A Canção Popular na Cidade de São Paulo na Década de 30
Álvaro Antônio Caretta1
Resumo: Neste artigo, apresentamos o contexto da canção popular na cidade de São Paulo nos anos 30, década em que a cidade se transformou em uma metrópole. O processo de desenvolvimento acelerado vivido pelos paulistanos bastante polêmico e gerou debates em diversas esferas sociais, sendo representado também nas canções populares. Nessa época, o desenvolvimento dos recursos tecnológicos de gravação e de divulgação, o disco e o rádio, somados ao crescimento vertiginoso da cidade criaram um contexto que caracterizou a canção popular paulistana. Gêneros bastante difundidos na década de 30, como o samba, a marcha e a música sertaneja, ganharam características específicas nas composições de músicos paulistanos. Tomando algumas canções como exemplo, mostraremos como a canção popular paulistana constitui-se nessa época, posicionando-se frente ao progresso da nova metrópole.
Palavras-chave: Música popular brasileira; Canção popular; São Paulo; Gêneros do discurso.
Abstract: This article presents the context of the popular song in the city of Sao Paulo in the '30s, the decade when the city became a metropolis. The controversial process of accelerated development experienced by São Paulo generated debates on various social spheres being also represented in popular songs. At that time, the development of technological capabilities of recording and dissemination, records and radio, plus the vertiginous growth of the city created a context that featured the popular song in São Paulo. In the 30s, the samba, the march and country music gained specific characteristics in the compositions of musicians from Sao Paulo. Taking a few songs as an example, we will show how the popular song from Sao Paulo is consolidated around the time, positioning itself vis-à-vis the progress of the new metropolis.
Keywords: Brazilian popular music; Popular song; São Paulo; Discourse genres.
Introdução
No livro Metrópole em sinfonia, José Geraldo Vinci de Moraes (2000) apresenta um panorama histórico-musical da cidade de São Paulo na década de 1930. Nesse livro, resultado de seu doutoramento no Departamento de História Social da FFLCH da Universidade de São Paulo, o autor mostra o cenário musical da cidade e o seu desenvolvimento na esteira do progresso paulistano, principalmente graças aos novos meios de comunicação. O disco, o rádio e o cinema ofereceram diversas outras possibilidades para a veiculação da canção popular: a gravação permitiu a sua reprodução e distribuição, a radiofonia levou-a ao lares de todo Brasil, e o cinema uniu a canção às imagens. O incremento da atuação da canção popular na capital paulista nos anos 30 foi impulsionado pelo progresso da cidade. A empreitada, iniciada nas primeiras décadas do século XX, de transformar a cidade de São Paulo em uma metrópole, já modificava as relações sociais e, consequentemente, o seu grande diálogo. Na metade desse século, as comemorações do IV Centenário, em 1954, foram a consagração da metrópole progressista.
Em seu prefácio para o livro de Moraes, o historiador Elias Tomé Saliba é bastante esclarecedor ao comentar os principais aspectos do trabalho, valorizando a contribuição do autor para os estudos da historiografia musical paulistana. Moraes apresenta um panorama da música popular de São Paulo em um período importante da história da cidade, a sua metropolização na primeira metade do século XX. Esse livro é um avanço de suas pesquisas sobre a cidade de São Paulo e sua vida musical. Ele pode ser compreendido como uma continuação de sua obra anterior, As sonoridades paulistanas, na qual Moraes estuda a música popular paulistana anterior ao advento do rádio, particularmente a do final do século XIX e princípio do XX.
Essa sonoridade ainda rural, mas já também urbana das primeiras décadas do século, o rádio adaptou-a aos seus modelos. Entretanto, a sonoridade paulistana ia além desse novo meio de comunicação. Tecida na rede social da cidade do futuro, nas primeiras décadas do século XX, ela era diversificada e inusitada. Desde os músicos profissionais até o cantador de pregões, das festas religiosas às batucadas, dos teatros às janelas das casas, a música era uma das principais representações da cultura popular paulistana.
São Paulo, na década de 1930, viveu um período de intensa transformação urbana e social. A cidade que seria uma metrópole na metade do século tinha apenas vinte anos para transformar quatro séculos anteriores. A capital paulista era reconhecida como a cidade do “vir a ser”, pois havia canteiros de obras por todos os lados, derrubavam-se antigos casarios e construíam-se prédios. A vida social também se transformava. A concentração urbana crescia rapidamente devido ao aumento da imigração. Os hábitos e as formas de lazer estavam mudando, o cinema era moda à época e as canções eram ouvidas nos rádios, nos discos, nos salões de baile e nos bares da moderna São Paulo. As novas formas de locomoção urbana também contribuíram para essa mudança na vida social. As pessoas agora podiam andar de bonde elétrico e de automóvel, o que lhes permitiu uma circulação maior, mudando completamente o ritmo da cidade. A São Paulo, nos anos 30, era uma cidade que crescia verticalmente, espalhava-se em todas as direções e movimentava-se intensamente.
Constituída no dialogismo entre a cultura musical do final do século XIX, anterior ao rádio, e início do século XX, a canção popular paulistana definiu-se pelo modelo das rádios. Entretanto, herdou características peculiares que lhe atribuem uma identidade, como a cultura caipira, o universo urbano e o plurilinguismo das personagens. Uma característica da canção paulistana é o saudosismo. A nostalgia de uma São Paulo antiga, anterior ao processo de metropolização do século XX, era constante na canção popular de São Paulo na década de 1930.
