dentro da (nova) canção composta. Este diálogo só é possível, e encontra repercussão no ouvinte, com o cancionista – voz que fala por trás da voz que canta – inserido num contexto em que as canções (e suas sereias) podem ser acessadas a qualquer instante, e em qualquer lugar. Ele tem à sua disposição a história registrada (guardada em discos e arquivos) da canção. Cabe ao cancionista moderno, portanto, sugerir novos outros sentidos aos significantes outrora já cantados. É assim que, se na canção de Caetano Veloso o sujeito já alertava para a profusão do canto dos amores fracassados – “Odeio ‘As time goes by’ / O manifesto / Canções de amor / Muito ciúme, muita queixa, muito ‘ai’ / Muita saudade, muito coração” –, o sujeito criado por Rodrigo Bittencourt aponta: “A canção cansou de chorar no refrão / A canção não quer mais tocar / Cansou de não ter o que falar”. Aqui, a distinção semântica trabalha a favor do cancionista, auxiliando na recepção da canção que, recuperando afetos sonoros no ouvinte, alcança seu objetivo: promover a crítica do excesso de lirismos vazios.

 

A canção

(Rodrigo Bittencourt)

 

a canção cansou de dizer coração

a canção cansou de sofrer por paixão

a canção cansou de chorar no refrão

a canção não quer mais tocar

cansou de não ter o que falar

 

a canção cansou de se oprimir

de resmungar

a canção cansou de não se ouvir

de gaguejar

a canção nem quer mais cantar

ela quer se abrir e experimentar

 

engole verso pra sorrir coração

estufa o peito pra gritar

 

preciso me ouvir

preciso sonhar

 

Podemos dizer, desde modo, que a neo-sereia exige do ouvinte um trabalho semelhante e em diferença ao seu. Dito de outro modo, sem o conhecimento da canção citada dentro de “A canção” o ouvinte pode até aproveitá-la sensorialmente, porém não a fruirá em sua completude poético-estética. O esforço do cancionista está em apresentar significantes já ouvidos (cantados) de forma tão natural – forjadamente desleixados – que o ouvinte da nova não perceba, na primeira audição da canção, o trabalho intercancional. É neste ponto de equilíbrio entre a informação já conhecida e sua ressemantização que reside a competência do cancionista moderno. Entram em jogo os elementos lúdicos, sublinhadas em “A canção” pela ironia ao cool. Enquanto o sujeito da canção de Caetano conclui: “É o abusar de um santo nome em vão [amor]/ Ou a santificação de uma banalidade / Eu queria o canto justo na verdade / Da liberdade só do canto / Tenra, limpa, lúcida, e no entanto / Sei que só sei querer viver / De amor e música”; mexendo na ferida, o sujeito do Les Pops – grupo do qual Rodrigo faz parte – sugere: “A canção cansou de dizer coração / A canção cansou de sofrer por paixão”. Ou seja, “A canção” é um canto que experimenta sair do lugar onde a dor (de amor) não tem razão.

O processo de traduzir em canção as canções que se ouvem, sem receio de que tal procedimento seja descoberto pelo ouvinte, pelo contrário, o recalque da influência aqui não existe, caracteriza o processo de artificialização da vida engendrado pelo cancionista moderno. Quando Daniel J. Letivin, em A música no seu cérebro, pensa sobre o modo como os cancionistas podem investir em dado aspecto, a fim de conseguir um determinado efeito no ouvinte, Levitin se aproxima das conclusões lançadas por Octávio Paz (O arco e a lira), para quem o poeta utiliza o ritmo já existente no mundo e em si para compor, e corrobora minhas ideias. Paz nota que, mais que um acordo, há um acorde nos diálogos universais. Paz percebe e analisa o ritmo como conceito primordial do fazer poético. O autor fala do mundo como poema, e como tal, provido da repetição rítmica que é a invocação e a convocação do tempo original. Se não estou enganado, o mesmo pode ser pensado em relação ao cancionista moderno que interfere na canção interior (individual e coletiva) para movimentar o sujeito das canções e influenciar os indivíduos-ouvintes. Sem canção não há vida. E a neo-sereia sabe disso swingnificando a vida.

 

b) Ouvinte de canção, a neo-sereia permite-nos a audição comparativa

Se a canção só existe durante o momento perfeito de emissão/audição, vocoperformático, a nova sereia, nossa contemporânea, já não precisa mais do outro – da capacidade mnemônica do ouvinte – para eternizar-se. Ela já surge devidamente gravada, guardada, arquivada, eternizada: pronta para ser acionada, ou não. O que não impede que o ouvinte mergulhado no mar sonoro instável dos suportes móveis se aproprie das canções. Quantas vezes ao longo do dia, sem que tenhamos consciência de tal gesto, tamborilamos, assobiamos uma canção? Quantas vezes criamos versões verbais íntimas para uma determinada melodia que nos sequestrou em algum momento do dia?