A música popular da metrópole que se agigantava era singular e diversificada. Nos anos 30, multiplicam-se os novos usos criativos da linguagem na produção de canções. Os estilos musicais desenvolviam-se para se adaptar ao novo mercado. O samba e a música caipira, duas manifestações musicais populares assimiladas pelo disco e pelo rádio, para que se tornassem sucesso, teriam que se adaptar não só às exigências da moda musical ditada pela Capital Federal, mas às próprias condições midiáticas, no caso, o rádio e o disco. Grande parte da cultura musical paulistana não pôde ser registrada no princípio do século XX devido a essas condições, como os batuques da festa de Bom Jesus de Pirapora e as modas de viola nas festas religiosas do interior. Os compositores do rádio tinham como modelo belos sambas e marchinhas gravados por grandes intérpretes cariocas. O sucesso de uma canção implicava a utilização desse modelo que se desenvolvera no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século e imperou nas rádios até o começo da década de 60.
Saliba, em seu prefácio, comenta ainda que a canção popular paulistana saiu de foco do cenário musical brasileiro principalmente quando o samba carioca foi adotado como símbolo da identidade nacional. Isso devido basicamente à duradoura permanência de Vargas no poder e pelo fato de o Rio de Janeiro ser a Capital Federal, consequentemente, concentrando a produção musical. Saliba (MORAES, 2000, p.14) entende que "Nesse novo cenário, a sinfonia paulistana quase desaparece, mas não morre totalmente, sobrevivendo de forma renitente nos porões da memória coletiva". O estudo dessa cultura musical popular é o trabalho realizado por Moraes em Metrópole em sinfonia, obra que nos serve como orientação para compreender o contexto musical da cidade de São Paulo na década de 30.
A canção e a cidade
De acordo com o cronista Jorge Americano (1962, p. 243), em São Paulo, nesse período, havia uma imensa variedade de gêneros e estilos que transitavam pela música européia de estilo mediterrânico, pelo samba carioca, chegando aos ritmos nordestinos. Essa polifonia musical paulistana era resultado das transformações que a cidade vivia em sua caminhada para a metropolização, principalmente devido ao crescimento migratório, que possibilitou a reunião de italianos, afro-descendentes e nordestinos com suas diferentes culturas musicais:
Gerada nas primeiras décadas do século XX, a polifonia paulistana começou a consolidar-se nos anos 30 ocupando lugar e ao mesmo tempo colaborando na formação das características das novas formas de difusão e reprodução da música, geralmente vinculadas aos renovados espaços do universo do entretenimento e dos meios eletrônicos (MORAES, 2000, p.18).
Esse processo é concomitante ao acelerado crescimento de São Paulo. Durante a década de 30, a metropolização da cidade e a modernização do cotidiano agitou a vida cultural e social das pessoas. A criação de novos espaços de lazer e entretenimento proporcionou um aquecimento da atividade musical. Em São Paulo, no início dos anos 30, podia-se assistir a concertos, óperas, operetas e revistas musicais; as orquestras, conjuntos, bandas e solistas apresentavam a “boa música” ao vivo; os cafés-concerto eram frequentados pela elite paulistana em busca de diversão; as casas comerciais de instrumentos musicais divulgavam as canções de sucesso em partituras e discos.
Havia também locais mais populares para atender à demanda das classes operárias, que só tinham acesso à diversão barata. Os cafés-cantantes e bares eram frequentados pela boêmia mais pobre; músicos e intérpretes apresentavam-se em circos; nas ruas, mesmo que proibidas pela polícia, havia batucadas; e as serestas aconteciam nas noites de luar. Na década de 30, o cenário musical paulistano era composto por essa diversidade musical.
Uma das manifestações musicais populares mais peculiares na década de 30 foi a “modinha paulistana” que geralmente tratava de temas cotidianos da cidade, reaproveitados sobre uma melodia de sucesso. As letras traziam narrativas de tragédias amorosas escritas por pessoas anônimas e eram divulgadas informalmente pelas ruas da cidade:
Publicadas em papel jornal, vendidas a preços módicos e de mão em mão, essas "modinhas para se cantar chorando" contavam pequenas histórias tristes e trágicas, todas elas presentes no cotidiano frenético da cidade em crescente fluxo de expansão. As principais fontes de inspiração desses poemas eram as histórias contadas de boca em boca nas conversas suburbanas e, sobretudo, as notícias publicadas com destaque nos diários, relatando tragédias e desastres, cada vez mais corriqueiros na grande metrópole (MORAES, 2008, p.181).
Antônio de Alcântara Machado realizou uma coletânea das modinhas populares na década de 30 e denominou-a Lira paulistana. Moraes estudou-as e identificou as suas características. As modinhas lançavam um outro olhar sobre a cidade, pois os letristas tratavam de fatos cotidianos da população que vivia nos subúrbios paulistanos, como Brás, Pari e Bom Retiro, subvertendo as formas instituídas de produção musical ao atribuir novas letras a canções já famosas:
Esta era uma forma de eles participarem e darem seu recado à sociedade em transformação, sobretudo às estruturas institucionais e formais, das quais estavam distanciados. Para construir suas composições e alcançar o objetivo imediato de narrar acontecimentos, os "poetas falidos" usavam uma série de táticas, como emprestar melodias de canções conhecidas, já registradas na escuta e na memória auditiva da população, para "contar suas histórias, geralmente de tom trágico. Sobre essas melodias sobrepunham novas letras sem respeitar integralmente a métrica, a prosódia, o ritmo, a lógica original da poesia e, sobretudo, da melodia (MORAES, 2008, p.182-183).
As letras das modinhas paulistanas eram, segundo uma expressão de Alcântara Machado, "postas a martelo". Faziam uso da paródia e do pastiche, tratando de forma tragicômica os dramas populares apresentados em narrativas melodramáticas. Elas eram impressas em papel colorido e vendidas nas ruas aos transeuntes. As "modinhas vermelhas", impressas em papéis dessa cor, eram as mais tristes e trágicas. As narrativas cotidianas apresentadas nas modinhas compõem um quadro do universo urbano paulistano que se consolidava entre o final dos anos 20 e início dos 30:
[...] esses compositores se apropriavam de vários elementos presentes na cultura da época - como a paródia, poesia popular, melodias conhecidas -, divulgadas em diferentes meios de difusão - jornal, oral, discos - concedendo-lhes características distintas das originais ou então criando uma nova forma cultural (MORAES, 2008, p.183).
O tango “Adiós mis farras”, da autoria de Raul Roulien, fez muito sucesso em 1928:
Milonga yo quiero recordarte
Como un blazon lleno de amor para mi
Mujeres que mi vid'han bebido
Y han agotado mi juventud
Mas todo en la vida és pasajero
Como el sabor de una pasión
Por isso mi despedida
Tan dolorida quiero llorar
Adiós muchacho, adiós mis farras
Son las sonrisas de la vida que se van
Todo se ha ido solo ha quedado
El fiel recuerdo de esa mujer
Adios mis noches llenas de encanto
Solo ha quedado una arruga de cruel dolor
Y és por eso que llorando evoco
Adiós muchacho, todo acabo[...]
Aproveitando-se a melodia desse tango, foi composta a modinha paulistana “Moça do Brás”:
Chorando
Certa moça do Brás
Bela de cara
Que foi abandonada pelo noivo
Tipo que sempre a maltratava
De noite
Saiu de casa sem chapéu
Imaginando uma idea má
E levada por seu sofrimento
Foi parar no Viaduto do Chá
Mas que horror
E crueldade
Mas que loucura
Nessa decisão fatal
Mas que ardor
Na mocidade
Martirizada por um ideal
Os lindos sonhos
A felicidade
Desaparecem
Num minuto de amargura
E só fica iluminando o mundo
A chama da imensa tortura
Parando
Bem no meio do viaduto
A pobre moça
Num gesto de pura dor
Botou as duas mãos na grade
Olhando o abismo tentador
Depois de um momento
De hesitação
Ela se atirou de facto
Tendo ainda o seu pensamento
Angelical
Naquele ingrato
O aspecto que nos chama atenção nas modinhas dos anos 30 é o processo dialógico de constituição da canção popular fora dos sistemas instituídos pelo disco e pelo rádio, ou ainda, a reutilização dos enunciados veiculados por essas mídias. Tangos, valsas, clássicos da ópera e do cancioneiro popular brasileiro têm as suas letras substituídas por outras que frequentemente relatam tragédias urbanas e populares envolvendo amantes.
Como se pode perceber, ainda que genericamente, entre os diversos aspectos que a pluralizada cultura popular assumiu em São Paulo nos anos 1920/30, um deles tomou forma musical bastante especial. Neste período estava em gestação na cidade um tipo de cultura musical e popular e urbana muito peculiar e que não passou despercebido da crítica cultural e meios de comunicação. É preciso ainda avaliar melhor a importância e peso dessa cultura cotidiana na formulação da cultura musical da cidade, pois ela pode ter marcado velada e profundamente a trajetória da música paulistana. De diversas maneiras alguns destes elementos presentes nas "modinhas paulistanas" podem ter-se desdobrado no tempo e projetado em múltiplos espaços e universos culturais. Os usos "livres" da língua, implicando transformações e misturas inusitadas; os pastiches musicais e formas peculiares de formar melodias e cantá-las; os temas urbanos trágicos ou tragicômicos, momentosos, inspirados em notícias de jornais, geralmente protagonizados por indivíduos pobres, imigrantes, anônimos e boêmios podem ter alcançado de modo variado alguns compositores paulistanos a partir dos anos 50. Neste passo, é impossível não pensar em Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini [...].
A expansão das indústrias fonográfica e radiofônica transformou a música popular urbana, pois a produção musical passou a adaptar-se cada vez mais aos meios de comunicação. O rádio definiu o gênero canção, divulgou a canção popular para todo o Brasil e moldou o gosto do ouvinte:
Um exemplo candente dessa transformação em São Paulo foi o da música caipira, que em curto espaço de tempo acomodou-se bem ao disco e ao rádio paulistanos, gerando a música sertaneja, contraditoriamente muito semelhante à caipira (pois ela é a matriz), mas ao mesmo tempo com profundas diferenças (pois não existem mais na cidade as condições histórico-culturais para sua produção (MORAES, 2000, p.23).