Sempre que me deparo com a regravação de uma canção canonizada – devidamente guardada na memória da história da canção e do afeto dos ouvintes – faço-me a pergunta: Por que cantar os clássicos? Será porque “tudo só se acha no passado”, como Tom Zé afirma a cerca altura do documentário Palavra encantada? Mas e “o novo [que] sempre vem?”, como diz o sujeito de “Como nossos pais”, de Belchior? Talvez o segredo esteja na união das duas pontas. O fato é que para o bem e para o mal, olhando em retrospectiva, há lacunas facilmente identificadas pela História na subjetividade do indivíduo latino-americano e isso se reflete na arte: no canto do povo deste lugar. Repito: cantar a vida é necessidade de todo indivíduo. Mas para o latino-americano é urgência. E ser um cantor aqui é ser antropófago e canibal, ser consciente da condição de devorador (recriador, tradutor, coautor) de canções. Mais que isso: ser um canibal devorado, que não se acomoda na afirmação “foi assim”. Pelo contrário, afirma o “assim eu quis” e “assim eu quero”, nietzscheano. Isto porque a musa latino-americana é híbrida e o cancionista atento a isso equilibra e canta “de um lado este carnaval / do outro a fome total” – nem luxo, nem lixo – a fissura do sentido, a multiplicidade de afetos.

Noutras palavras, para que uma regravação obtenha relevância na história é preciso que ela ilumine lugares ainda não tocados pela própria canção; forje o efeito especial do ineditismo; promova, pelo empenho do cancionista, sensações novas; e imponha uma releitura do conhecido: crie novidades – o velho-novo, de novo, em diferença. Dito isso, a versão que Otto oferece para a canção “Carcará”, de João do Vale e José Cândido, insinua-se como metacanção. Detentor de uma assinatura cancional própria, Otto sabe que o cancionista latino-americano é carcará: pega, mata e come canções para devolver à cultura – repor na linha evolutiva – uma canção que nunca termina de dizer algo novo. Ao mesmo tempo em que emula versões anteriores, Otto se posiciona como parceiro criador e criativo dos autores de “Carcará”. Clássico na voz da médium da sereia Maria Bethânia, com Otto “Carcará” ganha ares de peleja: trilha sonora das emboscadas do cangaço, da movimentação do corpo sertanejo, nordestino, brasileiro. Gesto vocal e melodia estão a serviço da manutenção de uma mitologia nordestina: o eterno retorno, em diferença, do carcará. Se o sujeito da canção não está no sertão – o “lá” no início da letra indica isso –, e usa elementos urbanos – “avoa que nem avião” – para conseguir comunicação com seu interlocutor distante das realidades do lugar cantado, Otto, sem rancor esterilizante, mergulha na tradição, remexe significantes e oferece uma nova canção: sertaneja, rosiana, misturada, nada panfletária, menos síntese épico-dramática – a interpretação de Bethânia entrou para o cânone também pela força histórica que ela imprime – e mais fragmento de subjetividade – desapegada de ideologia massificante, porque noutro contexto.

Eis a diferença e a relevância das duas versões: se a versão clássica de Bethânia – necessariamente seca, ferina e viril – interferia pungentemente na doída repressão do contexto histórico, a versão de Otto festeja o hibridismo da cultura local: onde o “dentro” (autêntico) e o “fora” (ameaçador) se misturam; onde o indivíduo se mira e se movimenta.

 

c) O cancionista moderno mostra que a canção é muito mais do que sons, a poesia é mais do que palavras e usa a mediatização a seu favor

“Mas se você tira a minha voz o que me resta?” pergunta a pequena sereia de Hans Christian Andersen, apontando o destino emudecedor e, portanto, trágico das sereias. Toda-phoné, a sereia reconhece a perda de sua essência na civilização da escrita. Para sobreviver, coube à sereia representar apenas a beleza física: e se inserir no mundo da visualidade. Vocálico que ainda não se elevou, a sereia é o monstro que mata o homem. Afinal, era ele quem saia ao mar, em um tempo em que, convenientemente, a mulher precisava ser sem voz. O silêncio das sereias e, consequentemente, o foco no físico, no corpo, ainda hoje serve à ideologia que teima em querer manter o silêncio da mulher. A sereia oferece ao simples mortal aquilo que a musa só oferece ao poeta.

Na iconografia pictórica, o quadro de René Magritte em que uma impactante sereia invertida – parte de cima peixe, parte de baixo mulher – aparece deitada na praia é a exemplar radicalização do emudecimento sirênico: feita agora apenas ao desfrute sexual. Ou seja, se é para renunciar a alguma parte, a cabeça e a boca são as opções. Inserindo-se na tradição crítica do destino das sereias, encontramos na série de pratos de Adriana Varejão o Sereias bêbadas (2009). Feito em óleo sobre fibra de vidro e resina, com dimensões de 150cm x 25cm, o prato apresenta as sereias como elementos que despertam o apetite. Não mais “apenas” sexual, mas também gustativo. Nadando entre figos suculentos e ostras semi-abertas, as sereias estão em seu habitat natural, mas a serviço tanto do “feliz poeta, quanto do esfomeado”, como canta o sujeito de “A novidade”, de Gilberto Gil e Paralamas do Sucesso. A sugestão iconofágica (de devoração da imagem historicamente reconstruída das sereias) de Varejão produz o sensível. Somos convidados ao mergulho vertiginoso na concavidade do prato junto com os seres canoros dispostos em movimento de redemoinho. Desencarnado de nós, o sensível desperta a nossa subjetivação e cria uma aporia: por onde “comer” as sereias?