As formas tradicionais da música paulistana perdiam espaço; ou adaptavam-se ao modelo das rádios, ou tendiam ao desaparecimento. Por um lado, as canções românticas e a música sertaneja eram sucesso nas rádios e os cordões carnavalescos tornam-se escolas de samba. Por outro lado, as serenatas tocadas nas noites de luar ficaram restritas aos bairros boêmios; as canções cantadas nas festas religiosas, às regiões rurais; e as batucadas realizadas na cidade - e reprimidas pela polícia -, à periferia:
[...] os elementos próprios do universo urbano moderno, que despontavam de forma ascendente entre o final dos anos 20 e a década de 1930, foram importantes na alteração dos modos de produção e difusão da cultura e da música popular e por consequência, nas formas de sentir, refletir, e ver a cidade [...] Desse modo, especialmente na cidade de São Paulo, a diversidade sonora [...] acompanhou o estranho cosmopolitismo presente nas ruas, colaborando para construir esse contraditório e difuso quadro da cultura popular urbana paulistana (MORAES, 2000, p.26).
A primeira transmissão radiofônica no Brasil ocorreu em 1922, mas somente na década de 1930 as emissoras foram perdendo o caráter elitista e amadorístico, passando a profissionalizar seus artistas e técnicos. Nos anos 30, principalmente após a Revolução de 32, houve um processo de multiplicação das emissoras, devido à propagação da causa constitucionalista. Isso aproximou os ouvintes e colaborou para o hábito de ouvir rádio.
A programação das emissoras tornou-se variada; além dos informativos, havia programas humorísticos, esportivos e de auditório, com predomínio da música popular brasileira. Os destaques eram os programas musicais. Isso colaborou para a relação indissociável entre rádio e música. A programação musical podia ser ao vivo ou gravada e contemplava todos os estilos; populares ou eruditos, estrangeiros ou brasileiros.
As emissoras requisitavam muitos profissionais técnicos e principalmente músicos, o que incrementava e movimentava a esfera musical. Músicos, intérpretes, regionais e orquestras produziam cada vez mais para suprir o crescente mercado fonográfico:
A consolidação e ampliação dos espaços de entretenimento e dos meios de comunicação de massa em São Paulo, na virada da década de 1920 para de 30, reforçaram a colocação do músico popular na rota quase irreversível da profissionalização artística (MORAES, 2000, p.96).
Muitos artistas, como Garoto, Vadico, Alvarenga e Ranchinho migraram para o Rio de Janeiro onde as condições para os músicos ainda eram melhores do que em São Paulo; já outros, como Paraguassu, Mandi e Sorocabinha, Jayme Redondo, Arnaldo Pescuma e Raul Torres, desenvolveram carreira na capital paulista, onde o rádio crescia no ritmo veloz da cidade progressista.
A década de 1930 foi muito fecunda para a canção popular brasileira, a "Época de ouro". Em São Paulo, na esteira do sucesso no Rio de Janeiro, a canção encontrou um ambiente propício para a sua divulgação. O progresso da cidade, o crescimento urbano e econômico, a cultura popular e o plurilinguismo foram determinantes para a formação da canção popular paulistana:
A canção popular urbana nasceu de uma série de imbricamentos, misturas e conflitos presentes nas grandes cidades como a capital paulista. Nela o incessante ritmo de crescimento urbano e emergência dos meios de comunicação atuaram em conjunto com certas tradições locais, dos imigrantes e migrantes de diversas origens para a formação da canção paulistana (MORAES, 2000, p.285).
Nas décadas de 30 e 40, o samba, a marchinha e a música caipira eram três estilos musicais que faziam bastante sucesso nas rádios paulistanas.
O samba
Em São Paulo, o samba sofreu grandes transformações nas décadas de 20 e principalmente de 30. Segundo Moraes, a imposição de modelos, a valorização da moda, as restrições e orientações para adequação ao novo cenário urbano, a massificação causada pelo aumento de consumo, associados à oportunidade de realização artística e à profissionalização dos músicos populares, transformaram o samba paulistano:
A tendência de nosso samba regional e do carnaval popular durante os anos 30 também foi bastante ambígua e paradoxal, pois ao mesmo tempo corria aí a consolidação e o rápido esgotamento do processo produtivo iniciado em meados da década de 1910. Em cerca de trinta anos, o samba regional paulistano estruturou-se, expandiu-se e entrou em decadência, quase desaparecendo já nos anos 40 (MORAES, 2000, p.258).
O espaço de criação do samba em São Paulo era o das festas religiosas e profanas, como a Festa do Bom Jesus de Pirapora, as batucadas e o carnaval de rua. Na cidade de São Paulo, o samba concentrava-se nos núcleos afrodescendentes da Barra Funda, do Bexiga e do Lavapés/Liberdade, onde nasceram os cordões carnavalescos. Os pioneiros datam da década de 1910: o Grupo Carnavalesco Barra Funda, conhecido como Camisa Verde e Branco, de 1914; e o Campos Elíseos, de 1915. Na década de 20, o Flor da Mocidade, na Barra Funda; Desprezados, nos Campos Elíseos; e Vai-Vai, no Bexiga. Esses cordões passavam pela cidade, embalados por uma marcha-sambada, tocada com instrumentos de percussão e cantada pelos sambistas.
A Barra Funda é um dos berços do samba paulistano. Era um bairro operário, no qual conviviam afrodescendentes, imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e, depois, nordestinos, e onde o samba era tocado e dançado o ano inteiro nas rodas de samba. Em 1914, o grupo Barra Funda, fundou o primeiro cordão carnavalesco do bairro, que depois viria a ser a Escola de Samba Camisa Verde e Branco. Em 1931, foi gravado pela dupla Januário França e Henrique Costa o samba “Bambas da Barra Funda”:
Vem ver o samba
Que é formado e batucado
Pelos bambas da Barra Funda
Oi tem macumba, tem canjerê
Quem duvidar do que eu digo venham ver
(oi, como é bom)
Quando o samba enfeza
E começa o fervedor
Canta ao som da lira
Do pandeiro roncador
Fala o cavaco, fala a cuíca
E o chocalho marca
No compasso da barrica
(oi, como é bom)
Dizem que a polícia
Com os bambas vão acabá
Isto é impossível
Vai dar muito que falá
Tenho diproma de bacharé
Não venha pra meu lado
Porque eu sou liso no pé
O rádio determinou modas, criou gêneros e impôs uma estandartização da música popular, possibilitando que gêneros musicais regionais e populares, como o samba, a canção sertaneja e o choro, pudessem participar do quadro cultural da nova metrópole. O processo de assimilação do samba pelo rádio na cidade de São Paulo é distinto da trajetória do samba no Rio de Janeiro. O samba rural paulista não teve a oportunidade de se desenvolver e ocupar espaço nas rádios, ficando confinado às comunidades rurais; diferentemente do samba carioca que sofreu várias transformações e desenvolveu um modelo de sucesso que foi facilmente adaptado para o rádio.
O samba paulista que se originou nas fazendas cafeeiras e se desenvolveu no interior nas primeiras décadas do século XX, estava relacionado às festas religiosas. O samba veiculado nas rádios era o carioca, que servia de modelo para o novo estilo musical de sucesso. O samba paulista caracterizava-se por apresentar elementos da cultura rural, interpretado com um linguajar caipira, acompanhado por uma batucada e, às vezes, por uma viola caipira:
O samba paulistano, em construção desde o início da década de 1910 e que se desenvolveu nas duas seguintes, já no final dos anos 30, lutava para sobreviver na moderna cidade industrial que se erguia. O samba regional paulistano não resistiu, nem conseguiu transformar suas tradições no novo espaço urbano que definia o futuro da metrópole; tampouco ingressou nos meios de comunicação como um elemento preponderante. No mesmo período, o samba urbano carioca ocupava e consolidava com muita força seu espaço na radiofonia brasileira, impondo-se como padrão nacional. Tal fato colaborou para que o samba paulistano perdesse ainda mais espaço, acabando por restringir-se às comunidades de sambistas, enfraquecendo-se como realidade cultural (MORAES, 2000, p.283).
Na década de 30, o samba era um estilo musical já bem aceito pela classe média. Muitos artistas a fim de gravarem, e as gravadoras, de venderem com maior facilidade os discos, davam a suas composições a classificação de samba. O samba paulista era conhecido por suas origens interioranas, fato que o relacionou com a música caipira. O samba carioca evolui de forma tão rápida que superou a relação entre o rural e o urbano. Em São Paulo, a música sertaneja no final da década de 20 já estava presente no rádio, e a presença de elementos da cultura caipira nos sambas paulistas era uma característica estilística bastante significativa desde então.
A canção “Tatu subiu no pau”, de Eduardo Souto, gravada em 1923 como "samba à moda paulista" é uma composição tipicamente caipira, baseada em motivos folclóricos e que, apesar dessa característica, apareceu com destaque no carnaval:
Tatu subiu no pau
É mentira de mecê
Lagarto ou lagartixa
Isso sim é que pode sê
O melhor da galinha é o ovo
Que se pode comê gostoso
A moléstia do pinto é o gôgo
A coberta do velho é o fogo
Tatu subiu no pau
É mentira de mecê
Santo Antônio ajudando?
Isso sim é que pode sê
O samba paulistano mais bem aceito nas rádios era aquele composto nos moldes cariocas: uma introdução instrumental, uma parte A que serve de refrão, intercalado entre duas partes B e uma finalização instrumental. A batucada era suavizada pelo pandeiro e a viola caipira dava lugar ao cavaquinho e ao violão. Além disso, o sotaque do intérprete deveria aproximar-se da fala urbana. O samba “São Paulo da garoa”, de Paraguassu, gravado em 1934, foi composto seguindo esse modelo adaptado dos sucessos que chegavam aos ouvidos da população paulistana por meio do rádio:
São Paulo...
São Paulo terra da garoa
Terra das Bandeiras
Terra do café
São Paulo sempre tão querido
Tens um preferido
Transmitiu a fé
Não sei como comparar-te
Esplendor de sua arte
Entre belo e juvenil
O bem estar, uma nobreza
Oh São Paulo és a grandeza
Arranha-céu do meu Brasil
Dizem que não és do samba
Mas tu foste sempre bamba
Em teu grande coração
Tu tens estado na poesia
Na saudade, a nostalgia
Na modinha e na canção.
São Paulo...
Gravado como samba-canção - por possuir um andamento mais lento do que a maioria dos sambas e não por tratar de desilusões amorosas - esse samba adquire um estilo bem paulistano na interpretação de Paraguassu, que apresenta um sotaque italiano característico dos moradores de bairros tradicionais da cidade de São Paulo, como Brás, Bixiga e Barra Funda.
A marcha
Em São Paulo, o carnaval popular de brancos, geralmente imigrantes, crescia na Lapa e no Brás. O samba e a marcha eram os ritmos mais tocados. O carnaval de rua era o corso de automóveis, sobretudo na Avenida Paulista; nos salões dançavam-se as marchinhas de sucesso. Nos anos 40, o corso perdeu força e restaram apenas os bailes de salão.