 

 

 

E é nos figos em reconvexo, tridimensionais, do prato de Varejão que supomos tocar o sensível. Enquanto no convexo de Sereias bêbadas encontramos a harmonia por meio da recuperação da padronagem floral azul e branca da porcelana. Tudo quer ajudar a potência receptiva da sexualidade feminina: o contato entre sujeito e objeto. Ou melhor, quer ser meio, puro desperdício erótico.

Da mesma série e em mesmas dimensões, há ainda que se destacar o prato Mãe d’água (2009). Aqui, uma Iara (sereia negra-mestiça-amazônica) reina olhando o espectador sobre um fundo de água azul-escuro e agitada, entre seres aquáticos e um menino negro manchado de espuma branca. Mais um movimento iconofágico de Varejão. Agora são jabuticabas que, tridimensionais, se protuberam na superfície côncava do prato. Estourando de tão maduras, brilhantes e apetitosas, as frutas nativas da Mata Atlântica funcionam na mesma intenção de "corpo à disposição" que os figos e mariscos do outro prato. Já a parte convexa é trabalhada em estilo marajoara.

Sobrepostos, os dois pratos de Adriana Varejão, problematizando às técnicas - cerâmicas "feitas" de fibra de vidro, ou melhor, fibra de vidro que se finge cerâmica - servem à investigação do lugar diacrônico do indivíduo, em perspectiva pós-colonial. Ao invés de uma análise histórica, partimos para uma análise geográfica da inversão, do fingimento, da invenção.

 

 

 

E é aqui que entro na leitura da canção “Dreamworld: Marco de Canaveses”, de David Byrne e Caetano Veloso (Onda Sonora: Red Hot + Lisbon, 1998, Red Hot + Rio 2, 2011 e Live at Carnegie Hall, 2012). A canção em terceira pessoa narra na primeira parte a trajetória de Carmen Miranda como signo, símbolo e emblema de hibridização. Já na segunda parte narra o trabalho meticuloso de um travesti que se monta para manter o sonho da presença de Carmen. Tais inferências são percebidas melhor quando se assiste ao clipe da canção.

O nome “Carmen Miranda” não aparece em nenhum momento da letra, mas está proliferado em toda a canção, inclusive nas vozes em falsetes de Veloso e Byrne. Além de se condensar no corpo do travesti que a performatiza entre o espocar de bolhas de sabão ao final do clipe. Nascida em Marco de Canaveses, Noroeste de Portugal, Maria do Carmo é sereia que transplantada e ressignificada inventa-se Carmen Miranda: muda o modo de cantar no Brasil, exportando o país para o mundo. Ultra e pós-moderna, não à toa ela é recuperada pela Tropicália, Carmen dilui os limites que separam o local e o global, o íntimo e o cosmopolita. Ela se inscreve como uma estrutura crítica dançante que dessacraliza a história.

 

Dreamworld: Marco de Canaveses

(David Byrne / Caetano Veloso)

 

Tem

Quem não tem

Ela tem

Diz que tem

Mas também

Nem precisa dizer

 

And if it is real

Wanna touch

Wanna feel

She can dance

She belongs

She believes

 

Marco de Canaveses

O nome da terra

Onde Iara Oxum nasceu

And the taste of each flower is sweet

So why do the say she's a bad girl

 

She lives in the dark

Breathing in

Breathing out

It is wild

It is real

It is good

 

Mãos

Pés e mãos

Contramãos

Sins e nãos

Olhos sãos

De rolar e de ver

 

She's living in a dreamworld

Like regular people

And she's caught by the tail

 

Filha de um mestre cafuso

Deusa do céu

Como tu e eu

 

Ela veio

Ela vem

Vem trazer encanto ao mundo

 

She's living in a dreamworld

Like regular people

And she's caught by the tail

And the taste of each flower is sweet

So why do they say she's a bad girl

 

Em 1980 que ela veio ao mundo

Com os olhos azuis

E na testa as estrelas da cruz

 

Ela agora moça

Agora ela

Agora faz

E na pele castanha ela traz uma luz de cajus

 

Marco de Canaveses

o nome da terra

Onde Iara Oxum nasceu

 

Filha de um mestre cafuso

Deusa do céu

como tu e eu

 

Take away, take away

Take away that hurting feeling

Ela veio, ela vem

Vem trazer encanto ao mundo

Wash away, wash away

Wash away that hurting feeling

Ela veio, ela vem

Vem trazer encanto ao mundo

 

O som do theremin – infelizmente, ausente na versão ao vivo – que abre e acompanha fantasmagoricamente a canção é Carmen Miranda, agora performatizada no corpo do travesti: esta neo-sereia – “She lives in the dark / Breathing in / Breathing out” – que desempenha o papel cultural essencial de manter viva a memória afetiva das divas que inventaram nossa geo-história. Ela veio, a Maria do Carmo de Marco de Canaveses – “o nome da terra / onde Iara Oxum nasceu”, e ela vem, a Carmen Miranda – “Em 1980 que ela veio ao mundo / Com os olhos azuis / E na testa as estrelas da cruz”.