Na década de 30, o carnaval tinha como principal atração marchinhas e sambas de sucesso. Para Tinhorão (1975), esses gêneros musicais nasceram da urgência de um ritmo para os festejos do Rei Momo. Originário de entrudo português, o carnaval na Capital Federal desenvolveu-se pela formação dos ranchos e dos cordões. A marchinha origina-se dos primeiros e foi muito bem representada pelos maiores compositores populares, desde Sinhô, com “Pé-de-anjo”, passando por Noel Rosa, com “As pastorinhas”, em parceria com Braguinha, e chegando a Lamartine Babo, com “Linda morena”, e Ary Barroso, autor de “Dá nela”.
A marchinha é um estilo musical associado ao carnaval. A versatilidade de seu conteúdo temático permite a ela tratar de vários temas de diversas formas, pois pode ser cômica, crítica, maliciosa, passional ou ufanista. Produto de uma classe média carioca, a marchinha frequentemente apresenta uma letra de conteúdo prosaico que retrata ou comenta fatos cotidianos, acontecimentos políticos e costumes sociais.
Esse novo estilo musical colaborou para a urgente organização dos foliões, devido ao crescimento das comemorações carnavalescas. No começo do século,
[...] as músicas feitas para dançar de par - como as polcas e as valsas - teriam mesmo que tornar-se anacrônicas, quando o estilo de passeata de ranchos, blocos e cordões estava pedindo um ritmo marchado, necessariamente binário, com acentuação do tempo forte, e cuja marcação deveria facilitar o avanço da massa de foliões (TINHORÃO, 1975, p.117).
Como o samba, as marchinhas já existiam desde o final do século XIX, entretanto eram registradas como tango, canção carnavalesca e fadinho. Somente com a adesão das famílias de classe média aos desfiles de bloco e bailes de carnaval, tornou-se um gênero musical de excelência, que disputou com o samba a primazia nos concursos carnavalescos. Na década de 30, os grandes compositores populares lapidaram-na, definindo as características desse gênero musical de enorme sucesso até a década de 50.
Em São Paulo, na década de 30, a marchinha era bastante difundida. Devido ao sucesso que as composições alcançavam por meio dos programas de rádio e, principalmente, em torno das comemorações carnavalescas, os ouvintes e foliões paulistanos apreciavam não só as composições cariocas, como também as paulistas, como “Paulistinha”, de Paraguassu, gravada em 1935:
Agora paulistinha
Chegou a tua vez
Vão te eleger rainha
Para a melhor das três
Loira, morena e mulata
Já foram as três coroadas
Agora és tu paulistinha
Que imperas na batucada
Entra meu bem na folia
Com teu pandeiro infernal
O branco, preto e vermelho
Já tem o seu carnaval
Baliza bem direitinho
Puxa o cordão na virada
Loira, morena e mulata
Já batem na retirada
Também és verde e amarelo
Ó paulistinha faceira
Mostra pra toda essa gente
Que és também brasileira
Essa canção promove o imaginário progressista da cidade de São Paulo por meio de uma exaltação da mulher paulista. O posicionamento do enunciador é voltado para o discurso da proeminência de São Paulo no cenário nacional, polemizando com o discurso do Rio de Janeiro - e do samba carioca - como representação da brasilidade. Nesse contexto, o dialogismo que “Paulistinha” estabelece com as marchinhas cariocas “Linda lourinha”, “Linda morena” e “O teu cabelo não nega” tem a intenção não só de inserir a mulher paulista nesse grupo representativo da mulher brasileira, como principalmente de indicar a posição que São Paulo ocupava na conjuntura brasileira na década de 30.
As canções veiculadas pelas rádios eram os modelos que os compositores populares adotavam, pois a sua intenção era a de que a canção fosse gravada e também tocada. A produtividade musical dos compositores cariocas na década de 30, principalmente de sambas e marchinhas de carnaval, foi incrementada pelo advento do rádio que propagou pelo território nacional a canção popular. Os modelos de samba e marchinhas que o rádio veiculava eram imitados por compositores de outros estados que muitas vezes migravam para a Capital Federal.
A música sertaneja
Moraes (2000, p. 234), ao estudar as relações entre a cultura rural e a urbana na canção popular de São Paulo, propõe a diferenciação entre a música caipira e a sertaneja. Esta teria “origem já urbanizada sendo criada e desenvolvida nas médias e grandes cidades, sobretudo na capital paulista, produzida e difundida pelos meios de comunicação de massa”, aquela estaria "ligada às mais autênticas, instintivas e profundas tradições do homem do campo, completamente distante dos meios de produção e difusão de massa [...]". Da mesma forma que Moraes, entendemos como música sertaneja aquela que era tocada e cantada nas rádios, compreendendo-a como música popular urbana; diferentemente da música caipira, relacionada à cultura folclórica dos espaços rurais, como as festas e encontros musicais do interior se São Paulo.
A música sertaneja expandiu-se pela nova cidade paulistana. No começo da década de 20, ela já era bastante divulgada. Na década de 30, o rádio e as gravadoras promoveram o seu grande sucesso:
Apontando para uma perspectiva da mera preservação da cultura rural, as tensões, conflitos e convergências entre as culturas populares rurais e urbanas estabeleceram, principalmente em São Paulo, uma nova combinação social e cultural, que seria bastante aceita pela população pobre dos grandes centros e que o mercado fonográfico e radiofônico em expansão soube captar muito bem (MORAES, 2000, p.240).