Bêbada em sonhos, lúcida demais, a Carmen de hoje guarda a Carmen-metáfora no corpo inconcluso, montado: Iaroxum – um novo orixá resultado da fusão diplomática imagética, harmonia que não dispensa a tensão, a fricção. Guitarra e percussão, pandeiro e violino, agogô, repique e programação eletrônica. Sereia, “She's living in a dreamworld / Like regular people / And she's caught by the tail”, o sujeito de “Dreamworld: Marco de Canaveses” ecoa o canto já cantado: “Ela diz que tem / diz que tem, diz que tem // (...) // Tem pele morena, o corpo febril / e dentro do peito o amor no Brasil”, para colocá-la na geografia do corpo que agora lhe serve de suporte. As “Mãos / Pés e mãos / Contramãos / Sins e nãos / Olhos sãos / De rolar e de ver” se hibridizam com uma entidade que “Agora moça / Agora ela / Agora faz”. A representação pressupõe a imaginação. Olhos azuis e pele castanha – as tais jabuticabas oferecidas ao encanto do mundo no prato de Adriana Varejão.

Claro está que uma análise cronológica dos fatos não dá conta das torções críticas e teóricas que sugiro aqui. Ao inventar um sentimento íntimo entre as linguagens e seus signos, cabe mostrar que o histórico está presente no agora através da seleção de dados que possibilitam os contatos e a análise. Deste modo, os pratos de Adriana Varejão não são menos cerâmica por serem de fibra de vidro. Nem Carmen Miranda é menos ela por estar no corpo dele. Portanto, é preciso pensar com rigor a cultura brasileira também a partir da combinação afetiva (agrado e desagrado) de elementos diacrônicos, a partir das invenções e das inversões artificiosas: pintura marajoara feita em fibra de vidro; negro-índio tingido de espuma branca; tropicalidade colada à pele da moça vinda da Europa; o canto do feminino que há no corpo morfologicamente masculino; vozes inglesa e brasileira se justapondo – tudo cantando o lugar do Brasil no mundo.

É preciso destacar que o uso das mídias não está apenas na forma da canção. Aparece também no conteúdo. “Meu rádio e meu mulato”, de Herivelto Martins, por exemplo, é a voz de um sujeito que tenta usar o rádio como isca para atrair o seu objeto de desejo: o mulato do título. Colocando-se no lugar do não-cantor, o sujeito usa as sereias que tocam no rádio para seduzir o mulato: fazer o trabalho de sedução para ele. Em 1938 o poder aglutinador de pessoas, exercido pelo rádio, era enorme. Algo aparentemente insuspeitável em tempos de mp3 e Ipod, quando o indivíduo pode carregar suas sereias na palma da mão e ter as experiências sonoras necessárias à vida, mesmo de forma pessoal e restrita. Aliás, o "I" que se prolifera (Ipod, Iped, Iphone...) é sintoma do assombroso movimento de individuação contemporâneo. Seja como for, a canção “Meu rádio e meu mulato” nos lembra o tempo em que, objeto caro (o sujeito da canção compra a prestação), o rádio, quando ligado em espaços onde sua presença era luxo (o morro, por exemplo), servia de convergência dos indivíduos. Afinal, todos queriam – e continuam a querer – ouvir o canto e o cantar. Mas com o passar dos tempos, com a evolução dos suportes midiáticos, e com a possibilidade do ouvinte poder ter em casa os discos do cantor preferido, e depois “aquela canção específica”, via mp3, ao que parece, perdemos esta capacidade de reunião em torno da sereia. Salvo os shows, que é outra história. Se antes, ligando o rádio na sala, ou, mais comumente, na cozinha, criávamos o mar de ondas sonoras para mergulharmos (ouvir a música pelo corpo todo), hoje, centrado no ouvido, parece que perdemos algo. O certo é que cantando-nos, a sereia canta-se – e vice-versa – em um jogo erótico deliberado e acordado em silêncio: na fração de tempo que separa uma canção de outra, seja no rádio, seja no aparelho de mp3.

Avançando um pouco a questão, lembro-me que um conhecido provérbio latino diz que “as palavras voam, mas a escrita permanece”. Obviamente, quando ele foi cunhado não havia os diversos suportes que conhecemos hoje e que auxiliam na preservação da palavra, do verbo. Isto é, usado, ainda hoje, para apontar a superioridade da escrita, sobre a vocalidade, o provérbio, de viés e algo profeticamente, lança luz sobre as diversas culturas (vocais, escritas, massivas, midiáticas e ciber) que estão à serviço do registro da palavra, no continuum da cultura humana. Hoje, as palavras, literalmente, voam; suspendem-se no tempo e no espaço de suportes invisíveis; atravessam limites em uma velocidade estonteante, inapreensível fisicamente por nós, que, por sua vez precisa “aprender a se multiplicar em identidades deslizantes” para dar conta de tanta sedução: das novas formas de materialidade. Com os sistemas de registro e guarda de sons, as culturas vocais encontraram meios para a não-dissipação; de permanência.

 

 

3. Doce mistério

É na voz onde mora todo o mistério da sereia: suas inflexões, nuances, alturas, pausas. Se o que é dito afeta, o modo como se diz afeta muito mais. Ao produzir presença – calor – a voz da sereia, dizendo aquilo que mobiliza o indivíduo, arrebata, seduz, mata e dá vida. É a voz do pastor Ernani o que toca a cindida Lavínia, no livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino (2005). “Algo havia mudado dentro dela. E Lavínia queria mais. Queria outra dose da droga poderosa que a voz e as palavras daquele homem continham” (Aquino, 2005: 86), anota o narrador. Imersos no mar sonoro dos apelos cotidianos e íntimos, estamos expostos, porque carentes, às variadas sereias do mundo. Lavínia, pela voz de Ernani, “sem a ajuda de aditivos, estivera a salvo do peso do mundo durante horas, imune à música da outra que, sereia, tocava em seus ouvidos fazia dias” (Aquino, 2005: 94), reforça o narrador. Aquelas palavras, já tantas vezes ouvidas, em momentos distintos da vida, ditas por Ernani, produziu em Lavínia uma mirada no espelho: a descoberta inconsciente de filigranas escondidas dentro da mulher agora cantada e tocada por outras aberturas.

Um blend de concretude (de corporidade) e eteridade (de ilusão) assalta os sentidos do ouvinte das sereias. E é no lugar exato dessa mistura que o indivíduo se descobre vivo: feito à costumeira inadequação da existência. É neste ponto e travessia que o indivíduo se reposiciona. Para, em instantes, quando a canção acaba, quando a voz silencia, tornar-se novamente perdido e carente de outra canção, de outra voz sirênica.

É neste ponto que retorno ao texto de Proust para verificar a passagem em que o músico se inscreve como amigo do ouvinte. Em especial quando o narrador anota: “E pela primeira vez o pensamento de Swann se transportou, num impulso de piedade e ternura, para aquele Vinteuil, para aquele irmão desconhecido e sublime que tanto deveria ter sofrido também; qual teria sido a sua vida? Ao fundo de que dores fora ele buscar aquela força de deus, aquele poder ilimitado de criar?” (Proust, 1979: 203). Sem dúvida, as implicações mercadológicas intervêm na artesania da canção, até porque ela surge como produto da indústria cultural, porém, desvencilhando-se de tais questões, olhando a canção como o objeto estético que é, como transcanção, o que traduz todo o meu empenho aqui, arrisco-me a dizer que a matéria de todo cancionista é o humano: os indivíduos e suas vicissitudes. E nisso ele confraterniza com o ouvinte, sua resposta cancional, ao abrir frestas luminosas no vazio cotidiano. Diferenciando-se da sereia mitológica grega, cujo canto arrastava o passante para a morte, sem a possibilidade de retorno do indivíduo, a sereia moderna, a fim também de manter-se entre as intenções do ouvinte, a fim de vender, dirão alguns, forja-se na inscrição ficcional como amigo, cúmplice e parceiro desse ouvinte.

Sintomaticamente baseado na evolução darwiniana, Daniel Levitin parte da tese de que a canção distingue o homem dos outros animais. E que ela é determinante na formação da linguagem, da cultura e do pensamento. Fugindo do método (apenas) subjetivo, para responder a perguntas tais como o modo como o prazer (e o gosto) musical se inscrevem em nós, Levitin vai desde a ressonância magnética de cérebros em contato com diferentes sons, e de artistas durante o trabalho, até mediações da afinação de pessoas comuns e de cancionistas. Ele postula que a formação e então a manipulação de expectativas está no coração da canção e é realizada de um número incontável de maneiras. Até porque, com o passar do tempo, nosso cérebro passa a esperar determinado som, cabendo ao cancionista – à sereia moderna – produzi-lo. A neo-sereia, portanto, é aquela que consegue ter a sensibilidade de captar determinada necessidade coletiva – o sopro de uma época, de um grupo, de uma tribo – e, através dos recursos tecnológicos, criar a experiência sonora – a canção – desejada.