Em São Paulo, na década de 30, o número de migrantes da zona rural cresceu bastante, ultrapassando o de imigrantes europeus, principalmente italianos. Esse fato não só fez crescer o público ouvinte das canções sertanejas, mas também promoveu o dialogismo entre a cultura caipira e a urbana. Os programas sertanejos proliferaram. A dupla Alvarenga e Ranchinho, por exemplo, fez muito sucesso com suas modas de viola e com programas de auditório que satirizavam o linguajar e os hábitos caipiras. Nesses programas, a diversidade cultural e linguística da cidade de São Paulo, produto da convivência de imigrantes italianos, portugueses, árabes, caipiras e nordestinos no mesmo espaço social, era usada nas paródias sobre o cotidiano da cidade grande:
Dessa forma, ao permitir as relações e contatos entre as culturas populares italiana e caipira, São Paulo desenvolvia sua vocação de grande palco de misturas e cruzamentos das culturas populares urbanas, revelando e dando escoamento ao intenso cosmopolitismo informal existente sobretudo nos bairros, ruas e casas da cidade (MORAES, 2000, p.247).
O historiador Sérgio Buarque de Holanda (1975, p. 105), na década de 30, defendia a ideia de que o processo de urbanização paulista não era consequência somente do crescimento da cidade, mas também do desenvolvimento dos meios de comunicação, que atraíam as áreas rurais para a esfera de influência da cidade. A metropolização da cidade de São Paulo provocou uma movimentação social geradora de novas relações que possibilitaram a criação de uma cultura musical sertaneja urbana. O grande fluxo migratório do interior, a necessidade do mercado fonográfico de agradar a esse público e ampliar a sua audiência, o surgimento de novos artistas, assim como a vertiginosa transformação da cidade que inspirava sentimentos tanto progressistas quanto saudosistas formaram as condições ideais para o desenvolvimento de uma música sertaneja.
Na década de 30, a canção sertaneja já ocupava um importante espaço na esfera musical, principalmente em São Paulo, onde o público ouvinte crescia muito. A canção sertaneja foi gravada em discos e difundida pelas rádios graças ao pioneirismo de Cornélio Pires.
O discurso paródico é evidente em canções que satirizavam os personagens, os hábitos e a linguagem típicos da cidade de São Paulo, como na moda de viola “Bonde camarão”, composta por Cornélio Pires em 1929:
Aqui em São Paulo o que mais me amola
É esses bonde que nem gaiola
Cheguei, abriro uma portinhola
Levei um tranco e quebrei a viola
E ainda puis dinheiro na caixa da esmola
Chegô um véio se facerano
Levô um tranco e foi cambetiano
Bejô uma véia e saiu bufano
Sentô de um lado e agarrô assuano
Pra mó de o vizinho tá catingano
Entrô uma moça se arrequebrano
E no meu colo ela foi sentano
Pra mó de o bonde que tava andano
Sem a tarzinha tá esperano
Eu falo craro: eu fiquei gostano
Entrô um padre bem barrigiudo
Levo um tranco dos bem graúdo
Deu um abraço no bigodudo
Um protestante dos carrancudo
Que deu o cavaco c´o batinudo
Eu vô m´imbora pra minha terra
Esta porquera inda vira em guerra
Este povo inda sobe a serra
Pra mó de a Light que os dente ferra
Nos passagero que grita e berra
Essa canção tem como tema o começo da circulação dos bondes fechados na cidade de São Paulo. Conhecidos como "bonde camarão", por serem de cor vermelha, esses modernos meios de transporte urbano faziam parte do imaginário progressista paulistano. Objeto de polêmicas nas diversas esferas da sociedade, como na esfera do cotidiano, em comentários e piadas, e na jornalística, em artigos e reportagens, o bonde camarão é tratado nessa canção de forma satírica.
Nessa moda de viola, tomando a figura do "bonde camarão", símbolo da modernização dos meios de transporte na cidade, o enunciador satiriza os hábitos instituídos pelo crescimento da nova metrópole, contrapondo o urbano ao rural. Tomando a concepção dialógica do teórico russo Mikhail Bakhtin:
[..] as relações dialógicas são possíveis também entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que eles sejam entendidos como certas posições semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é, numa abordagem não mais linguística (2005, p. 184).
Portanto, a utilização da variante linguística do caipira constitui uma crítica ao processo migratório provocado pelo progresso da cidade grande que prometia novas e possíveis melhores condições de vida.
Considerações finais
Na virada do século XIX para o XX, São Paulo ainda era caracterizada por uma forte cultura rural, mesmo porque até 1888 a escravidão ainda vigorou, e a cidade era sustentada por uma atividade rural, o café. Em não havendo o rádio, nem o disco, a cena musical paulistana era restrita, tendo ainda em vista a pequena população urbana. As canções, executadas ao piano ou por grupos de chorões e seresteiros, privilegiavam as modinhas, os lundus, as serestas e as polcas.
No começo do século XX, após transformar várias capitais pela Europa e América, a modernidade anunciou-se na pacata capital paulista. O caminho do progresso paulistano foi traçado e passou a ser construído. O processo de urbanização da cidade trouxe grandes novidades tecnológicas que transformaram a vida social. A necessidade de novas formas de lazer para prover uma população crescente, cuja vida se tornou mais exterior, estimulava a produção, a interpretação e a reprodução de canções, principalmente em função do carnaval.
A partir da década de 20, São Paulo transformou-se em um caldeirão aquecido pela urbanização e pelo progresso. Na Pauliceia fervilhava um caldo multicultural, plurilinguístico e polissonoro de que os compositores populares se serviram. Impulsionada pelo sucesso do disco e do rádio, na década de 30, a canção popular viveu a sua "Época de Ouro", período em que foi estimulada a produção de enunciados devido à valorização desse gênero discursivo na esfera musical. Os compositores e intérpretes alimentavam a voraz indústria fonográfica para saciar a sede dos “basbaques”. O sucesso da canção popular na primeira metade do século XX foi resultado da coocorrência do progresso urbano das grandes cidades, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, e do advento do disco e do rádio. A canção popular alimentou-se desse caldo urbano que fervilhava no caldeirão paulistano.
Um elemento fundamental para a consolidação do gênero canção popular urbana no começo do século XX foi o intenso dialogismo com a linguagem prosaica. A exteriorização da vida social possibilitou o aumento dos diálogos cotidianos em todas as esferas discursivas. Esse processo deveu-se a vários fatores, como a libertação dos escravos no final do século XIX, que jogou às ruas uma população de africanos e descendentes que chegava à Estação Júlio Prestes advinda das fazendas de café do interior do estado, trazendo na bagagem poucos objetos, mas uma riquíssima cultura linguística, musical e gastronômica para engrossar o caldo cultural paulistano. Nas duas primeiras décadas do século XX, houve uma efervescência no caldeirão paulistano, devido às imigrações europeias, principalmente a italiana, e àquelas procedentes do interior do estado, das Minas Gerais e do Nordeste. Esse processo imigratório transformou o cotidiano da capital paulista, promovendo o aumento da população e o incremento da comunicação em todas as esferas discursivas: prosaica, musical, literária, cinematográfica, fonográfica, jornalística etc.
O processo de formação e consolidação da canção popular no começo do século XX é resultado dessa complexa conjuntura social, política e cultural. A canção popular, até então sempre fora tratada como um gênero musical inferior na esfera musical, ao contrário das canções erudita e folclórica. Essas eram valorizadas pelos críticos e intelectuais por representar um ideal de civilização e apreender o nacionalismo na cultura popular respectivamente. Já a nova canção popular urbana, tocada nos discos e propalada pelas rádios, era desvalorizada; ou porque a letra era pobre e prosaica, tendo como parâmetro os modelos poéticos românticos e parnasianos; ou a música era comercial e vulgar, tendo em vista a erudita e a folclórica. Com a urbanização das cidades e a propagação do rádio, a cultura urbana foi cada vez mais popularizada. A elevação da canção a gênero de excelência a partir da década de 30 é parte de um processo de valorização dos gêneros prosaicos que, no começo do século XX, ganhou força e atuação na constituição dialógica das esferas discursivas. Na canção, isso é notável já na década de 20, quando a linguagem prosaica, por meio dos estilos musicais populares, como o samba, a marchinha e a música sertaneja, passou a ser cada vez mais amplificada pelos compositores em suas canções e divulgadas pelo rádio.
As relações da canção com a esfera do cotidiano permitiu-lhe assimilar gêneros, estilos, léxico e personagens prosaicos. O refinamento do artesanato de relacionar a letra e a melodia possibilitou aos compositores explorar a fonte inesgotável do plurilinguismo ao falarem de casos corriqueiros, fatos cotidianos e assuntos diversos, como futebol e política, além do amor.
O imaginário da cidade era constituído por um interdiscurso em que o discurso progressista, resumido na expressão "São Paulo, a cidade que não para de crescer", convivia com o discurso nostálgico, enaltecedor da cidade dos lampiões e das serenatas. Matriz de um interdiscurso, essa polêmica orientou a produção de diversas canções. As composições paulistas defendiam também o discurso da proeminência da jovem metrópole no cenário brasileiro. A apologia da terra e do povo paulistas atestava o anseio da cidade progressista de ocupar uma posição de liderança no cenário brasileiro. Utilizando os principais estilos musicais da década de 30 - o samba, a marcha e a música sertaneja – os compositores populares paulistas desempenharam papel fundamental na formação do imaginário da nova metrópole paulistana.
Referências
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GONÇALVES, Camila Koshiba. "Vitrola paulista pelos olhos e ouvidos de um basbaque-andarilho". In: MORAES, José Geraldo Vinci de; SALIBA, Elias Thomé (Orgs.). História e música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010, p. 321-368.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
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__________. Metrópole em sinfonia - História, cultura e música popular na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
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NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Editora 34, 1999.
PARAGUASSU. “Paulistinha”. Interpretação de Paraguassu, 1935. Marcha; 78 RPM, Columbia, 8.139-B.
PIRES, Cornélio e SILVA, Mariano da.“Bonde camarão”. Interpretação de Cornélio Pires, Mariano e caçula, 1930. Moda de viola, Columbia, 20015-a.
ROULIEN, Raul. “Adiós mis farras”. Interpretação de Raul Roulien, 1928. Tango, 78 RPM, Odeon, 10.301-a.
SOUTO, Eduardo. “Tatu subiu no pau”. Interpretação de Baiano,1923. Samba à moda paulista, Odeon (Casa Edison),78 rpm.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. Petrópoles: Vozes, 1975.
TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
1 Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo, onde defendeu a tese intitulada A canção e cidade: estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira e seu papel na constituição do imaginário da cidade de São Paulo na primeira metade do século XX. Professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), dedica-se ao estudo do gênero canção popular brasileira.