“Prometo rios de leite / com seus afluentes / uma foz e o mar / aceno com presentes / que só o próprio tempo / pode adivinhar”, diz o sujeito de “Canção necessária”, de Guinga e Zé Miguel Wisnik. Por sua vez, o sujeito de “Nossa canção” (Zé Miguel Wisnik / Mauro Aguiar) anota que: “as canções / só são canções / quando não são / promessas”. Fojo aqui este diálogo metacancional possível entre as duas canções guardadas no disco Indivisível (2011) para observar o lugar onde a canção se realiza, onde ela é no mundo. Interferindo no tempo ordinário, suspendendo as promessas e impondo-se sempre no presente, a canção é enquanto dura suas emissão (execução) e audição. É neste instante-já, ao oferecer verbo, melodia e, principalmente, calor ao ouvinte, que a canção e, consequentemente, o seu sujeito sirênico se realizam, encontram um lugar para ser. Quando em ação, quando de fato ela é ela, a canção explode as promessas cumprindo-as: dando sentido ao absurdo cotidiano do ouvinte que, por sua vez, também se sente vivo: mimado, ninado.

 

Nossa canção

(Zé Miguel Wisnik / Mauro Aguiar)

 

Nossa canção

guarda canções

diversas

minha ilusão

tua emoção

mil dimensões

imersas

 

outras virão

buscando a luz

de cais em cais

naus sobre naus

espessas

pois as canções

só são canções

quando não são

promessas

 

nessa canção

cabem canções

dispersas

minha razão

teu coração

mil sensações

avessas

 

outras virão

de encontro a nós

de voz em voz

de par em par

esparsas

pois as canções

só são canções

quando não são

mais nossas

 

Há mais vida na canção (condensação – harmônico-contraditória de canções) do que no real. “A experiência estética nos dá certas sensações de intensidade que não encontramos nos mundos histórica e culturalmente específicos do cotidiano em que vivemos” (Gumbrecht, 2010, 128). A canção cria a realidade – nossa (ouvinte em ação) e de quem dela (no futuro) se apropriar. Afinal, “as canções / só são canções / quando não são / mais nossas”, como diz o sujeito de “Nossa canção”, complexificando também a noção de autoria e insinuando parcerias invisíveis, porém constituidoras. A canção é (de todos: e só assim ela é canção) quando deixou de ser (de alguém: de um); quando imbrica-se – “de par em par / de voz em voz” – às outras diversas e espessas canções, criando o mar sonoro necessário à ancoragem (fluida e perecível) do ouvinte. A canção é o efeito especial que promove o indivíduo à vida. Somos alguma coisa para ser cantada. Juntando fragmentos daquilo que pode (ou não) ser esta coisa, recolhendo sons, o sujeito de “Nossa canção” quer dizer e diz.

 

4. A voz de alguém cantando

Em A pele que habito (2011), filme de Pedro Almodóvar, a jovem Norma (Ana Mena), brincando distraidamente no jardim, cantando os versos de “Pelo amor de amar”, de José de Toledo e Jean Manzon, desperta a mãe marcada por um incêndio que lhe desfigurou o corpo. Em uma torção mítica feliz, a filha é a sereia da mãe. A voz de Norma – suas inflexões infantis, seu esforço para cantar em português uma canção de ninar desnaturada – dá o sopro de vida que Gal (a mãe) necessita. “O coração do mundo canta no meu coração / Meus pés seguem sozinhos a dançar / Eu não conheço em mim a grande dor da solidão / Se em tudo eu encontro o dom de amar”, canta. E ao mesmo tempo, é essa a voz que também direciona a personagem à luz, a ver-se refletida em sua aparência aterradora, ao fim trágico e irrefutável. Desse modo, a voz do coração da criança é o veneno-remédio de Gal. “Só a morte apazigua esse nada-mais-tem-sentido que a decrepitude nos sussurra a todo instante. Canto de sereia às avessas convencendo Ulisses de que o mar secou” (Ferreira, 2010: 45-46), anotaria o narrador do livro Minha mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira.

As consequências do gesto de furtar da mãe o papel de sereia definirá a existência da filha. E a trama de Almodóvar. Mais tarde, a audição da mesma canção, agora em espanhol e na voz de Buika (uma cantora profissional), arrastará a filha ao destino. “Pelo amor de amar / Quero ser a luz que sorrir na flor / Pelo dom de amar / Quero ser a flor que se deu de amor”, encerra a canção gravada por Ellen de Lima em 1960 para o filme Os bandeirantes, de Marcel Camus.

 

Pelo amor de amar

(José Toledo / Jean Manzon)

 

Quero a luz do sol

Quero o azul do céu a cair no mar

Quero o mar sem fim

Para não ter fim este mal de amar

 

Como a flor feliz que ver nascer a flor

Só nasci para viver no solo vento

Quem me quer amor

Tem de amar também meu amor de amar

 

O coração do mundo canta no meu coração

Meus pés seguem sozinhos a dançar

Eu não conheço em mim a grande dor da solidão

Se em tudo eu encontro o dom de amar

 

Pelo amor de amar

Quero ser a luz que sorrir na flor

Pelo dom de amar

Quero ser a flor que se deu de amor

 

Tenho sugerido, e repito, que somos alguma coisa feita para ser cantada. E cantante. Sustentamo-nos na voz. Mas não é qualquer canção. E, principalmente, não é qualquer voz. A voz que (me) canta é a voz que governa (meus) mundos. Em geral, pela nossa trajetória histórica e genética, pensamo-nos (nós: latino-americanos) com o corpo todo (homo ludens pulsando), e a voz tem presença decisiva nesse processo, como uma resposta intuitiva ao raciocínio colonizador, posto que a voz convida ao movimento: à dança. “Nunca fomos catequizados”, anota Oswald de Andrade em seu “Manifesto antropófago”. A palavra escrita não é suficiente para nós. O empenho da palavra falada sempre teve mais valor do que o da palavra escrita. Muito embora, em um gesto típico de cópia mal sucedida e subalterna, tenhamos burocratizado em excesso nossos pensamentos e palavras, atos e omissões. Mais do que qualquer outros povos, estamos melhor preparados, porque fundamo-nos sobre os atos de criar e conectar-se, para viver o mundo contemporâneo. O jeitinho é nosso veneno-remédio, nossa sereia a nos arrastar à vida (empurrar para frente) e à morte.

Digo tudo isso para destacar a beleza da voz de Jussara Silveira cantando “A voz do coração”, de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, no disco Ame ou se mande (2011). Há nas inflexões vocais de Jussara – nas nuances sutis nas alturas melódicas – um descompromisso (natural e espontâneo: “que canta como que pra ninguém”) com aquilo que é dito. Voz que luta eroticamente com uma melodia aos soluços, compassada. Já tendo sido gravada por Celso Fonseca, com Jussara Silveira “A voz do coração” ganha contornos sirênicos sedutores. Jussara e sua voz nos arrastam para um campo onde somos amor da cabeça aos pés: desperta em nós a nostalgia da pura interioridade. Semelhante à criança que desperta a mãe. “Quem poderá em vão calar / a voz do coração?”. A pergunta inicial do sujeito parece querer refletir a nossa dúvida humana.

Entre a razão (o logos desvocalizado de que fala Adriana Cavarero, no seu livro Vozes plurais) e a emoção (a vocalização do saber) o coração canta como contrapartida estética ao abandono – “Se o amor quiser partir num dia de manhã sem avisar”. É essa voz que dita o rumo a ser seguido pelo sujeito cantor da canção. Fazer do limão uma limonada, da solidão um amor em paz, equilibrar dor e alegria no estético – na criação – são ensinamentos vindos do coração. A voz de alguém cantando anuncia que há um ser único e de carne e osso vibrando-lhe no ar. Ao contrário da outra canção de fossa, porque ao invés de pensar em causas e efeitos, criou, transcriou tudo em canto, o sujeito decreta: “Meu mundo não caiu preciso lhe falar / eu gosto de você demais // Preciso lhe dizer de todo o coração / a falta que você me faz”. Precisa e diz.

 

A voz do coração

(Celso Fonseca / Ronaldo Bastos)

 

Quem poderá em vão calar

a voz do coração?

Se o amor quiser partir num dia de manhã

sem avisar

 

A voz me dita o que fazer

tingir de outra cor a cor da solidão

Fazer dessa manhã amor em paz

 

Meu mundo não caiu preciso lhe falar

eu gosto de voce demais

 

Preciso lhe dizer de todo o coração

a falta que voce me faz

 

Quem poderá em vão calar meu coração?

 

Sem o outro que lhe abandonou, o sujeito não cantaria. É nisso que ele foca, cantando para mandar a tristeza embora, ou melhor, para hibridizá-la à alegria e uni-las no canto necessário à vida, em um exercício de criatividade desprendido da carga pesada daquilo que seja viver. Aqui, a voz poética (da memória, do coração, em certa medida) é o estabilizador – sem ela o ser humano não suportaria estar vivo. Dando vida a este sujeito cantante, Jussara Silveira, tal e qual a personagem Norma de Pedro Almodóvar, coloca-nos diante do espelho: é a sereia que promove o movimento, convida-nos à criação. E ao final, como diria o sujeito de “Ilusão à toa”, de Johnny Alf: “Meus olhos sentem / Minhas mãos transpiram / É um amor que eu guardo há muito / Dentro em mim / E é a voz do coração que canta assim / Assim”. E “quem poderá em vão calar meu coração?”.

O sujeito da canção “Alguém cantando”, de Caetano Veloso, materializa a voz que emula (plagia, copia, imita e inventa) sons. O sujeito é conduzido ao canto pela imposição da presença de um personagem-sol: alguém cantando. Aqui não importa muito o que é cantado, mas a voz: bússola e orientação do sujeito. Quantas vezes ao longo da vida, ouvintes e carentes de canção que somos, apropriamo-nos de canções ouvidas no rádio – “que canta como que pra ninguém” – e que juramos terem sido feitas para nós? Na maioria das vezes não há uma explicação lógica para tal apropriação. Basta um verso, ou uma linha melódica, ou a voz de alguém cantando bem para que sejamos lançados noutra realidade: no tempo/espaço “onde não há pecado nem perdão”, como diz o sujeito.

Ouvinte, o sujeito torna-se cantor da voz de alguém: devolve a este outro, com canção, a beleza de ser cantado, distinguido no mundo. O dueto entre Simone e Zélia Duncan (Amigo é casa, 2008) figurativiza isso: desenha, na sobreposição das duas vozes, um lugar sonoro complexo: transes, delírios, ficção e realidade se misturam. Este lugar não é outro senão a mente de quem ouve “alguém cantando longe daqui”. “Longe, longe”, porém, de tão íntimo (amigo) que se torna do ouvinte, por dar sentido à vida deste ouvinte, aproxima-se e sensibiliza. O sujeito só se realiza quando é organizado internamente por este canto externo: ele precisa que o outro lhe esclareça o que desejar. A canção se dá posterior à audição de alguém que guarda a natureza na voz. O antes perde sua importância. Tocado por esta voz que lhe abastece de palavra, melodia e voz, o sujeito não encontra outra saída a não ser cantar: “pagar na mesma moeda”: canção – letra, música e gesto vocal: pureza.

A coerência da dúvida, ou seja, de não identificar o alguém por traz da voz que canta, sustenta o enigma do próprio sujeito e universaliza o canto: torna-o de ninguém e, portanto, suscetível a ser de todos. Por tudo isso, a canção “Alguém cantando” é metacanção: canção que se faz atravessada pelo canto, pela voz de alguém; canção que denuncia a si própria. O tema principal é a própria canção para além da canção. Na verdade, o sujeito, embevecido na imensidão, por uma voz que vem dessa imensidão, não sabe onde começa e onde termina o próprio canto. A canção é muito mais canção do que o sujeito é sujeito. A canção trata o sujeito com extremos de mãe – “a voz de alguém quando vem do coração” – e insere o sujeito na vida.

Ouvintes de “Alguém cantando”, não temos elementos para concluir nada: Quem canta? Quem é o alguém cantado? Resta-nos entra em uma das dobras da ficção cancional e se reinventar também no solapamento da ideia de subjetividade.

 

Alguém cantando

(Caetano Veloso)

 

Alguém cantando longe daqui

Alguém cantando longe, longe

Alguém cantando muito

Alguém cantando bem

Alguém cantando é bom de se ouvir

 

Alguém cantando alguma canção

A voz de alguém nessa imensidão

A voz de alguém que canta

A voz de um certo alguém

Que canta como que pra ninguém

 

A voz de alguém quando vem do coração

De quem mantém toda a pureza

Da natureza

Onde não há pecado nem perdão

 

A sereia, e seu convite ao ouvinte pelo reconhecimento de si, remete-nos ao aforismo 372 de A gaia ciência quando Nietzsche, ao criticar o idealismo dos filósofos, faz um elogio aos sentidos e ao tratamento das coisas concretas da vida. Em Nietzsche a música é a vida, portanto, faz-se necessário mergulhar nela, pois é nesse mergulho que se realiza o conhecimento de si, do humano, e não no contrário, na postura de tapar os ouvidos com cera: de desligar o rádio, o rádio do coração. Por nossa vez, a canção é espelho, canta-nos, sustenta-nos na vida. Sem a cera nos ouvidos – deixando a canção cantar, longe de predeterminações teóricas e/ou filosóficas – ensaiamos no mundo. Paradoxalmente: ela engana-nos, é nefasta, mas promove o ensaio daquilo que poderemos ser e somos, embora, e talvez por isso, jamais atinjamos tal ponto de nitidez figurativa. A canção sustenta a ficção em nós: aquilo que, de fato, somos. E, como dirá o sujeito de “Alguém cantando”, de Caetano Veloso: “a voz de alguém quando vem do coração (...) é bom de se ouvir”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências bibliográficas:

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FERREIRA, Evandro Affonso. Minha mãe se matou sem dizer adeus. Rio de Janeiro, Record, 2010.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.

HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

LES POPS. Eu quero ser cool (CD). Brasil: Discobertas, 2010.

LEVITIN, Daniel J. A música no seu cérebro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

OTTO. Cordel encantado (CD). Brasil: Somlivre, 2011. Trilha Sonora da novela.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1988.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

SILVEIRA, Jussara. Ame ou se mande (CD). Brasil: Joia Moderno, 2011.

SIMONE e DUNCAN, Zélia. Amigo é casa (CD). Brasil: Biscoito Fino, 2008.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas I – Burbujas. Madrid: Siruela, 2003.

VELOSO, Caetano e BYRNE, David. Red Hot + Rio 2 (CD). Brasil: Somlivre, 2011.

WISNIK, José Miguel. Indivisível (CD). Brasil: Circus Produções Culturais & Fonográficas, 2011.

 

1 Leonardo Davino de Oliveira é especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde desenvolve pesquisa de Doutorado em Literatura Comparada sobre poéticas vocais. Assina um coluna semanal sobre crítica de canção para o lendocancao.blogspot.com.